Graça Fonseca: “Nunca temo ser remodelada”

Graça Fonseca, ministra da Cultura (Foto: Paulo Spranger/Global Imagens)

A entrevista, combinada há um mês e meio, ficou marcada para 25 de junho. Graça Fonseca escolheu o palco e foi pontual. É sempre. Entrou no salão nobre do Teatro Nacional de São Carlos, no centro histórico da cidade onde nasceu, Lisboa, às quatro da tarde em ponto, disponível para duas horas e meia de conversa e para uma sessão de fotografia, ao pôr do sol. Num momento muito difícil para a Cultura e sob as críticas do setor.

Na fase de emergência anunciou vários apoios aos trabalhadores da Cultura. Peço que concretize: da linha de um milhão e 700 mil euros, quanto dinheiro já chegou às pessoas?
As 311 entidades e artistas que tiveram apoio já preencheram os documentos necessários. Esta semana (de 22 a 28 junho) terá chegado penso que a 150 deles. A nossa expectativa é que na próxima semana (de 29 junho a 5 julho), todos os pagamentos cheguem às pessoas.

Ou seja, mais de três meses depois do início do confinamento. É aceitável que uma ajuda de emergência siga os moldes tradicionais, morosos, e obrigue a um concurso, pedindo aos artistas projetos e ideias, “que depois se verá”?
Durante os três meses de emergência trabalhou-se em duas frentes. A par do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, num trabalho liderado por mim, a frente destinada a garantir que o apoio aos trabalhadores independentes no âmbito da Segurança Social (SS) iria ser suficientemente flexível de forma a abranger todos os trabalhadores da Cultura, que têm, como se sabe, carreiras muito intermitentes. E esses estão a receber desde a primeira hora. E uma segunda frente, a linha de emergência, que por existir essa tal cobertura para os trabalhadores independentes, seguiu o modelo de apoio clássico, dirigido, como sempre, à criação e à programação. Porque vamos lá ver: mesmo confinados não deixámos de ser criativos. Pessoalmente, tive imensas ideias. O lado criativo é extraordinariamente importante e, na verdade, apareceram a concurso ideias extraordinárias.

Nem todos os trabalhadores tiveram acesso à Segurança Social. E os 30 milhões para apoio à subsistência aparecem apenas em julho. Não chegam tarde?
Na verdade, ninguém estava preparado para o que aconteceu. Nem o Governo, nem as entidades, nem a comunicação social, nem as pessoas. Nunca tínhamos passado pela experiência do recolher obrigatório, situação que mudou a vida de todos e muitíssimo a de instituições e agentes culturais. A minha primeira preocupação foi pensar que apoios de emergência podiam ser criados em duas ou três semanas e fornecer informação sobre como ter acesso rápido aos apoios da SS. Criámos um endereço de email que recebeu centenas de dúvidas. Encontramo-nos agora numa segunda fase, que é a do Orçamento Suplementar, em que há um conjunto de medidas especificamente direcionadas para a área da Cultura, quer para equipamentos quer para ajuda a cada uma das pessoas. Essa linha de 30 milhões de euros é um apoio social adicional ao que as pessoas têm vindo a receber da SS.

Quanto recebem da SS os trabalhadores?
Tendo em conta as carreiras contributivas e percursos de trabalho muito diferentes dos normais, na maioria dos casos o valor foi de 219 euros. Decidimos complementar este valor, de maneira a perfazer o rendimento mínimo garantido. Uma parte chegará às pessoas em julho e outra parte em setembro. Assim que o Orçamento do Estado for aprovado e publicado, o Ministério da Cultura estará em condições de o colocar à disposição das pessoas, depois de preenchido um formulário relativamente simples.

Tem ideia de quantos trabalhadores da Cultura vivem há mais de três meses com 200 euros por mês?
Uma das características da área da Cultura é a ausência de dados quantitativos. Mas os trabalhadores dependentes abrangidos pelo lay-off serão apenas mil, dados da SS.

