Isolados sem ganha-pão

Rogério Fornelo tem 51 anos e contava 33 na Camipão, a maior panificadora do concelho de Caminha (Foto: Rui Manuel Fonseca/Global Imagens)

Uma mão-cheia de histórias. Serafim, Ana Sofia, Rogério e o casal Rodrigo e Filipa estão com os dias suspensos, numa solidão de custo incerto. Vivem em lares onde deixou de entrar dinheiro, devido a dispensas, despedimentos ou aos recibos verdes. De olhos postos nas ajudas do Governo, agarram-se à esperança de que tudo seja ultrapassado da melhor forma. E, já agora, mais cedo do que tarde.

“Há coisas do caraças”, diz Serafim Pinto, do outro lado da linha telefónica, a tentar um sorriso tranquilo. “Não é que há cerca de um mês fui falar com eles? A idade já pesa e quis fazer um acordo para me vir embora, mas não aceitaram. Disseram-me que não podiam prescindir dos meus serviços, que fazia muita falta à empresa.” O afinador de máquinas ouviu, encolheu os ombros, e continuou na luta, na Molaflex, em Santa Maria da Feira. “Há coisas do caraças”, repete no mesmo tom sereno. “E agora, olhe, mandaram-me embora.”

Serafim, 58 anos, trabalhava há oito na empresa do grupo espanhol Flex – que detém a Molaflex Colchões, SA. Faz agora três semanas, conta, “o diretor-geral da empresa reuniu o pessoal pelas 14.30 horas para pedir a colaboração dos trabalhadores, queriam que as pessoas antecipassem as férias”. Serafim disse-lhe na hora: “Isso não é de lei”. A resposta, revela, foi que “era a solução que podiam apresentar naquele momento”. O afinador informou-se. “Quando vieram à minha beira para eu assinar um documento a dizer que estava de acordo com o que estavam a propor, disse-lhes que não assinava nada com o qual não estivesse de acordo.” Não foi o único. Resultado: Serafim e outros 149 trabalhadores foram despedidos.

A empresa alegou “falta de matéria-prima para laborar” nesta fase de pandemia da Covid-19. A distrital do Bloco de Esquerda em Aveiro aponta “uma clara má-fé” por parte da empresa que empregava “alguns destes trabalhadores” através de empresas de trabalho temporário. “Numa clara violação da legislação existente. Já que eram todos postos de trabalho permanente.” Serafim, assume, é um desses casos. “Sou trabalhador efetivo da empresa de trabalho temporário Randstad e era trabalhador permanente na Molaflex.” E agora? “Como a Molaflex está a infringir as leis do código de trabalho, terá, mais a Randstad, de chegar a um acordo para me pagarem.” Já recebeu o mês de março. “Dia 30, mal me levantei, vi que me tinham pago na totalidade. A incerteza são os próximos meses.”

A Molaflex mandou 150 trabalhadores para casa. Serafim Pinto é um dos que aguarda para saber o desfecho da história
(Foto: André Gouveia/Global Imagens)

Sozinho em casa com a mulher, que tem problemas de saúde, diz estar “calmo”. Convencendo-se de que “até ao final da semana as coisas se resolvem, de uma forma ou de outra”. Mas que ficou surpreso com tudo isto ficou. “Se não fosse a Covid-19 nada tinha acontecido. De facto, as coisas aqui em Ovar estão complicadas, mas quero que me sejam pagos os meus direitos. Não estou aflito, tenho algum de lado, mas nunca se sabe.” Ao fim de uns segundos de silêncio o pensamento ganha de novo voz. “E eu que queria ter vindo embora.” Há coisas do caraças, não há?

