Ir ao médico em casa. Do conforto aos riscos

Se a prática se vai fazer experiência duradoura ainda é cedo para dizer. Mas é inegável que a Covid-19, e tudo o que ela trouxe, tem tornado as teleconsultas rotineiras

Em tempos de pandemia, as teleconsultas generalizaram-se e podem ser uma ajuda preciosa para quem teme o contágio. Mas só em alguns casos, alerta a Ordem dos Médicos.

Isabel Bolrão, 70 anos, percebeu em fevereiro, ainda o primeiro caso de coronavírus em Portugal não havia sido confirmado, que estava pré-diabética. O diagnóstico chegou com uma solução pronta: fazer medicação para ajudar a controlar os níveis de glicose no sangue e voltar a fazer um check-up dois meses depois. Só que entretanto chegou o vírus. E o confinamento. E o estado de emergência. O medo também. O país em força foi obrigado a ajustar-se a esta nova realidade distorcida a que nem a medicina escapa. Para minorar riscos de contágio, várias clínicas e hospitais passaram a apostar nas teleconsultas. Isabel, que estava incumbida de repetir análises para que o clínico que a acompanha pudesse avaliar os novos resultados, não foi exceção.

“Fiz uma consulta por videochamada que durou mais ou menos 15 minutos. O meu médico viu os resultados das análises, perguntou como me estava a sentir com o tratamento e deu-me indicações em relação ao tratamento que devia continuar a fazer.” Isabel nunca tinha feito uma teleconsulta. Tanto que a ideia lhe chegou a causar alguma estranheza. Mas ao fim daquele quarto de hora de um contacto diferente com o médico de sempre estava convencida. “Correu muito bem. No meu caso também foi mais simples porque já tinha sido vista, não precisava de ser auscultada nem nada. Diria que foi uma consulta normalíssima. Com o vídeo, acabamos por nos sentir mais à-vontade. Ao fim e ao cabo acaba por se estar ao pé da pessoa, ela sorri, transmite aquele conforto e aquele ânimo.”

Para Isabel, o conforto é também o de não ter que sair de casa, nem se sentir a correr riscos numa ida ao hospital. Tanto mais quando já se inclui nos grupos de risco. Mas admite que gostava de repetir a experiência mesmo num futuro livre de pandemia. “Acho que se devia adotar mais este método. Até pelos tempos de espera que se evitam.”

Se a prática se vai fazer experiência duradoura ainda é cedo para dizer. Mas é inegável que a Covid-19, e tudo o que ela trouxe, tem tornado as teleconsultas rotineiras. Na CUF, por exemplo, foram feitas 7 044 em menos de um mês. Há outros números a atestar o crescimento: atualmente, a instituição recebe cerca de 900 marcações por dia. E já tem perto de um milhar de médicos a trabalhar neste regime. Isto desde 18 de março, dia em que a instituição disponibilizou a primeira teleconsulta. Curiosamente, apesar de ela ter acontecido já em plena pandemia (nesse dia, 18 de março, havia 642 casos confirmados em Portugal), a CUF tinha um plano para pôr em prática este método no decorrer deste ano.

“A pandemia veio acelerar a abertura de um novo canal dirigido aos nossos doentes”, diz Micaela Seemann Monteiro, Chief Medical Officer (diretora médica) para a transformação digital CUF. E que pode revelar-se particularmente importante num momento em que todos os cuidados são poucos. “Nestes tempos em que é essencial diminuir o risco de contágio, e em que os próprios doentes têm receio de procurar clínicas e hospitais, a teleconsulta revela-se especialmente importante no acesso a cuidados de saúde.”

Mas quando falamos em teleconsulta está inerente o recurso à videochamada? Por definição não. Um bom exemplo é o serviço SNS 24, em que o acompanhamento é feito sem recurso ao vídeo (ainda que o propósito destas consultas também seja mais específico e limitado). No caso da CUF, é dada prioridade à videoconsulta. “Naturalmente é mais rica do que a audioconsulta”, justifica Micaela Monteiro. “Permite, dentro dos limites, a observação do doente, e é assim preferível, pois reúne condições para uma maior resolubilidade.”

A especialista em medicina interna reconhece que há limitações difíceis de ultrapassar, ainda assim. A maior das quais passa por não permitir a interação física direta. “Não é possível auscultar ou palpar”, resume. Tal não invalida que a teleconsulta (que na CUF tem o mesmo custo de uma consulta presencial) se revele uma ferramenta útil face a um leque variado de necessidades. “A discussão de resultados de exames, o esclarecimento de dúvidas, a renovação da prescrição, o controlo evolutivo programado da doença, quando o contacto físico não é necessário, são alguns exemplos.”

Deixa, no entanto, um alerta que vale a pena ler e reler. “É importante reforçar que situações emergentes como a dor no peito, falta de ar, alteração do estado de consciência ou, por exemplo, sintomas que podem sinalizar um acidente vascular cerebral não devem sofrer qualquer atraso na avaliação médica e nos respetivos cuidados. O risco para a saúde nestas situações é muito superior ao de contrair o coronavírus.” Também por isso a CUF mantém as suas clínicas e hospitais abertos. Para situações urgentes, consultas, exames, atendimentos de urgência, cirurgias e partos.

Os perigos e as fraudes

O apelo é reforçado pela Ordem dos Médicos. Alexandre Valentim Lourenço, presidente do Conselho Regional do Sul desta entidade, avisa mesmo para o risco de falhar diagnósticos. E destaca as duas pechas mais significativas neste modo de interação com os doentes: “Por um lado, não existe a interação não-verbal, que ajuda muito à criação de empatia em consultas presenciais, sobretudo quando se trata de uma primeira consulta. O segundo aspeto tem a ver com o facto de uma parte do diagnóstico ser feita com recurso a um exame objetivo, que neste caso não existe. Uma parte das nossas observações fica amputada por algo muito importante”. Daí que a prática não seja aconselhada pela Ordem dos Médicos para uma primeira consulta. “Mesmo em tempos de pandemia”, sublinha.

O especialista em ginecologia-obstetrícia alerta ainda para o facto de as teleconsultas potenciarem o risco de fraude. “Há muita gente a fazer teleconsulta sem ser certificado.”
Alexandre Valentim Lourenço reconhece, no entanto, a eficácia da teleconsulta em dadas circunstâncias. “Pode obviar a consultas entre doentes e médicos em áreas em que o contacto não é essencial. Por exemplo, para dar resultados de exames. Como segunda consulta ou método complementar é muito útil. Em países como o Canadá e a Austrália, por exemplo, os sistemas de teleconsulta já funcionam há muitos anos.”

Por último: há ou não especialidades que se prestem mais às teleconsultas? O responsável da Ordem dos Médicos defende que não há uma resposta objetiva para esta questão. “Depende muito. Todas as especialidades exigem algum tipo de avaliação. Olhe o caso da psiquiatria, por exemplo. Os sinais não-verbais são muito importantes. E é difícil captá-los por telefone.”