Dados do Instituto Nacional de Estatística dizem que que há mais de 100 mil trabalhadores empregados na Cultura e que desses a grande fatia está entre os 35 e os 50 anos, intervalo etário onde por norma há famílias a cargo. A ajuda não deveria ter chegado mais depressa?
Se perguntar à Graça Fonseca que não é ministra da Cultura e que não tem obrigação de cumprir com aquilo que sou obrigada a cumprir por lei, sim. Diria isso em relação a todos os setores. Mas, repare: no que me diz respeito, em dois meses foram criadas, lançadas e fechadas linhas de apoio, trabalho que em condições normais não demoraria menos de seis, sete meses.

Como se subsiste com 200 euros?
Mal. Mas, repito, ninguém tem memória de uma situação como esta. Não só em Portugal. Frequentemente, estou em diálogo com os meus homólogos e sei que a situação que se vive em todos os países é muito semelhante.

Na Alemanha, um pedido de apoio tem resposta em 48 horas. Em França, 15 dias, no máximo. Mesmo em Portugal, a Gulbenkian e a Fundação GDA abriram e geriram fundos de apoio em 15 dias. Porque é que o Estado não consegue agilizar os processos?
Os apoios alemães que refere são do Município de Berlim e não do estado federal. No que diz respeito à Alemanha Estado, o pacote de medidas aprovado é muito semelhante ao nosso, não na dimensão, claro, mas na filosofia. Respondendo à pergunta: por uma razão estrutural. Os cidadãos e a comunicação social esperam – e bem – que um apoio que tem na sua origem dinheiro de cada um de nós siga as regras definidas. Uma entidade privada tem sempre menores condicionalismos e obrigações legais de transparência. É assim em todo o Mundo ou, pelo menos, na Europa.

Justificava-se a suspensão desses procedimentos legais, numa fase como esta?
Foram tomadas várias medidas que tiveram como objetivo agilizar ou acelerar o que é o tempo que determinada lei exige para que possa ser aplicada. Mas a política é uma arte complexa – quando se agiliza um processo há a tendência para lançar sobre ele alguma suspeita. O equilíbrio não é fácil.

A legislação laboral não protege os trabalhadores da Cultura. A verba da SS é mínima e o reforço vai chegar só agora. Não será justo admitir que o apoio do Estado à Cultura demorou muito e foi inadequado?
Não considero. É provável que tomando decisões num contexto para o qual não se estava preparado se cometam erros? Sendo a política uma atividade humana, dizer que não seria um absurdo. É provável que daqui a um ano se pense que se podia ter feito de forma diferente? Diria que sim. É adequado à situação o tempo que as políticas públicas de apoio precisam? Não é, de todo. Mas é o tempo a que a máquina está obrigada por razões de transparência. A transparência que cada cidadão exige. Por isso, temos de avaliar o trabalho presente, tendo em conta as circunstâncias do momento.

Num ano tão difícil como 2020, o Governo vai manter as cativações às instituições públicas da Cultura prevista na lei do Orçamento do Estado?
Não há memória de um ano em que tenha sido aprovado um reforço orçamental para a Cultura de 70 milhões de euros. E isso significa um compromisso muito evidente e sério com a necessidade de reforço financeiro para a área da Cultura. Olhando para trás, eu própria penso que levo mais tempo, mas não – sou ministra há pouco mais de um ano e meio. E contando essa história, pode dizer-se que o aumento progressivo do apoio ao investimento público na Cultura, que era um compromisso, foi sendo garantido. O orçamento para 2020 tinha crescido cerca de 10 a 12% relativamente ao ano anterior e chega agora, nesta situação muito difícil, o reforço de cerca de 70 milhões de euros, que é um sinal muito claro de que este é o tempo para dar resposta a uma situação absolutamente inédita. Um reforço inédito em resposta a uma situação inédita.

Não respondeu. As cativações vão manter-se?
Não vou responder por uma razão – depende das necessidades que forem aparecendo. E do que temos de fazer, ou seja, garantir que perante um aumento repentino das necessidades temos capacidade de resposta. A isto chama-se gestão. A gestão que cada um de nós faz em casa e que o Estado tem também de fazer.

Trinta dos 70 milhões do reforço que referiu são dos municípios. Em que medida está garantido que serão para efetivo apoio à Cultura?
Esses 30 milhões são verbas do programa comunitário de apoio que estão na esfera dos municípios para serem aplicados na programação cultural em rede, de forma a que esses municípios, juntamente com as estruturas artísticas, apresentem projetos. E é muito importante que esses projetos aconteçam já neste verão, apoiando financeiramente músicos, escritores, cinema, e dando algo fundamental às pessoas, uma vez que neste verão vamos estar quase todos em Portugal. As direções regionais de Cultura são parceiras das comissões de desenvolvimento regional, precisamente para avaliação das propostas e garantir que a programação cultural é de facto efetiva.