O pensamento rápido de Rodrigo Vargas, treinado pelos anos a registar momentos únicos nos casamentos, foi de grande ajuda para intuir o embate que iria sofrer. Mal se começaram a confirmar os primeiros casos de Covid-19 em Portugal, o fotógrafo, de 34 anos, residente em Lisboa, percebeu que os muitos trabalhos agendados para os meses seguintes iam tombar como peças de dominó. Nos primeiros, deixou que fossem as pessoas a ligar e a adiar. Agora, é ele ou a namorada, Filipa Rosa, com quem divide suor e lucro, que se encarrega da tarefa.“Os de maio já foram quase todos adiados para o próximo ano. Os de junho e de agosto, estamos a contactar os clientes para avaliar as possibilidades. De maneira que não sei o que nos espera profissionalmente neste ano.” Desde 2012 que este engenheiro civil enveredou pela área da fotografia. Portanto, quase não conhece outra realidade a não ser os recibos verdes. “É que estamos os dois na mesma situação. Só olhamos para isto com algum descanso porque temos dinheiro de parte que nos permite pagar as contas durante algum tempo. Mas, se isto durar muitos meses, estamos tramados, como tanta gente, apesar da ajuda que o Governo possa vir a dar.”

Rodrigo e Filipa dependem também de como a situação evoluir internacionalmente, uma vez que muitos dos seus clientes são estrangeiros. “Dos Estados Unidos, de Inglaterra,…e lá não estão, para já, nada bem. Se a isto juntarmos as restrições de viagens, ficamos mesmo sem hipótese, mesmo que as coisas comecem, por aqui, a andar minimamente bem.” Por isso, esperam. Às vezes mais assustados, outras mais tranquilos. “Estamos a tentar levar isto da melhor forma possível. Não há nada a fazer, é aguentar. Enquanto os eventos forem remarcados dá para ter alguma esperança.”

Rodrigo Vargas e Filipa Rosa ganham a vida a fotografar casamentos. De um momento para o outro, os eventos dos próximos meses foram todos adiados
(Foto: Paulo Spranger/Global Imagens)

Ana Sofia Monteiro, 31 anos, está fechada na sua casa em Braga, mas navega no mesmo barco dos “recibos verdes”. Formada em Línguas Aplicadas, começou por ganhar a vida a dar explicações e só depois trabalhou em editoras como revisora e tradutora de livros. Nos últimos anos, aventurou-se na área da comunicação e das relações públicas na empresa PM Media, desenvolvendo, paralelamente, trabalho na sua própria agência literária. Duas das áreas que mais têm sofrido com a crise que o novo coronavírus levantou. No que toca à PM Media, uma empresa de comunicação especializada em edição de revistas e outras publicações periódicas, e que vive fundamentalmente de publicidade e de eventos, a quebra no volume de faturação tem sido notória. “Temos consciência de que as empresas nesta fase não querem investir em publicidade, porque elas próprias se estão a redefinir e a reinventar para se conseguirem aguentar no mercado.” Para já, salvam-se os contratos em vigor e que esperam não vir a sofrer danos. Mas há questões que se levantam. “Teremos receita suficiente para continuar a imprimir as publicações?”, questiona.

Os cerca de 20 trabalhadores da empresa estão em teletrabalho e mantêm-se ativos na avaliação dos estragos e na decisão das melhores estratégias neste momento. Ana Sofia, que tinha grande parte da pasta dos eventos a seu cargo, viu-se esvaziada de funções, até que a situação política, social e económica mude. Cá e lá fora. “Tínhamos eventos programados em Moçambique, por exemplo, que ficaram em banho-maria.” Ou seja, a freelancer, neste momento, apesar de continuar a disponibilizar-se para o que for preciso, na verdade não tem o que fazer. “Como a minha função se tornou desnecessária, no mês de março já não recebi.” E continuará a não ter nenhum rendimento dessa empresa, que era a maior fonte, até que a situação mude.

Ana Sofia não ficou à espera e procurou alternativas. Tem dado novamente explicações de Inglês e Português, agora por videoconferência. Voltou a contactar os sítios por onde passou em trabalhos anteriores, na esperança de obter algum rendimento. E aproveitou para dedicar mais tempo ao seu negócio, a agência literária. Relendo e editando as peças dos autores que agencia e trabalhando, por exemplo, mais as redes sociais, embora saiba que este não é o momento de pensar em publicações. No entanto, mantém-se positiva: “Vou adiantando algum do trabalho, na esperança de que tudo melhore”.

