Há vida no fim da rua

Alexandra Lopes, 33 anos e sem-abrigo durante um, trabalha no Centro Fixo de Rastreio da Médicos do Mundo, no Porto (Foto: Igor Martins/Global Imagens)

As curvas dos dias roubaram-lhes o teto e o chão. Tombaram em queda livre. Caíram até onde a dignidade já só é miragem. E no entanto voltaram à tona. À custa dos que lhes souberam dar a mão. Mas muito mais à custa deles, que foram às trevas resgatar uma segunda vida. Cinco ex-sem-abrigo mostram de que é feita a coragem.

A primeira noite na rua não se esquece. Fica cravada na alma como chaga aberta. O relento. O medo. O frio. Os barulhos que apavoram. A ditadura das horas que não deixam pregar olho. A rua é soturna, amarga, a rua é solidão. É o céu a fazer-se mais clausura e menos liberdade. A primeira noite na rua é uma insónia tornada tortura. São os becos dos dias a atafulharem-se no pensamento. Um sem fim de porquês a ecoarem no avesso da alma.

É a culpa a moer, ora mansa, ora abrupta. A primeira noite na rua é um desespero. A de Telmo Simão foi há quase 30 anos. Tinha ele 12. Mas ainda a sabe de cor. Passou-a na parte de cima de um depósito de água, no meio de um mato, em Faro. “Fugi com outro colega do colégio e acabámos por passar a noite ali.” Lembra-se que fazia frio. Muito frio. Era uma noite de inverno. E ali começava o inverno da vida deste algarvio de 41 anos.

“Dormia com o meu marido, numa barraca sem porta nem janelas, só com um plástico a cobrir-nos. Muitas vezes queríamos comer e não tínhamos”
Carla Oliveira

Ou terá começado bem antes. Quando nasceu numa “família muito complicada”. Onze irmãos, ao todo. E uma mãe que cedo os abandonou a todos, ora em casa de amigos, ora nos avós. Depois foi para uma IPSS. E as (más) companhias traçaram-lhe o destino. “No colégio [a IPSS] aprendi a viver do crime. Lá, juntavam-se miúdos de todas as idades. A nós, como éramos os mais novos, davam-nos ‘coisas’ para entregar aos outros. Fugíamos da escola e íamos para os bairros.”

Era ele e mais três: o Fuji, o Joli e o Márinho. Os outros já morreram. Só Telmo ficou para contar a história. Para contar que, por verem os mais velhos mergulhar fundo em todo o tipo de drogas, também eles quiseram aventurar-se. “A primeira coisa que injetei foi a heroína. Ia morrendo de overdose. A dose era demasiado forte para um miúdo. Só me lembro de me tentar levantar e de o corpo não obedecer.” Acabou no Hospital de Faro.

Mas a saga dos consumos só então estava a começar. Entretanto, juntara-se a um grupo de rapazes mais velhos que o ensinaram a arrumar carros. Volta e meia também fazia uns biscates nas obras. “Tinha de ter dinheiro para a substância.” Heroína, cocaína, speeds. Experimentou tudo. Sempre com a rua como companhia. Ora nas arcadas da Santa Casa, ora numa fábrica abandonada, ora nas redondezas da estação de comboios. Para mudarem de roupa, iam aos estendais. “Pedir emprestada.”

Foto: Igor Martins/Global Imagens

Aos 18, a vida parecia sorrir-lhe, por fim. Apaixonou-se e começou uma relação. A companheira fez questão que frequentasse o Centro de Atendimento a Toxicodependentes (CAT) de Olhão, para se tratar. Mas não resultou. Entretanto tiveram um filho. E mudaram-se para o Fundão. Telmo foi trabalhar para as obras. Mas não conseguia livrar-se dos velhos vícios nem por nada. “Continuava a consumir. E para ter dinheiro para a droga comecei a vender. Mentia-lhe descaradamente e ela começou a descobrir.” A dada altura, farto de fazer mal à mulher e ao filho, foi-se embora. Nem avisou. “Meti-me no comboio e desapareci. Abandonei-os.” A culpa não o deixa esquecer-se do dia. Foi a 17 de março de 2006. “Foram as três horas mais longas da minha vida. Saí do comboio completamente bêbedo.” Os remorsos embargam-lhe a voz.

