Há um mar de oferendas guardadas em Fátima e S. Bento da Porta Aberta

S. Bento, Padroeiro da Europa, leva anualmente ao Gerês dois milhões de devotos

O Santuário de Fátima e o de S. Bento da Porta Aberta, no Gerês, recebem milhões de peregrinos que pedem graças e pagam promessas. Ouro, vestidos de noiva e objetos pessoais são os mais oferecidos a seguir ao dinheiro e às velas. Há quem entregue droga ou escreva bilhetes a pedir ajuda para deixar de "bater na mulher" ou "deixar de beber".

Das centenas de igrejas, capelas e santuários existentes em Portugal onde a devoção popular se manifesta através da oferta de ex-votos aos santos da devoção de cada um, há dois que se destacam: o Santuário de Fátima, com uma média de seis milhões de peregrinos por ano, e o de S. Bento da Porta Aberta, no Gerês, com dois milhões de crentes e turistas. São os dois locais religiosos mais visitados e também os que dispõem de um maior, mais variado e mais valioso leque de ofertas feitas pelos peregrinos. “Em Fátima, não contabilizando nem as ofertas em dinheiro nem em cera, são recebidos milhares de objetos todos os anos que são registados e guardados”, explica Marco Daniel Duarte, diretor do Museu do Santuário de Fátima desde 2008.

Com menos brilho do que as ofertas a Nossa Senhora de Fátima mas com a mesma devoção, no Rio Caldo, Terras do Bouro, S. Bentinho da Porta Aberta, como é conhecido, recebe milhares de bilhetes escritos em contas de supermercado, talões de multibanco ou folhas rasgadas de um qualquer caderno, pedindo a intervenção do santo para resolver os mais diversos problemas. Normalmente, os pedidos são deixados no interior das caixas das esmolas ou junto ao altar do santo. Com os bilhetes, ficam também objetos de ouro, peças de roupa, centenas de vestidos de noiva e de batizado, trajes universitários e equipamentos desportivos. Mas não é raro aparecerem doses de heroína e cocaína acompanhadas por pedidos desesperados para que o santo “ajude a deixar a droga”.

“A droga que oferecem a S. Bento é sempre entregue às autoridades locais e o santuário fica apenas com os bilhetinhos escritos pelos devotos”, garante Fernando Correia, tesoureiro e mesário da Irmandade de S. Bento da Porta Aberta. É a ele que cabe gerir o imenso espólio que está ao cuidado da Irmandade. O museu existente no santuário é pequeno para tanta oferta e contém apenas “uma pequena amostra dos ex-votos existentes”.

Nada do que é oferecido a S. Bento é vendido e o dinheiro é aplicado em obras de beneficiação do espaço e usado para ajudar causas relativas a catástrofes naturais e, por exemplo, no pagamento de bolsas de estudo a estudantes carenciados. Mas a grande riqueza está mesmo nos milhares de bilhetes a pedir e a agradecer a S. Bento, que estão arquivados e que, por serem escritos à mão, com nomes de pessoas e lugares e poderem ser identificados, ainda ninguém sabe muito bem o que fazer com eles.

“S. Bentinho ajuda-me a ser capaz de deixar de trair o meu marido. Eu tento mas não consigo. Ajuda-me”, ou “Por favor, quero deixar de beber mas o demónio tenta-me”, são alguns dos apelos feitos ao santo. Os devotos também pedem saúde, emprego, dinheiro e “a graça de conseguir engravidar”. Há pouco tempo, um pequeno papel chamou a atenção de quem o retirou do altar onde está a imagem do santo: “Ajuda-me a encontrar uma rapariga com quem possa fazer um projeto de vida”.

Entre os milhares de ofertas há bengalas, muletas, chapéus e boinas. Cada um oferece o que pode e os objetos são plenos de significado

“Os devotos dizem que S. Bento não dá nada de graça, que é um santo bom mas vingativo”, afirma Fernando Correia. Portanto, quem vai ao santuário do Gerês pedir, deve depois ir também agradecer. E dizem os colaboradores da igreja que, todas as semanas, há treinadores e dirigentes desportivos a ajoelhar perante S. Bento e aconselham a olhar para os resultados dos clubes (sobretudo os do Norte) para perceber “quem agradece a S. Bentinho e quem só pede sem dar nada em troca”. Cristiano Ronaldo teve uma casa muito perto do Santuário mas ninguém se lembra de o ver na igreja. Dolores Aveiro, a mãe do jogador, foi várias vezes rezar ao santo e, dizem, foi sempre “generosa nas ofertas”.

