Há um filme que junta Pessoa, Saramago e João Botelho. A preto e branco

“O Ano da Morte de Ricardo Reis” de João Botelho. Museu da Carris, Lisboa 29.04.2019 © Luisa Ferreira

Fernando Pessoa criou Ricardo Reis, seu heterónimo, que José Saramago fez regressar a Lisboa para escrever um romance que João Botelho transpôs para o cinema. O retrato do país e do Mundo, a ditadura, o fascismo, o nazismo. O amor e a poesia. “O ano da morte de Ricardo Reis” estreia a 1 de outubro. A preto e branco.

Aqui o mar acaba e a terra principia. Chove sobre a cidade pálida, as águas do rio correm turvas de barro, há cheia nas lezírias.” O livro começa assim. Um barco atraca no cais de Alcântara. Um mês depois da morte de Fernando Pessoa, Ricardo Reis desembarca em Lisboa, após o exílio de 16 anos no Brasil. Um telegrama de Álvaro de Campos avisou-o da morte do criador que o fez nascer em 1887, sem dia nem mês, no Porto, sem indicar o ano da morte.

José Saramago traz o médico, monárquico, que não conseguiu suportar a consolidação da República e partiu para o outro lado do Atlântico. O poeta das odes clássicas tem 48 anos, regressa ao país, e fica frente a frente com o seu criador, que tem apenas nove meses, o tempo de uma gestação, para ser esquecido. “O ano da morte de Ricardo Reis”, livro escrito por Saramago em 1984, chega ao cinema pela mão do realizador João Botelho. Com as sombras, o preto e o branco, os cinzentos e a luminosidade que o romance de Saramago pede. As antestreias acontecem hoje, domingo, no Teatro São João, no Porto, e amanhã no Centro Cultural de Belém, em Lisboa. Nos dias seguintes, 22 e 23, há sessões ao público no CCB, às 21 horas. A 1 de outubro, estreia em mais de 20 salas de cinema.

Após meio ano em preparação, João Botelho passou pouco mais de dois meses em filmagens com um elenco escolhido a dedo e cinco mil figurantes

João Botelho trouxe para o cinema textos importantes da literatura portuguesa – Eça, Agustina, Pessoa – e chega agora a vez de Saramago. “Tinha de ser”, confessa. O romance, admite, atingiu-o no cérebro e no coração. Saramago subverte os papéis ao dar existência a quem nunca existiu, ao esvaziar de corpo quem viveu. A matéria é densa. Descrições detalhadas, Pessoa e o seu heterónimo em confronto, duas mulheres, o amor carnal e o amor platónico, um país da sopa dos pobres, um país exemplar nas notícias dos jornais, a ditadura, a censura, a PIDE, o Mundo a ferro e fogo, o nazismo, a Guerra Civil Espanhola, a escolha das cores do fascismo português num comício no Campo Pequeno. Um polícia com hálito de cebola, o gerente de hotel que tudo sabe e quase tudo diz, vizinhas atrás das portas, ricos refugiados espanhóis.

“O texto passa a ser uma matéria com que me confronto.” O realizador mantém-se fiel às palavras e aos diálogos de Saramago, não reescreve textos de escritores, filma a preto e branco para respeitar o realismo, as sombras, a clareza das luzes, os suaves tons de cinzento onde as personagens se movem. A chuva que não pára de cair, as fachadas das casas da época, as filas para a sopa dos pobres, o vulto de Pessoa que aparece e reaparece, as angústias de Ricardo Reis que escreve sem saber se é ele que escreve, o Hotel Bragança (filmado no Hotel Astória em Coimbra), o cais de Alcântara (reproduzido na Carris), o inquérito da polícia do Estado, os dois velhos que se sentam num banco de jardim a olhar o rio e a comentar as notícias, a estátua do Adamastor, as ruas inundadas, o elétrico 28, o cemitério dos Prazeres. Efeitos digitais permitem recuar quase um século, reproduzir acontecimentos que Saramago descreve como a passagem de um grande dirigível nazi, o bombardeamento dos navios que os “marinheiros vermelhos” ocupavam, preparando uma revolução contra o regime. E aquela chuva que não pára de cair.