“A sorte foi o INEM ter sido muito rápido a agir. Eu tinha caído numa poça de fezes”
Telmo Simão

O que estava para vir haveria de ser ainda pior. “Saio em Santa Apolónia e encontro logo um indivíduo que me leva para o Intendente. Gastei oito mil euros em droga.” Ainda ficou instalado numa pensão, mas deixou de a conseguir pagar. Desesperado, tentou o suicídio. Deu entrada na ala psiquiátrica do Hospital de São Francisco Xavier, em Lisboa, e daí seguiu para o Centro de Acolhimento de Alcântara. Esteve oito meses em tratamento. Em vão. Mal saiu foi para o Casal Ventoso. Comprou 50 euros de cocaína, mais 50 de heroína. Consumiu tudo de uma vez. “A sorte foi o INEM ter sido muito rápido a agir. Eu tinha caído numa poça de fezes.”

A réstia de dignidade que sobrava esfumou-se aí. Perceberia mais tarde que a propensão para o abismo lhe vinha de uma revolta entranhada que o acompanhava desde a infância. Mas o fundo do poço ainda estava por chegar. A partir daí, começou a dormir em qualquer lado e a comer o que aparecesse. Vendeu pratas e seringas. Arrumou carros. “Comecei a consumir de tal forma que fiquei com 42 quilos e apanhei doenças de todo o tipo.” Deixou de conseguir levantar-se e viu as pessoas passarem sem o ajudar. Contraiu leishmaniose, uma doença habitual nos cães, e entrou em coma. Passou tanto tempo no hospital que nem gosta de falar nisso.

Telmo Simão, 41 anos, trabalha na Associação Ares do Pinhal. Faz a transição entre doentes e técnicos. E acompanha os utentes (Foto: Sara Matos/Global Imagens)

O fim da linha parecia assustadoramente próximo. Mas a bravura tem isto, de saber reerguer quem se declara prostrado. No caso de Telmo, foi buscá-la toda ao filho, com quem manteve contacto mesmo nos dias mais negros. Foi para uma casa de tratamento em Santarém e daí para a Associação Ares do Pinhal, onde prosseguiu a recuperação. Foram três anos de uma luta feroz, que redundaram numa vitória estoica. Na terceira fase da recuperação, foi trabalhar para um armazém. Depois, fez-se operador logístico.

Até que em 2017 foi convidado a ir trabalhar para a Associação Ares do Pinhal. Para fazer a transição entre os doentes e os técnicos. E acompanhar os utentes. Já contou a história dele vezes sem conta. Como quem acena com um pedaço de fé. Na associação, uma IPSS, chamam-lhe um milagre. E de cada vez que a história de resiliência de Telmo ajuda a inspirar outras, o milagre faz-se maior.

“Se vem dar psicologia esqueça”

Usar a experiência de quem tem a rua tatuada na alma para passar uma mensagem de esperança aos que vivem sem teto, quase sempre sem chão, é uma solução adotada amiúde pelas associações que fazem da ajuda aos sem-abrigo uma missão de vida. Alexandra Lopes, 33 anos e sem-abrigo durante um, também o faz, na Médicos do Mundo, uma organização não-governamental que presta cuidados de saúde às populações vulneráveis.

De segunda a sexta, está no Centro Fixo de Rastreio desta ONG, na Ribeira (Porto). Entre outras coisas, recebe quem quer fazer testes ou trocar material. É uma educadora de pares. Uma boa educadora de pares, garante Maria, a enfermeira que trabalha com a ex-sem-abrigo e que é uma espécie de amparo de todas as horas. “É uma peça-chave para chamar as pessoas. E está a safar-se muito bem. Ainda por cima é mais conhecida do que o tremoço.”