Joias e fotografias da Guerra Colonial

A Fátima, ao “altar do mundo”, onde vários papas já rezaram, onde presidentes, reis e rainhas ofereceram presentes de vulto, onde acorre gente de todo o Mundo, chegam também centenas de cartas e emails a pedir a proteção da Virgem. No museu e no acervo estão tesouros como o manto da Rainha D. Amélia, e uma improvável custódia da Capela da Quinta da Regaleira (conhecida pelas ligações à Maçonaria) oferecida por António Augusto Potier de Carvalho Monteiro e família. Em 1942, as “Mulheres Portuguesas” ofereceram uma coroa feita com joias doadas por mulheres de todo o país para agradecer o facto de Portugal não ter entrado na II Guerra Mundial. “O Santuário é um repositório único da joalharia em Portugal porque temos aqui as melhores e mais elaboradas joias mas também temos as mais simples. As ofertas representam a história do último século da ourivesaria nacional”, salienta Marco Daniel Duarte.

Os anos da Guerra Colonial marcaram a oferta de objetos como placas, inscrições e fotografias em Fátima e em todos os santuários e igrejas. “Em cada época há oferta de peças diferentes mas há sempre ofertas”, assinala o responsável pelo museu. Naqueles anos de incerteza, sobretudo mães, esposas e namoradas ofereciam o que podiam: pequenas joias como fios e cordões de ouro, brincos e anéis. Os pendentes com a fotografia de alguém que já morreu bem como os brincos de viúva (um estilo de brincos usado por mulheres que perderam o marido) estão expostos no museu de Fátima.

Os militares que voltaram das colónias entregavam a Nossa Senhora as boinas ou os uniformes completos para agradecer a proteção divina. A guerra, as experiências vividas em África, vieram alterar a forma de expressão religiosa dos crentes. Foi com a Guerra Colonial que começaram a aparecer nos santuários e igrejas as primeiras fotografias tipo passe que ainda hoje enchem milhares de caixas nos acervos dedicados aos ex-votos. Algumas fotografias estão identificadas com o nome ou número militar. Contudo, a maioria não possui qualquer indicação, estando catalogadas como “fotografias anónimas”. Objetos em marfim, a pele de cobras e de enormes lagartos que decoram algumas salas anexas às igrejas foram trazidas por militares e oferecidas a determinado santo.

Famosos e anónimos juntos nas ofertas

Portugal é um país laico mas, mesmo assim, é comum chefes de Estado e altos dignatários que nos visitam passarem por Fátima. Os príncipes Rainier e Grace do Mónaco, acompanhados pelos filhos Alberto e Carolina, ofereceram uma medalha quando participaram na peregrinação de 13 de abril de 1964. Em maio de 1993, Lech Walesa, presidente da Polónia, deixou em Fátima uma jarra em cristal e, dois anos depois, a sua esposa Danuta ofereceu uma custódia. Acompanhada pela filha Chelsea, Hillary Clinton, primeira-dama dos Estados Unidos da América em 18 de julho de 1997, doou um estojo com um par de canetas.

Anualmente, a Irmandade de S. Bento organiza um desfile de vestidos de noiva com as ofertas feitas ao santuário. Milhares de próteses e bilhetes manuscritos, a pedir e a agradecer, são o maior espólio deste local de culto

Entre as centenas de objetos pessoais oferecidos a Nossa Senhora estão coisas como umas chuteiras do futebolista Nuno Gomes, depositadas pela mãe. Centenas de outras mães e filhos trouxeram trajes académicos, apontamentos, livros e cadernos, brinquedos, calçado, uma chupeta ou uma fralda bordada.

Os ex-votos mais procurados pelos visitantes são, contudo, as oferendas de vários papas devotos de Nossa Senhora de Fátima. A mais antiga é de Pio XII, uma faixa de sotaina, um paramento litúrgico. Paulo VI deixou a primeira Rosa de Ouro a Nossa Senhora em 1965 e, posteriormente, doou um terço, um báculo, uma patena, um cibório, um cálice, uma alva, uma casula e uma mitra. João Paulo II, além de vários objetos, contribuiu com um dos ex-votos mais simbólicos existentes no santuário: a bala com que sofreu um atentado em 1981, no Vaticano, e que em 1989 foi embutida na coroa que cobre a imagem que está na Capelinha das Aparições. Outra Rosa de Ouro foi trazida por Bento XVI: o Papa alemão ofereceu uma escultura em ouro, repleta de símbolos e alusões a acontecimentos religiosos.

