Estes dias exigem informação assertiva, rigorosa, honesta. Escrutinada, como sempre. Os meios de comunicação social continuam a trabalhar adaptados às atuais circunstâncias. Na rua, em casa, em todo o lado. Um exercício de resistência. Uma prova de vida. Uma prova de força.
É um cenário que não bate certo. Redações quase vazias, jornalistas em teletrabalho, programas suspensos, informação monotemática, emissões contínuas, alinhamentos revistos ao segundo. O jornalismo nunca tinha vivido um tempo como este. Contorce-se e adapta-se em nome da missão de informar. Continua a ir ao fim da rua. Continua a contar histórias. Ironia do destino: é uma pandemia que reaproxima as pessoas dos tradicionais meios de comunicação. E um paradoxo que fere e desgasta: quando as audiências sobem, sobretudo digitais, as empresas, assustadas com uma nova crise, cortam a publicidade.
“O jornalismo não se faz em casa, faz-se na rua, faz-se com as pessoas”, enfatiza Domingos de Andrade, diretor do “Jornal de Notícias”. Não pode deixar de fazer o que tem de ser feito. “O direito à informação é a pedra angular de todos os direitos, é tão importante quanto o direito à vida – por muito que isto possa parecer exagerado.” Estar com os leitores. Na saúde e na doença. O jornal está na banca, o JN Direto está na rua. Tem conteúdos de acesso gratuito, registos que não invadem a privacidade. “É nestes tempos mais adversos que mais precisamos dos leitores e que os leitores mais precisam de nós. É nestas alturas que os leitores mais precisam de informação acutilante, assertiva, clara, não especulativa, não populista”, vinca Domingos de Andrade. Tal como tantos outros profissionais, sobretudo da saúde, também os jornalistas estão na linha da frente desta batalha.
Luísa Meireles, diretora da agência Lusa, não tem dúvidas. “Os jornalistas são tão importantes quanto os profissionais de saúde. A informação é sempre muito importante para todos, numa crise tão avassaladora é ainda mais fundamental que haja informação rigorosa, credível, objetiva, honesta, séria”, sublinha.
A RTP tem uma estratégia definida. Informação objetiva. Não há espaço para adjetivações, não há margem de manobra para extrapolações. Hugo Gilberto, diretor-adjunto de informação da RTP, explica. “A informação é fulcral. Temos de ser claros, crus, diretos. Não podemos ser arautos da desgraça, nem profetas de uma esperança qualquer só porque sim.” Toda esta reorganização implica uma grande capacidade de trabalho e espírito de sacrifício. “Entendemos como uma missão de serviço público de informação. Não somos médicos, mas temos uma missão neste momento.” Abastecer o país de informação. “A informação da RTP passou a ser ainda mais procurada pelos portugueses”, revela.
O Mundo não pára, o país não pára, o jornalismo não pára. E não poderia ser de outra forma. “Tal como uma cadeia alimentar não pode parar, o jornalismo também não pode ser interrompido, tem de continuar porque é o alimento da verdade, uma arma para combater o pânico, os medos, as fake news”, diz Sérgio Figueiredo, diretor de informação da TVI. Nos últimos 15 dias, cerca de 800 mil pessoas passaram a ver televisão. “Estamos a resgatar a confiança de muita gente que se tinha divorciado dos velhinhos meios de comunicação social. Há uma noção de sobrevivência coletiva. O sentimento de comunidade funciona, as pessoas, nestas alturas, tendem a colar, a aconchegar”, comenta o jornalista da TVI.
A informação sempre foi importante, agora mais ainda. Para Ricardo Costa, diretor de informação da SIC, “a resposta dos portugueses, por antecipação ao estado de emergência, também teve a ver com o papel do jornalismo de informação”. Catarina Carvalho, diretora executiva do “Diário de Notícias” (DN), também olha para o miolo das redações. “A maior parte dos órgãos de comunicação de referência tem sido impecável na exposição dos factos, do que se sabe e do que não se sabe”, refere. “O civismo com que os jornalistas estão a trabalhar, sem saberem como será o dia de amanhã, é extraordinário.”