Alexandra, portuense de gema, um “ó filha” repetido a pontuar parte das frases, deixa escapar um sorriso tímido. Mas a dureza das ruas ainda lhe molda o rosto. São marcas que resistem ao tempo. Explica-o com uma frontalidade assombrosa. “Na rua, ou aprendes a defender-te ou estás lixada. Tornas-te agressiva, pouco tolerante. A rua é uma selva. Se queres sobreviver, tens de fazer de conta que és o Tarzan. A rua endureceu-me. Deixei de querer ajuda. Perdi a minha identidade. Criei uma muralha da China à minha volta e só agora é que estou a começar a deixar cair os muros.”

Carla Oliveira, 45 anos, orgulha-se de ter hoje um emprego e um ordenado. Trabalha na cozinha do “É um Restaurante”, projeto-piloto de reinserção social lançado pela Crescer – Associação de Intervenção Comunitária (Foto: Gerardo Santos/Global Imagens)

Foram dias de trevas. E noites. Como a primeira. A tal que nunca se esquece. Alexandra não é exceção. Derrotada por golpes simultâneos, embrulhados numa rede da causa-consequência – a morte de um familiar muito próximo, o alcoolismo, a depressão, o fim de uma relação longa, a perda do trabalho que tinha na restauração -, acabou a dormir na Praça da Batalha (Porto), com uma faca gigante ao lado dela, para o que desse viesse. “Tive medo, claro. Não dormi. Não conhecia ninguém. E só pensava: ‘Onde é que eu me vim enfiar?'”

O pior viria depois, à medida que a rua se fazia rotina de todos os dias. A fome. “O pior da rua foi querer comer e não ter.” Entretanto, mudou-se para um cubículo com um amigo que foi como um pai – o verdadeiro nunca quis saber dela, a relação com a mãe nunca foi fácil. À noite, alimentava-se nas carrinhas (das associações). Mas durante o dia não tinha nada. Então bebia. “Às vezes às duas garrafas de vinho.”

Foi nessa espiral de perdição que deu de caras com uma psicóloga da Médicos do Mundo pela primeira vez. Mas a reação não foi amigável. “Olhe, se vem dar psicologia esqueça. Não estou para ouvir ninguém. O meu tempo é restrito. Foi mesmo assim. Demorei muito tempo a dar o salto, porque sou teimosa.” Ficou com o cartão da psicóloga, ainda assim. E uns tempos depois lá se decidiu a aparecer nas instalações da Médicos do Mundo, onde hoje trabalha. Muito desconfiada, a princípio. Ainda se lembra do que lhe disseram: “Tens de decidir. Ou tomas a decisão de ser tratada ou continuas na rua, nessa vida.” Entretanto, diagnosticaram-lhe bipolaridade e começou a ser medicada.

Alexandra não se convenceu à primeira. Nem à segunda. Nem à terceira. Mas aos poucos baixou a guarda. E a vida foi retomando o trilho. A Médicos do Mundo ajudou-a a ir para uma pensão na Rua Fernandes Tomás. Foi há cinco anos. Mais tarde, foi trabalhar para um hostel. E, já neste ano, Raquel Rebelo, coordenadora e diretora de projetos na representação norte desta ONG, convidou-a a integrar o Centro Fixo de Rastreio. Ela nem queria acreditar. “Você não está bem. Quer que eu venha para aqui fazer o quê? Limpezas?” Recorda o episódio com humor. Mas Raquel não queria que ela fizesse limpezas. E a proposta não podia ser mais séria.

Em outubro, começou a nova vida. Hoje, vive com a namorada. Têm um gato. Cozinha. Adora cozinhar. Um dia, gostava de adotar uma criança. E de prosseguir o curso de Criminologia, que iniciou quando, antes das trevas, integrou os Paraquedistas, no Exército. Para já, prefere ficar-se por um pedido mais comedido. “Quero continuar a progredir, a aprender.” Para quem esteve às portas do inferno, uma nesga de céu soa a paraíso.