“O Dicionário de Língua Portuguesa diz que a palavra ‘ex-voto’ vem do latim ‘ex voto’, que significa ‘segundo promessa’. Define-a como sendo objeto, quase sempre de índole piedosa, que se oferece a Deus ou aos santos, em cumprimento de um voto”, escreveu Aurora Martins Madaleno, especialista em Direito Matrimonial Canónico, na revista “Gaudium Sciendi”, em junho de 2017.

Como exemplo dos testemunhos de fé popular e devoção religiosa extensiva a reis e plebeus, Aurora Madaleno refere a construção do Convento de Mafra, um ex-voto que resultou de uma promessa feita por D. João V, monarca de Portugal entre 1707 e 1750: se a rainha D. Maria Ana de Áustria lhe desse descendência, o rei mandaria construir um convento. Foi o que aconteceu após o nascimento da princesa D. Maria Bárbara, futura rainha de Espanha pelo casamento com Fernando VI, Príncipe das Astúrias.

Colocar a mão na imagem de S. Bento, beijar as vestes e oferecer cravos fazem parte do guia do devoto

Promessas de Norte a Sul

Nos santuários de peregrinação, em igrejas, capelas e ermidas do país existem miniaturas em cera e em madeira, objetos de prata, ouro ou pedras preciosas, quadros votivos ou painéis, retábulos e variados ex-votos que cobrem paredes interiores dos lugares de culto, onde os fiéis os depositaram em sinal de agradecimento por graças recebidas. Em Elvas, na Igreja do Senhor Jesus da Piedade, telas pintadas em madeira, algumas com 200 anos, assinalam curas e alegados milagres. Na cripta da Igreja de Santo António, em Lisboa, existem milhares de ex-votos em cumprimento de promessas ao santo português. Encontramo-los também numa sala do santuário de Nossa Senhora da Encarnação, bem como no Sameiro e em tantos outros lugares de devoção religiosa.

Na capela de Nossa Senhora da Alegria, no cimo do Outeiro do Castro, freguesia de Almalaguês, em Coimbra, foram encontrados ex-votos, alguns datados de meados do século XVIII, nas paredes do templo. No Santuário de Nossa Senhora de Aires, em Viana do Alentejo, existem doações de fiéis desde o século XVIII. Uma das mais numerosas coleções do Norte de Portugal encontra-se na Casa dos Milagres do Santuário do Senhor de Perafita, em Alijó, Vila Real.

Um espólio de grande importância não só pelo elevado número de peças mas também pelos diversos estilos artísticos. Em Lisboa, a Real Irmandade de Nossa Senhora da Saúde e de S. Sebastião zela pelas ofertas deixadas na Capela da Mouraria. Todos os anos, no primeiro domingo de maio, sai à rua a maior procissão da capital e, entre os milhares de crentes, caminha Marcelo Rebelo de Sousa, devoto fiel de Nossa Senhora da Saúde. S. Gonçalo em Amarante, S. Torcato em Guimarães e a Senhora do Sameiro em Braga são outros dos locais mais procurados para quem pede ajuda e agradece ofertando fotografias, velas, dinheiro ou ouro.

Imelda Marcos ofereceu um terço feito com diamantes a Nossa Senhora de Fátima. É talvez o objeto financeiramente mais valioso do Santuário

No século XX, as dádivas começaram a ganhar outras formas: milhares de vestidos de noiva criam grandes desafios a quem gere os espaços. “Regularmente, enviamos sobretudo para missões católicas em África vestidos de noiva e roupa de bebé que oferecem ao santuário”, frisa Marco Daniel Duarte, o responsável pelo Museu do Santuário. No Gerês, a opção foi outra. Os vestidos estão guardados num armazém mas, uma vez por ano, organiza-se um desfile que também inclui alguma roupa de criança. “É uma atividade que atrai centenas de pessoas para assistir e também de voluntárias para desfilar”, recorda Fernando Correia. Aos vestidos, propriedade da Igreja, associam-se cabeleireiras e maquilhadoras locais que transformam o desfile num evento quase profissional.

Um emigrante português ofereceu a Nossa Senhora de Fátima um terço que fez com pedras do Muro de Berlim. A mãe do jogador de futebol Nuno Gomes ofereceu as chuteiras do filho

A última grande oferta a S. Bento foi feita por uma devota da Ilha Graciosa, nos Açores. Mais de três mil bonecas e brinquedos, dos séculos XIX e XX, que vão ter um local próprio, em remodelação, no Santuário. “S. Bento tem devotos como nenhum outro santo. A maioria são pessoas simples mas com uma devoção tão grande que, através dos bilhetes ou da oferta de sal ou azeite (ou de caminhadas que, por vezes, duram mais de um dia), querem que o santo sinta o quanto é amado”, sublinha o mesário da Irmandade de S. Bento. Da tradição consta dar cravos vermelhos, que estão sempre a decorar o altar. “Aqui parece que é sempre o dia 25 de Abril”, refere Fernando Correia. A oferta das flores nasceu do pedido para que S. Bento tirasse os cravos (uma espécie de verrugas) que alguns crentes tinham nas mãos ou no corpo.