Da chamada bazuca europeia quanto vai para a Cultura?
Essa é a etapa 3 deste caminho. Estamos a trabalhar para que a Cultura e as indústrias criativas tenham um papel central no que é o relançamento da economia. Significa isto que todas as áreas da Cultura terão um lugar neste plano. A relação da Cultura com a Economia é fundamental. Com o fecho do Mosteiro da Batalha ou do Convento de Cristo fecha também todo o comércio circundante. Quando um festival como o de Paredes de Coura fica por realizar há centenas de pessoas que perdem, de repente, três ou quatro meses de rendimento. Termos programação cultural no território é talvez a melhor forma de levar a economia dessas zonas a movimentar-se. O plano de relançamento da economia no âmbito da tal bazuca é uma oportunidade que não deixarei escapar, e será muito importante para o reforço da importância do investimento no tecido cultural.

De que valor estamos a falar?
O programa está a ser elaborado, há de ser discutido em Conselho de Ministros e nessa altura voltaremos a falar.

(Foto: Paulo Spranger/Global Imagens)

Quatrocentos mil euros em compras, a distribuir por editores e livreiros que faturaram menos de 300 mil euros em 2019 (cerca de 500 euros no máximo a cada um) foi o único apoio ao livro, um setor que perdeu em três meses 30 milhões de euros. Acha razoável?
Voltamos ao início da conversa. Nenhum setor estava preparado para uma situação destas e não se pode pensar que o apoio público consegue igualar o prejuízo. A medida tomada foi muito discutida com a Associação Portuguesa de Editores e Livreiros e com a Rede de Livrarias Independentes, estabelecendo este duplo tempo – o tempo dos 400 mil euros para aquisição de livros e o de agora.

Porém, na altura, havia um milhão de euros para um festival de música online. Imagine o que não terá sentido um pequeno livreiro.
Esse tema permite-me falar sobre a tal celeridade. Em oito dias conseguimos definir um modo de apoio a um setor que, excluindo a música clássica, não recebe apoio público. E não estamos a falar só de músicos. É um universo grande – 700 técnicos e 150 músicos – a debater-se com dificuldades em aceder aos apoios da SS. O Estado, tão acusado de lentidão, conseguiu montar o festival em oito dias e cancelar o evento, com a mesma humildade, de forma também muito rápida. Voltando à comparação, vejamos: as editoras e as livrarias que se candidataram, estamos a falar de um universo bem menor do que o da música, receberam o apoio a 100%. É suficiente? Claro que não. Sei também o que as pessoas estão a experienciar. Por alguma razão, as livrarias foram os primeiros, na área do comércio, a reabrir. Estamos agora a trabalhar em medidas a médio prazo.

E que serão?
As que estão no Orçamento Suplementar e que também se aplicam a livrarias, a autores e a editoras. E na fase seguinte, no plano de relançamento da economia, estas questões são fundamentais. Dou-lhe um exemplo: a importância de termos melhores formas de vendas online. Na área da Cultura, a oferta nacional no e-commerce é muito reduzida. Um meio que, se antes era já importante, a pandemia tornou essencial. Todos temos de aprender com o que nos aconteceu e desenvolver ferramentas e medidas de política pública que nos preparem melhor para o futuro. A venda de livros online é uma medida de fundo e uma das formas de trabalharmos em conjunto. Provavelmente, nunca se leu tanto como naqueles três meses de confinamento. Existisse maior capacidade de venda online e ter-se-ia vendido muito mais.

Considerando o deslaçamento entre a leitura e os mais jovens e a concorrência na área do entretenimento, onde estará o livro daqui a uns anos?
Não tenho uma bola mágica, mas uma coisa é certa: nunca me verá pessimista. O país e o Mundo viveram períodos terríveis do ponto de vista económico e social, mas as transformações foram-nos levando sempre para melhor. Gostaria que o setor do livro avançasse cada vez mais para instrumentos digitais, para os e-books.