Entretanto, já preencheu o formulário para os trabalhadores independentes que o Governo, através do Ministério do Trabalho, disponibilizou no site Segurança Social Direta e que permite apoios de 438 euros aos trabalhadores a recibos verdes que estejam a enfrentar uma paragem na atividade. “Não vou ficar só à espera disso. Estou a tentar reinventar-me e a pensar no que posso fazer. Ninguém estava à espera disto. Mas podemos tirar proveito deste tempo. No meu caso, trabalhando mais e com mais calma a literatura. Repensando o modo como faço as coisas e fazendo-as diferentes. Para já, isso tem-me mantido ocupada. E é o que de positivo consigo tirar disto tudo.”

Ana Sofia Monteiro divide a atividade entre a Comunicação e a Literatura, duas das áreas que mais sofreram com o adensar da pandemia
(Foto: Paulo Jorge Magalhães/Global Imagens)

Ana, que tem consciência dos tempos de incerteza e dificuldade que a comunicação e a literatura já enfrentavam, acredita que, no geral, o hiato poderá fazer encontrar novas soluções para o problema. O que é suficiente para calar o receio que não pára de sussurrar, lá no cantinho da sua cabeça. “Eu estou calma e positiva, no entanto, se daqui a três meses as coisas não mudarem, tenho consciência das dificuldades que posso vir a enfrentar. Se houver uma crise, os pais vão cortar nas explicações dos filhos. E eu, como trabalhadora independente, não verei grande horizonte. E neste barco somos muitos.” O equilíbrio da balança é o possível. “Mas vamos manter-nos otimistas. Eu estou. Agora, é tempo de tentarmos ter serenidade. De remarmos juntos, de sermos solidários e de compreender as demoras que estes processos de ajuda podem implicar uma vez que a situação é nova para todos.” O companheiro de Ana Sofia tem uma empresa, o que lhes permitiu poupar e aguentar as contas que caem todos os meses, como o crédito da casa.

O Governo tem-se desdobrando em criar medidas de apoio aos que mais possam padecer neste cenário turvo onde a pandemia nos deixou. Lançando sucessivas adendas, no sentido de proteger e apoiar, cada vez mais, trabalhadores e empresas neste momento de fragilidade económica e financeira. O objetivo, garante Ana Mendes Godinho, ministra do Trabalho e da Segurança Social, é manter as condições para a manutenção dos empregos. Mas, como aqui já se escreveu, há patrões que tentam driblar as leis. Pedindo, a título de exemplo, as férias em troco dos postos de trabalho. E outros que não têm condições para resistir, em áreas de atividade paralisadas.

Para os que não cedem à irresponsabilidade social nem ao abuso laboral em plena pandemia, há soluções. Nomeadamente no regime de lay-off, em que parte dos salários dos trabalhadores é suportada pelo Estado. As empresas que aderirem podem reduzir o vencimento dos funcionários, seguindo as regras gerais previstas no Código do Trabalho, sendo essa remuneração financiada em 70% pela Segurança Social e em 30% pela entidade empregadora. Em caso de suspensão do contrato, os trabalhadores têm direito a receber dois terços do salário ilíquido, com a garantia de um valor mínimo igual ao do salário mínimo nacional (635 euros) e com um limite máximo correspondente a três salários mínimos (1 905 euros). Já nas situações de redução do horário, é assegurado o salário calculado em proporção das horas de trabalho. Durante a concessão do apoio as empresas ficam isentas da Taxa Social Única (TSU), mas os trabalhadores terão de descontar 11% para a Segurança Social.

Rodrigo Vargas e Filipa Rosa
(Foto: Paulo Spranger/Global Imagens)

Na última redação do documento, o Governo apertou as regras. Agora, o lay-off simplificado diz que durante o período de aplicação das medidas de apoio previstas no decreto-lei, “bem como nos 60 dias seguintes, o empregador abrangido por aquelas medidas não pode fazer cessar contratos de trabalho ao abrigo das modalidades de despedimento coletivo ou despedimento por extinção do posto de trabalho”.