Mas em todos os locais de culto quem vence é a cera. Velas de variados tamanhos e espessuras, braços, pernas, olhos, intestinos, bexigas, próstatas, rins e cabeças mas também alfaias agrícolas, automóveis, motos, casas, barcos e livros, há de tudo. As empresas que fabricam as velas estão preparadas para dar resposta a pedidos invulgares. “A fé é que nos salva”, resume Fernando Correia.

Diamantes de Imelda Marcos

Materialmente, o bem mais valioso que existe no Santuário de Fátima talvez seja o terço com 60 diamantes (à direita) que Imelda Marcos, a ex-primeira-dama das Filipinas, ofereceu em setembro de 1970 a Nossa Senhora. Imelda, casada com o ditador Ferdinando Marcos, era devota da Virgem de Fátima e para pedir ou agradecer algo a Nossa Senhora mandou fazer um terço em que cada conta é um diamante. O terço pode ser visto no museu do Santuário. Em 1986, quando o marido deixou a presidência das Filipinas, o casal foi viver para o estrangeiro, mas na casa onde viviam anteriormente foi encontrada uma fortuna. Imelda possuía um valor incalculável em joias, bem como vestidos e mais de três mil pares de sapatos. Entre os bens foram encontrados diversos artigos religiosos oriundos de santuários de todo o Mundo. Entre eles estava uma imagem de Nossa Senhora de Fátima.

O cordão de ouro da governanta de Salazar

Que D. Maria, a governanta de António de Oliveira Salazar, era católica não é novidade, mas o que poucos sabem, porque não existe um levantamento das oferendas, é que Maria de Jesus Caetano Freire era uma fervorosa praticante de promessas a santos. Uma atenta leitura das atas da Irmandade da Senhora das Dores e de Santa Ana, na Basílica dos Congregados, em Braga, permitiu saber que tanto ela como António de Oliveira Salazar eram irmãos daquela instituição e que D. Maria ofereceu, em data não especificada, “um cordão de ouro” a Nossa Senhora das Dores.

“Vários ministros do Estado Novo fizeram parte da Irmandade e, frequentemente, vinham a Braga participar em cerimónias religiosas”, explica Monsenhor Silva Araújo, antigo reitor dos Congregados e autor de várias publicações sobre o tema. “Pelas atas existentes, sabemos que D. Maria era uma pessoa com uma certa influência e poder.” Na ata onde está registada a aprovação e admissão de novos Irmãos, o nome de Maria de Jesus surge primeiro que o de Salazar. Contudo, alguém mais atento escreveu em cima do nome da governanta o nome do governante, evitando assim possíveis equívocos protocolares. Do cordão oferecido por D. Maria já não há rasto. Não se sabe se foi vendido, derretido para fazer outras peças ou se estará esquecido em alguns dos cofres e armários da Basílica.

Cálice da Confiança da Misericórdia do Porto

Era sabido que no cofre dos serviços administrativos da Santa Casa de Misericórdia do Porto estavam guardadas pequenas peças de ouro e “sem grande valor”, mas só em 2014, quando começaram as obras de restauro do edifício, e foi necessário transferir móveis para outras instalações, é que “houve a verdadeira noção do que existia”, afirma Américo Aguiar, agora bispo auxiliar de Lisboa e na altura capelão-mor da Misericórdia. No interior do cofre estavam milhares de alianças, anéis, brincos e fios de ouro.

“Durante muitos anos, as pessoas vinham oferecer as suas alianças de casamento porque esse era o desejo do marido ou da esposa que tinha morrido”, explica Américo Aguiar. Não havia consenso sobre o que fazer com tantas peças de ouro que, individualmente, tinham pouco valor, mas António Tavares, o provedor, tinha a certeza que, perante a enorme importância afetiva das peças, o ouro não seria vendido. Foi pedida ajuda ao ourives Manuel Alcino, que, após a fundição, criou um cálice para homenagear os benfeitores anónimos. Nasceu, desta forma, o Cálice da Confiança que está exposto no Museu da Misericórdia e que é usado na celebração de eucaristias relacionadas com a instituição.