Visto de fora, deixar a rua pode parecer o passo mais óbvio, o único possível até. Mas a realidade de um sem-abrigo é um campo minado. Quando se bate no fundo, quando até a dignidade foge, é preciso ir arranjar força onde ela não existe para querer voltar à tona. Por isso, ainda há em Portugal perto de 3 400 pessoas sem teto ou sem casa.

“A DADA ALTURA, QUERIA LEVANTAR-ME E JÁ NÃO CONSEGUIA. O MEU PEQUENO-ALMOÇO PASSOU A SER UM COPO DE VINHO”
PAULO CUNHA

Os dados resultam de um inquérito promovido, no ano passado, pela Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas em Situação de Sem-Abrigo. Trata-se de um plano aprovado em junho de 2017 e pensado a seis anos, que visa, em teoria, erradicar os sem-abrigo no país até 2023. A meta tem-se revelado, no entanto, demasiado arrojada. Desde logo, porque nem todos querem deixar a rua. Depois, por dificuldades que vão surgindo na implementação da estratégia. E garantir casa e trabalho a quem se habituou a não ter rotina nem sempre é tarefa simples.

“O que não nos mata torna-nos mais fortes”

Carla Oliveira, lisboeta de 45 anos, uma parte deles passados sem teto, orgulha-se de ter hoje um trabalho e um ordenado. É uma das 12 ex-sem-abrigo que integram o “É um Restaurante”, um projeto-piloto de reinserção social lançado em setembro deste ano pela Crescer – Associação de Intervenção Comunitária e liderado pelos chefs Nuno Bergoense e David Jesus.

Carla está na cozinha. É lá que expia os pecados de um passado turbulento. Aos 14 anos, juntou-se com o homem que haveria de ser o pai dos dois filhos. Aos 16, engravidou pela primeira vez. Já tinha o primeiro filho quando começaram na droga. “Na altura, toda a gente experimentava e também quisemos.” Ainda por cima moravam a dois passos do Casal Ventoso, durante anos um supermercado de droga por excelência. Começaram logo com a heroína. E gostaram. Quatro ou cinco dias depois, estavam a repetir. E assim fizeram vezes sem conta, durante anos a fio. Com drogas de toda a espécie.

“Um dia achávamos que estávamos constipados e percebemos que não, que já era a ressaca.” O vício atirou-os para a cova mais funda. O marido de Carla trabalhava na feira, a ajudar a mãe. Gastavam o que tinham e o que não tinham com os consumos. Quando o filho tinha três anos, Carla teve de o entregar ao avô paterno. O mesmo aconteceria com a filha, que nasceria depois. “Dormia com o meu marido, numa barraca sem porta nem janelas, só com um plástico a cobrir-nos. Muitas vezes queríamos comer e não tínhamos. Levávamos uma vida de miséria.”

Mas nem só de quedas se faz a vida de Carla. Depois de anos a fio de consumo, decidiu, ela mais o marido, que haveria de mudar tudo. “Pelos meus filhos, porque queria estar com eles.” Começaram com os internamentos. Carla submeteu-se a cinco, três para deixar as drogas, mais dois para se livrar do medicamento de substituição. E conseguiu. O marido, falecido há um ano, também. “Só que depois ele entregou-se ao trabalho e eu ao álcool.” Voltou a bater no fundo. Mas ainda não tinha dito a última palavra.

Persistente, toda valentia, teve mais dois internamentos e declarou óbito aos vícios. Não consome há 15 anos e não bebe há uma porrada deles. Esteve um ano e meio aos cuidados da associação Ares do Pinhal. Depois, aproveitando um curso de cozinha que tinha feito já em 2002, integrou o “É um Restaurante”, da Crescer. É uma espécie de estágio de seis meses, que termina no final do ano. Segue-se um estágio num restaurante “normal”.