Informar e neutralizar rumores
Os desafios da comunicação social em tempo de crise são imensos, a responsabilidade social tremenda. Felisbela Lopes, professora universitária e investigadora na área do Jornalismo, não tem dúvidas quanto a isso. “A informação jornalística em contexto de pandemia constitui um importantíssimo instrumento para ajudar as pessoas a adaptarem-se a esta situação.” A informação torna-se um bem ainda mais precioso com uma dupla tarefa. “Informar e neutralizar desinformação e rumores que proliferam a uma grande velocidade.” Felisbela Lopes estuda a mediatização da saúde desde 2010 e está atenta ao que se passa. “Neste momento, podemos dizer que os media noticiosos nunca fizeram um trabalho tão equilibrado como agora”, constata. Há literacia de saúde no recheio das peças jornalísticas e nos alinhamentos televisivos.
Os media acabam por funcionar como um elo que liga autoridades de saúde, poder político, pessoas. “Precisamos de entidades estruturantes que nos deem esses mapas para evitarmos terrenos movediços.” A investigadora defende medidas excecionais para o setor dos media, que ainda não recuperou da crise de 2008. “Os meios de comunicação social são vitais para a democracia.”
Pedro Pinheiro, diretor da rádio TSF, fala em “tempos irónicos”. Os media tradicionais estavam em perda e agora as pessoas procuram notícias de rádio, de televisão, artigos de jornal como “âncoras de informação rigorosa e credível” para guiar o seu dia a dia. “Voltamos a ter importância, mas, paradoxalmente, ninguém investe em nós, e é nesta altura que precisamos de ajuda. E é importante que essa ajuda venha agora.”
O amanhã é incerto. “Com todo o país em crise, também vivemos no fio da navalha”, diz Domingos de Andrade, que vê com bastante preocupação o futuro dos media. Há vários perigos, como uma mentira se torna viral, como uma fake news se propaga num ápice. E, neste momento, mais uma estalada no jornalismo com uma rede de distribuição de edições inteiras de jornais e revistas em pdf disseminadas por todo o lado. “É o direito à informação que está a ser lesado. Estão a prejudicar-se e a impedir a sua própria sobrevivência.”
O DN abriu o acesso a conteúdos, cresce nas assinaturas online, enquanto a publicidade cai. “É uma crise dupla e muito esquizofrénica. Abrimos os paywalls, as assinaturas estão a crescer, e os jornalistas estão a dar as notícias gratuitas. O futuro é, no entanto, preocupante. Ninguém sabe o que vai acontecer à comunicação social. O jornalismo está à beira do precipício”, alerta Catarina Carvalho.
José Manuel Ribeiro, diretor do diário desportivo “O Jogo”, também antevê problemas e há lições que, na sua opinião, já devem ter sido aprendidas. “Vamos ter todos dificuldades se não houver consciência do Governo e da União Europeia da importância dos órgãos de comunicação social.”
A quebra de receitas publicitárias, o decréscimo nas vendas em papel e o adiamento de investimentos agravarão a situação. O Sindicato dos Jornalistas (SJ) teme que o setor colapse. Por isso, insiste na importância de manter redações com um número razoável de profissionais e meios técnicos. “Sem o trabalho dos órgãos de comunicação social e sem o esforço de muitos jornalistas, que aceitaram correr riscos para continuar a informar a população portuguesa, dificilmente as medidas de isolamento social teriam o impacto pretendido”, sustenta o SJ.
Muito mais com muito menos
Como se faz um jornal desportivo com o campeonato suspenso e jogos cancelados? “As personagens continuam por aí, ainda há muita informação. Se isso chega para manter uma leitura focada nos jornais desportivos ou não, isso não sei…”, responde José Manuel Ribeiro, diretor de “O Jogo”. “Não somos cegos e surdos e percebemos que, neste momento, as audiências que estão a crescer são as dos títulos generalistas.” O jornalista admite que um diário desportivo, no atual contexto, não será o melhor produto. “Não há propriamente uma jornada para explorar, um rescaldo desportivo para fazer.” Há, porém, outra matéria-prima e o trabalho continua. Agora com 100% do pessoal, 60 profissionais, em teletrabalho, com a hora de fecho antecipada quase duas horas.
O JN reorganizou-se em três momentos. No primeiro, ainda antes do estado de emergência, os profissionais de risco foram para casa. Num segundo, metade em trabalho, metade na Redação, por turnos, para evitar cruzamentos. Agora, entre 80% e 90% da Redação está em teletrabalho, num total de 80 profissionais mais uma rede de 60 correspondentes espalhados pelo país. Tenta-se manter horários de reuniões de planeamento. “É difícil gerir uma Redação, que é um microcosmos social, que se alimenta da troca de ideias, apenas com base em teleconferências”, assume Domingos de Andrade. Catarina Carvalho, do DN, também sente falta desse ambiente. “Faz-nos falta aquela discussão de Redação, a empatia que se cria sobre determinada situação.”