Só até 31 de março tinham chegado àquele Ministério 3 600 pedidos de empresas para aderirem a esse regime. Dois exemplos. A empresa de transportes Transdev, que tem a seu cargo dois mil trabalhadores. E a TAP, que determinou “a suspensão temporária da prestação do trabalho para cerca de 90% dos colaboradores” e “uma redução do período normal de trabalho, em 20%, para os restantes 10%”, para fazer face ao impacto da Covid-19, que inviabiliza quase toda a operação da transportadora aérea, lê-se numa mensagem enviada aos cerca de 11 mil trabalhadores.

“Um tsunami é um tsunami”, disse o primeiro-ministro, António Costa, há uns tempos. E este trouxe – e vai continuar a trazer – vagas de muita dor, principalmente a quem vê o seu ganha-pão ameaçado. Como Rogério Fornelos, que cultiva a custo a esperança por estes dias. Em abono da verdade, a sua situação é ainda pior porque a vida já não lhe corria bem há muito. Tem 51 anos e contava 33 na Camipão, a maior panificadora do concelho de Caminha. “Não é uma vida, mas é meia.” E meia vida também é muito tempo. Nos últimos meses, o ordenado “era depositado por metades”. “Pagavam parte no dia 8 e a outra parte no dia 20.” Mais. “Há dois anos que não via nem o subsídio de férias nem o de Natal. Até tentaram dar-nos aos bocados, 200 euros de cada vez, mas isso só durou três meses.” A última vez que recebeu “foi em janeiro”. “No dia 15, se não estou em erro, metade do valor que devia ter recebido em dezembro.” Para piorar, no verão passado, baixaram-lhe o ordenado. “Como forneiro ganhava à volta de 800 euros. Porém, desde julho que me puseram na distribuição e passei a receber 670 euros. Quer dizer, quando me pagavam.” O homem estava longe de imaginar que seria o vírus a espoletar a morte anunciada da panificadora.

Rogério Fornelos, com o neto Lucas ao colo, nem sabe se foi dispensado ou despedido. Sabe que tem salários em atraso e uma casa para pagar ao banco
(Foto: Rui Manuel Fonseca/Global Imagens)

Aconteceu. Foi no dia 24 de março. Ligaram-lhe para casa, já de noite. “A dizer que a laboração tinha sido suspensa e para me apresentar às sete da manhã, do dia seguinte, para recolher o material perecível de todas as lojas, como queijos e fiambres. Coisas que se estragavam. Que haveria eu de dizer?”, lamenta-se. Cumpriu o que lhe pediram e a seguir fez, mais os colegas, queixa ao sindicato. O caso veio a público a 26 de março. Referia o “Jornal de Notícias” que a Camipão, a maior empresa privada daquele concelho, fechou as 11 lojas e mandou para casa os 65 trabalhadores sem uma explicação quanto ao futuro. Rogério Fornelos diz que “o maior problema reside no facto de ter sido mandado para casa sem uma declaração que permita recorrer ao subsídio de desemprego”, colocando em causa a sobrevivência de trabalhadores e respetivas famílias.

A União de Sindicatos de Viana do Castelo afirmou que a Camipão “deve parte do salário de janeiro e o salário por inteiro de fevereiro de 2020, os subsídios de Natal de 2019 e, a alguns trabalhadores, ainda deve subsídios de Natal de 2018”. Para já, está tudo em suspenso. Os trabalhadores apenas têm a indicação dada pelo presidente do Conselho de Administração de que no dia 11 de abril haverá reunião de sócios para definir o futuro da empresa.

Rogério agarra-se ao fio de fé que lhe resta para reaver os três mil euros que lhe devem. Se não for isso, “ao menos o subsídio de desemprego”. A voz sai-lhe grave e arrastada. É o desgaste das preocupações. Os filhos estão criados, mas a casa está por pagar. O futuro parece mais negro do que nunca. “A minha esposa trabalhava, fazia umas horas na limpeza, mas com este vírus está tudo lixado. Não há dinheiro a entrar cá em casa.” No impasse dos dias não lhe resta outra coisa se não mexer no que tinha amealhado. Enquanto durar. “Não é muito, nunca deu para juntar.” Rogério suspira. “É, está muito mau. E a idade não ajuda. Para arranjar emprego vai ser um problema. Como se não bastasse, aconteceu nesta altura. Mas vamos indo e vamos vendo.”