Depois, os responsáveis pelo projeto decidirão se Carla está preparada para integrar algo maior. “Só peço um trabalhinho que pague razoavelmente, para poder ter uma casa [atualmente, vive numa casa que lhe foi atribuída pela Gebalis – Gestão do Arrendamento da Habitação Municipal de Lisboa], pagar as contas, ter para comer, estar com o meu filho.” Nos tijolos brancos que cobrem a parede da cozinha do “É um Restaurante”, há mensagens, deixadas por clientes, a servir de inspiração. Como aquela em que se lê: “O que não me mata torna-me mais forte”. Carla é a prova disso mesmo.

Mas a rua pode ser um abismo imenso. Além dos vícios, o crime espreita a cada esquina. Pedro Garcia, 26 anos, natural dos Açores e residente na Mealhada, aprendeu-o da pior forma. Retirado cedo aos pais pela CPCJ (Comissão de Proteção de Crianças e Jovens) – “a minha mãe não tinha condições, o meu pai era alcoólico e batia-lhe muito” -, passou anos a fio confinado a colégios que não lhe deixaram boas memórias. “Num deles batiam-nos. Há muita coisa encoberta nos colégios, porque não são tolerados ‘chibos’. Se o mais novo faz queixa, o mais velho vai bater no mais novo.” Pedro assume-o, sem papas na língua, como quem sabe de cor os podres de uma realidade que lhe foi tão próxima.

Pedro Garcia, 26 anos, trabalha por conta própria. Faz distribuição de lenha e limpa pastos (Foto: Maria João Gala/Global Imagens)

Também por isso fugia. Passava a vida a fugir. “Num dos colégios, a janela tinha grades. Disseram-nos que não dava para fugir. Mas nós fugíamos à mesma. Saltávamos um muro com vários metros, por escalada, e lá íamos nós.” A partir dos 17, ficou em definitivo cá fora. Primeiro com amigos. Começou a meter-se em negócios “muito estranhos”. Fazia dinheiro fácil e estourava-o assim que podia. “Cheguei a gastar cinco mil euros num dia.” Deu-se mal, claro. Foi levado para a esquadra “mais de 20 vezes”, acabou no tribunal, levou “com uma data de processos”, foi condenado a mais de dois anos de prisão com pena suspensa (na condição de ser acompanhado pela PAJE – Plataforma de Apoio a Jovens Ex-acolhidos), fez trabalho comunitário. “Paguei tudo o que devia.”

“ÍAMOS AOS CONTENTORES DO LIXO DO SUPERMERCADO, ÀS NOVE DA NOITE. HAVIA LÁ MUITA COISA BOA. SOBRETUDO PÃO E IOGURTES”
PEDRO GARCIA

Nos tempos do descalabro, chegou a passar meses na rua. “Íamos aos contentores do lixo do supermercado, às nove da noite. Havia lá muita coisa boa. Sobretudo pão e iogurtes.” Entretanto, fartou-se de esquemas e arranjou coragem para endireitar a vida. Primeiro foi feirante, depois ingressou no mercado de trabalho convencional. Em 2016, arranjou o primeiro emprego com contrato, como vendedor porta a porta da PT Comunicações. Mais tarde, com a ajuda da PAJE, foi para a restauração. Entretanto, entrou para uma empresa de técnicas e montagens de reparações industriais, mas teve um acidente de trabalho que o deixou com 25% de incapacidade. Hoje, trabalha por conta própria. Faz distribuição de lenha e limpa pastos. Também tem uma casa. E uma companheira. Uma segunda vida onde, por fim, mora a paz.

O casal maravilha

O propósito da Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas em Situação de Sem-Abrigo também é esse. Que histórias como a de Pedro (ou como a de Telmo, ou como a de Alexandra, ou como a de Carla) se possam multiplicar. De resto, o próprio presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, tem enfatizado a necessidade de reforçar o apoio aos sem-abrigo. Além de pressionar o Governo a adotar estratégias e medidas concretas, envolve-se pessoalmente, visitando quem não tem teto, oferecendo-lhes refeições e afeto, idealmente um vislumbre de esperança em dias melhores. Há dois anos, esteve até a almoçar na casa de um ex-sem-abrigo: Paulo Cunha, 49 anos, mais de 20 passados na rua, hoje um exemplo maior de superação e redenção.