“O texto de Saramago tem duas coisas fantásticas: a confrontação de um criador e uma criatura e coincide com o que se passa hoje. É outra vez o populismo, o ódio do outro, as divisões, o fascismo, o egoísmo e a ganância das nações”, diz o realizador. O que lhe interessa é o pensamento para que o texto se ouça e a vertigem da história que começa no final de 1935 e se estende por 1936, durante os nove meses em que Pessoa, depois de morrer, revela o que tem para ser esquecido. Botelho, que afirma que o cinema não é literatura, porque é outra coisa, é como se filmam e contam as histórias, vê este filme como uma espécie de regresso da inocência do cinema. “A minha atitude é a luta contra o esquecimento, a afirmação da necessidade da leitura, a consciência de que sem o apoio do Estado não há cinema em Portugal e assim ter uma espécie de dever moral e cívico para devolver esse apoio, participando numa espécie de serviço público, tentando alertar e educar as novas gerações, tentando avivar a memória e o orgulho das gerações mais velhas.” Inquietar, surpreender, arrebatar. “O cinema é também pensamento”, sublinha. Seis meses de preparação, pouco mais de dois meses em filmagens, um elenco escolhido a dedo, cerca de cinco mil figurantes. E assim nasceu o filme.

A musa de carne e osso, mulher do povo

Fernando Pessoa, o criador, conversa com Ricardo Reis, a criatura. Um morto, outro vivo. Observam o país, comentam o Mundo, discutem, falam da vida e da morte, da poesia e do amor, do que veem e não veem. “Ricardo Reis é somente compositor de odes, não um excêntrico, ainda menos um tolo, menos ainda desta aldeia”, retrata Saramago.

O ator Chico Diaz, nascido no México, a viver no Brasil, é Ricardo Reis com sotaque brasileiro, um homem que vive como se não vivesse porque, afinal de contas, é consequência de Pessoa. Chico Diaz leu muito, Pessoa, Ricardo Reis, Saramago, entendeu a curva gramatical do livro, assimilou a matéria disponíveis, os estímulos das palavras. “É uma alegria, uma honra, um orgulho e um privilégio poder viver uma personagem tão emblemática e tão simbólica na poesia da literatura lusófona”, conta, numa conversa a partir do Brasil, a poucos dias de regressar a Portugal.

Fernando Pessoa aparece ao seu heterónimo sem dia certo ou hora marcada. E Ricardo Reis sem saber se é poeta não segue as linhas que o seu criador escreveu pelas suas mãos. “Ricardo Reis é obrigado a mudar a sua poesia, a mudar o seu tempo”, frisa Chico Diaz. E tem dois amores. Lídia, musa do poeta, que desce do Olimpo para ser criada de hotel, mulher do povo, de carne e osso. “Lídia, operária, da classe popular, que apresenta um Mundo que o poeta não conhecia”, lembra o ator. E a jovem Marcenda, filha de notário de Coimbra, da burguesia, intocável, amor platónico. Marcenda tem o braço esquerdo paralisado, inerte, sem vida. É a mão direita que, a cada momento, coloca a mão esquerda no sítio onde acha que deve estar. Esquerda e direita, as mãos, uma que manda na outra, analogia política. E no filho que Lídia carrega no ventre, Chico Diaz vê “a possibilidade de um futuro” que não chega a acontecer.

Saramago vai pormenorizando a sua personagem: “Este Ricardo Reis não é o poeta, é apenas um hóspede de hotel que, ao sair do quarto, encontra uma folha de papel com verso e meio escritos”.

“O que mais espanta no livro é a leitura espantada de Saramago daquele que se contenta como o espetáculo do mundo, se há uma necessidade de transformação desse Mundo”, revela o ator. Interessante é ainda a contemporaneidade da leitura. “Também estamos vivendo momentos totalitários, em que se usa o nome de Cristo para fins políticos.”