A RTP tem cerca de 25% dos funcionários em teletrabalho, os restantes 75% em trabalho efetivo. No Porto, a Redação já não está concentrada no segundo piso, está repartido em dois andares. Os profissionais sabem o que fazer em estúdio ou na rua em reportagem. O canal público de televisão tinha um plano de contingência preparado, desde o início de fevereiro, para aplicar quando necessário. Programas foram suspensos, os de futebol sobretudo, as equipas de desporto e cultura estão mobilizadas para o que é necessário, a RTP3 em contínuo acompanha o tema do momento. “Não me lembro de uma informação tão centrada num assunto durante tanto tempo desde o 11 de Setembro”, repara Hugo Gilberto.
“Todas as redações estão a fazer muito mais com muito menos”, observa Sérgio Figueiredo, da TVI. O canal está em informação contínua das oito à uma da manhã com metade da equipa (a outra metade está em teletrabalho), reduziu drasticamente a presença de convidados em estúdio, recorre sobretudo aos comentadores residentes que trabalham na Redação, há programas feitos por Skype, definiu um esquema de alternância quinzenal para os 200 profissionais (cerca de metade são jornalistas). “É um exercício de resistência. Tudo isto só é possível porque as pessoas, que têm famílias, com os seus medos e receios, com as suas próprias idiossincrasias, perceberam que não dá para parar. Não se pode parar.”
A TSF suspendeu alguns programas, sobretudo os que obrigam a ter comentadores e convidados no estúdio, e criou novos, de raiz – “Perguntas com respostas”, às três da tarde, de segunda a sexta-feira; “Sem medo do medo”, às 9.30 horas, com repetições ao longo do dia; “Um dia de cada vez”, estreia amanhã, segunda-feira, às sete da tarde, com histórias dos dias de pessoas fechadas em casa e conselhos à mistura; em breve colocará no ar “Com os livros estamos mais próximos”, com ouvintes a lerem a página de um livro. A equipa está dividida em dois turnos que trocam de 14 em 14 dias.
Os 200 jornalistas da Lusa estão todos em teletrabalho, o edifício está vazio. Todos entram diretamente no sistema, onde quer que se encontrem, põem textos na linha, como já acontecia. Numa primeira fase, a Redação foi dividida em duas, um grupo em teletrabalho com os profissionais de risco, outro no edifício. Numa segunda fase, ainda antes do estado de emergência, praticamente todos em teletrabalho, apenas um núcleo duro na Redação. A Lusa TV teve um tratamento especial para descarregar imagens. Estado de emergência decretado, tudo em casa. Às 9.30 horas, há reunião com direção, chefe de redação, editores, para decidir o que se vai fazer. Equipas na rua, correspondentes por todo o país, piquete de fim de semana a funcionar. Desde 16 de março que os conteúdos Covid-19 são de acesso público no site da agência de notícias.
No DN, toda a equipa trabalha a partir de casa, em dois turnos, cada turno tem um líder. Comunica-se à distância, organiza-se o trabalho. A SIC alargou o tempo do “Primeiro Jornal” e do “Jornal da Noite”, a SIC Notícias tornou-se praticamente monotemática com emissões contínuas das seis às duas da manhã. A reorganização foi sequencial, prioridade às pessoas com doenças e com filhos em casa e sem alternativa. Agora há turnos de sete em sete dias para os 290 profissionais sob alçada da direção de informação. Há equipas em reportagem, nas ruas, e foram distribuídos kits de proteção e absorvidas medidas de proteção e segurança.
A informação é essencial. Um pilar da democracia. Joaquim Fidalgo, professor de Jornalismo na Universidade do Minho, avisa que a abundância de informação tem os seus perigos. “A quantidade de informação exige mais dos leitores, a separarem o trigo do joio, e a resistirem a ser propagadores de mentiras.” Distinguir o que é verdade e o que é mentira. “Estamos fechados em casa e a informação está muito mais presente em todas as horas da nossa vida. É uma situação de excesso, tudo é excessivo, e não podemos colaborar na disseminação de informação não certificada.” Um aviso, na verdade, intemporal. Sem tempo.