Paulo Cunha, 49 anos, mais de 20 passados na rua, e Filipa, a mulher que o arrancou em definitivo aos dias sombrios. Há dois anos receberam em casa, para almoçar, o presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa (Foto: Pedro Rocha/Global Imagens)

Não sem antes atravessar o caminho das pedras. Tinha oito anos quando dormiu ao relento pela primeira vez. Os pais tinham-se separado e ele andava a ser atirado de uma casa para a outra, qual bola de pingue-pongue. Uma noite fartou-se e saiu da casa da mãe, em Algés. E começou a andar. Sem rumo e sem horas. Acabou na Baixa de Lisboa, deitado por cima de um cartão, na arcada do Palácio de Independência (junto ao Rossio), só com a roupa que tinha no corpo.

“Lembro-me que não dormi. Tive frio e medo.” Paulo acabaria por passar anos ali. Primeiro com a ajuda de uma sem-abrigo cega e a boa vontade dos funcionários dos cafés das redondezas, que lhe ofereciam bolos. Depois, a amiga que tinha feito na rua morreu. E teve de se virar sozinho. Tinha uns 15 anos. Começou a pedir para comer. Para enganar a solidão, agarrou-se ao álcool. “Andava sempre a pensar nos meus pais e aquilo acabou por ser um escape. Bebia uma garrafa de vinho como quem bebe água.” Do Rossio foi para a estação de comboios de Santa Apolónia. E a vida descarrilou de vez. “A dada altura, queria levantar-me e já não conseguia. O meu pequeno-almoço passou a ser um copo de vinho.”

Com 30 anos, o vício quase o levou de vez. A Comunidade Vida e Paz foi dar com ele a arder em febre, cheio de tremores, já a espumar pela boca. Deu entrada no Hospital de Santa Maria, onde esteve quase três meses, parte deles em coma. A dada altura, as máquinas deixaram de dar sinal de pulsação e respiração. Chegou a falar-se de funeral. Mas, como que por milagre, Paulo despertou, pronto a agarrar-se à vida com unhas e dentes.

Foi acolhido pela Comunidade Vida e Paz, fez a desintoxicação a frio (“mal me conseguia levantar, tremia como o ramo de uma árvore”) e completou os 12 passos da recuperação em tempo recorde – seis meses. Primeiro ficou a residir na instituição, a trabalhar como voluntário, depois foi para um quarto pago pela Comunidade. Pelo meio conheceu Filipa, a mulher que o arrancou em definitivo aos dias sombrios e o segurou quando a tentação do álcool voltava a chamar por ele.

Foram viver juntos em 2009, numa casa que, a princípio, só tinha um sofá que também era cama e um tanque a fazer de mesa. Mas que, com tempo e suor, se foi fazendo um lar mais doce, mais composto também. Indiferentes às agruras, teimosamente resilientes, casaram na festa de Natal da Comunidade Vida e Paz, em 2010. E ainda hoje são apelidados de “casal maravilha”. Na esfera profissional também não se pode queixar: trabalha há anos como diretor-adjunto do Boletim Informativo do Sindicato dos Profissionais da Polícia. A estabilidade, o sonho de uma vida normal, há muito deixaram de ser ilusão, para se fazerem realidade.

Ainda assim, gosta de frisar que não é mais do que ninguém. Que a história que repete com orgulho é apenas um incentivo para que outros lhe possam seguir os passos. Paulo sabe bem o quão soturna e amarga a rua pode ser. Sabe bem da solidão dos dias feitos relento. Mas a história dele (e de Filipa, e de todas as barreiras que o amor deles venceu) é a prova de que a rua não tem de ser o fim da linha.