Lídia e Marcenda são as mulheres carnais e impossíveis de Ricardo Reis. Victoria Guerra é Marcenda, Catarina Wallenstein é Lídia. É um regresso de Catarina à criação com João Botelho, ao detalhe e rigor que impregna nas suas obras. Catarina é a criada do hotel que se apaixona pelo médico que ela nunca saberá ser poeta. Lídia, musa inspiradora de Ricardo Reis criado por Pessoa, ganha carne em Saramago. “É uma mulher que se apaixona, que existe, que tem corpo, que tem opinião, e que é a consciência do seu país”, afirma a atriz. “A Lídia é uma mulher poderosíssima, não é uma mulher apêndice, é uma voz de Saramago”, acrescenta.

Lídia tem um irmão comunista e vai contando as histórias do seu país, os perigos da polícia do Estado, o plano de fazer cair o regime. No filme, Catarina aparece nesse jogo de luzes, no lugar milimetricamente assinalado pelo realizador, naquele exato recorte de luz. “O jogo de Saramago de confrontar um heterónimo com o seu criador, de os pôr a conversar, a discutir a própria estética, através da realidade política, é fascinante.” Mergulhou no livro de Saramago e voltou à linguagem do cineasta que sabe o que quer e o que não quer. E fez o trabalho dos artistas. “Somos escavadores da memória presente, passada e futura.”

Pessoa. Quem era e como era?

“Eu não sou nenhum fantasma!”, grita Pessoa a Ricardo Reis na escrita de Saramago. Luís Lima Barreto é Fernando Pessoa no filme. Sem chapéu e sem óculos de que não precisa na última morada. Não se sente um fantasma, mas a verdade é que está morto, não se consegue ver ao espelho, não come e não dorme, não se molha com a chuva que cai intensamente.

Toda a sua vida, Lima Barreto deu aulas de Português e foi ator, de manhã na escola, à noite no teatro. “Tenho uma relação muito estranha com Fernando Pessoa, não consigo imaginar quem era e como era”, destaca. Mesmo agora, depois de lhe ter vestido a pele, como morto, a sensação não desapareceu.

Aceitou o convite para interpretar Pessoa, adorou fazer o filme, garante que não construiu a personagem, focou o seu trabalho no discurso de argumentação com Ricardo Reis, nas conversas, nos encontros. “Aceitei, maquilharam-me, fiquei mais pessoano.” E voltou ao romance de Saramago 30 anos depois. Tinha deixado o livro a meio, não percebeu por que Ricardo Reis, que nunca tinha existido, tinha ido para a cama com a criada do hotel. Confessa que foi uma reação estranha e desistiu da leitura. Regressou ao livro e compreendeu por que Saramago tornou Pessoa e o heterónimo suas criações. “O que Saramago queria era revelar-nos a Lisboa dos anos 1930. Saramago serve-se dessas duas criaturas, das suas duas criações, para nos transmitir o ambiente de 1936, para nos mostrar o Mundo.” O que o filme mostra bem. “Além da história, há esse lado da reprodução da época, o ambiente que o Botelho transmitiu muito bem, preocupou-se muito em pôr em realce a época e aquela sociedade da altura”, faz notar. “O Saramago é um grande, grande escritor, e os textos são fantásticos”, remata Lima Barreto.

O ano de 1936 é uma personagem do romance, que respira, transpira, revolve as entranhas. A ditadura do Estado Novo de Salazar, o nazismo de Hitler, o fascismo de Mussolini, a Guerra Civil Espanhola. Saramago foi ao pormenor, ao detalhe histórico, político, social. Tinha uma agenda, a que mudou o ano, onde escreveu, nos dias de 1936, o que tinha acontecido no país e no Mundo. E não havia muitas coisas boas para registar.

“Aqui, onde o mar se acabou e a terra espera.” E assim termina o livro pela mão de Saramago. Pessoa e Ricardo Reis, um morto, outro supostamente vivo, deixam este Mundo, onde já não conseguem viver, e partem como se não tivessem existido. É o fim.