Valter Hugo Mãe

Humano Francisco


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Apetece dizer que Francisco é finalmente um cristão dentro do Vaticano, onde acima de todas as coisas deve ser praticada a abstenção de julgamento.

Tão óbvia coisa e, no entanto, tão gigante coragem a de Francisco ao dizer que: “Os homossexuais têm direito de constituir família. Eles são filhos de Deus. Temos de ter leis sobre a união civil para que estejam protegidos.”. Ainda que históricas, estas declarações não são senão uma posição pessoal, longe de valerem enquanto mudança da doutrina moral na Igreja. Para o catecismo em vigor, persiste a convicção “imutável” (porque aparentemente assacada à palavra sagrada da Bíblia) de que a homossexualidade é pecado e consiste em algo antinatura. A posição esplendorosa de Francisco, abrindo um debate, não deixa de manter as coisas como estão.

A Igreja não está imune a certa radicalização que se vive em toda a sociedade. Aos que anseiam por trazê-la quase de imediato ao melhor do nosso tempo, limpando-a da maldade torpe que vê sujidade em tudo, inclusive na natureza (como são naturais as sexualidades), opõem-se os de julgamento compulsivo, censores obstinados que não medem a fé senão como modo de opressão da liberdade do outro. Paulatinamente, a Igreja morre. Afastada da elementar pulsão amorosa, o elementar respeito pela diferença, a Igreja mirra e arrisca-se a sobrar como um lato museu onde se limpa o pó à arte como se cuida ainda dos templos dos antigos egípcios, dos aztecas ou dos incas. Se a Igreja insistir em ser um lugar de exclusão e de permanente acusação, se for o negativo império do pecado, jamais terminará com os cristãos mas acabará indubitavelmente com os católicos.

Dito isto, que brilhante a posição de Francisco, abanando com um dos preconceitos mais grotescos do catolicismo que fere uma infinidade de famílias que já existem, não vão ser inventadas à força disto, vão apenas ver-se mais respeitadas.

Apetece dizer que Francisco é finalmente um cristão dentro do Vaticano, onde acima de todas as coisas deve ser praticada a abstenção de julgamento. Nenhum preceito maior do que aquele que confere a Deus o juízo sobre cada um de nós. Entre pessoas não pode haver senão paridade, essa massa irmã. Se alguma coisa for pecado, compete a Deus o juízo, e às criaturas o respeito. Se Deus existir, saberemos ainda nada acerca do que é a sua vontade senão a de nos haver inventado e oferecido a diferença por natureza e a autodeterminação por força anímica.

Para que o catecismo se veja maturado ao esplendor da declaração de Francisco, é fundamental que a sua formulação seja feita num documento doutrinário, como por uma Encíclica, decretando uma nova leitura das escrituras sagradas, sedimentando uma interpretação que legisle sobre o vasto catolicismo e se imponha acima de tudo. Sinceramente, não acredito que isso aconteça tão cedo. Ainda que bravo e profundamente certo, Francisco sabe que preside a uma instituição velha cujos alicerces se confundem tremendamente com a verdadeira missão. Como casa de poder, a Igreja produz um claro amor à religião e um mais complexo amor a Deus. Pois, amar a Deus tem de ser um manifesto inequívoco em favor dos homens e das mulheres. Tem de ser um manifesto incondicional em favor da vida e da paz. O que ofender o amor e a paz é aberrante. Isso, sim, o genuíno antinatural. O antinatural começa quando se ama mais uma instituição do que os homens e as mulheres. Do que a vida e a paz.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)