O IVA do e-book é de 23%. Defende, portanto, a redução?
As medidas fiscais para o próximo orçamento vão ter de ser discutidas com a área dos assuntos fiscais. Até lá, não posso dizer o que defendo e o que não defendo por uma questão de diálogo dentro do Governo. Mas é evidente que as questões fiscais se colocam.

Nos governos de Direita há Secretaria de Estado da Cultura. Nos de Esquerda, Ministério. Na verdade, admitem livreiros, uma das medidas mais eficazes para proteção das pequenas livrarias foi a nova lei do preço fixo, de Jorge Barreto Xavier.
Se falar hoje com os livreiros penso que já não dirão exatamente a mesma coisa.

O Acordo Ortográfico continua a merecer opiniões muito negativas. Como olha a ministra da Cultura para essa eterna polémica?
Falando pessoalmente, posso dizer é que escrevo com o acordo há já alguns anos. No mais, este é um assunto que está, e bem, na alçada do Ministério dos Negócios Estrangeiros. E, portanto, não me vou pronunciar.

Mas faz sentido saber o que pensa a ministra da Cultura.
Não me vou pronunciar.

Está prometida para o final do ano legislação sobre o estatuto do trabalhador de Cultura. Os trabalhadores podem contar com essa nova legislação em 2021?
Se tudo correr como é o meu compromisso, sim.

O que pode falhar?
Daniel Innerarity, filósofo de quem gosto muito, diz que distinguem a atividade política duas particularidades: primeira, situa-se na condição da contingência, segunda, é a arte de lidar bem com a deceção. Ou seja, por vezes, a boa solução não é a que tomaria se fosse livre de a tomar. Nesta matéria, o meu compromisso é de que tudo farei para que em 2021 exista o estatuto do artista.

Para quando o mapeamento do tecido cultural?
Relativamente aos indicadores estatísticos está a ser feito um inquérito a cada uma das pessoas que trabalha na área. Queremos que cada uma delas nos diga o que faz, com quantas entidades trabalha, há quantos anos e em que função. Para que as decisões sejam o mais adequadas possível é muito importante que nos contem a história. Precisamos de dados qualitativos. Até ao final do ano, esse inquérito estará pronto. Quanto ao mapeamento do tecido cultural, há zonas em branco que precisamos de conhecer. Será trabalho para um ano.

O outro grande desafio de fôlego é a criação da rede de cineteatros sem a qual os equipamentos espalhados pelo país são uma espécie de piscinas sem água. Quantos equipamentos existem?
Entre teatros, cineteatros, cineclubes, há 150 registados.

É projeto para levar para a frente?
É um projeto muito importante, que defendo, que é para levar para a frente e no qual começámos a trabalhar em dezembro de 2019. Daqui a uns dias, em finais de julho, colocaremos a discussão pública uma proposta para funcionamento da rede. Sendo certo que terá sempre de ser uma parceria entre municípios e Estado Central.

O Estado contribui com cerca de dez milhões de euros para a Casa da Música (CdM) e com cerca de quatro milhões para Serralves. Mas, olhando para a situação laboral na CdM, e para a demissão do maestro Borges Coelho, parece ter muito pouco poder.
Não concordo. O Estado tem uma função de atenção e vigilância, mas sempre no respeito integral pela autonomia das duas instituições. Não é papel do Estado dirigi-las. Se há algo que não quero é essa função de dirigismo. Comecemos pela CdM. O maestro Borges Coelho enviou-me uma carta em que colocava o lugar à disposição, invocando dois níveis de circunstâncias – de natureza pessoal, que não me compete comentar, e de natureza da própria organização -, adiantando três fatores decisivos para continuar ou não no lugar e para a decisão que teria de tomar : a integração dos trabalhadores precários, a não-retaliação dos trabalhadores e a revisão dos estatutos, de forma a incluir trabalhadores no Conselho de Administração.

A que não respondeu.
Nem podia. A partir do momento em que existem em curso inquéritos da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) não me parece curial que o Governo se antecipe com uma resposta. Agora, se a ACT concluir que há trabalho precário que deve ser integrado, o meu papel será reafirmar essa posição.

(Foto: Paulo Spranger/Global Imagens)

A ministra desconhecia a existência de precariedade na CdM?
A ministra não está no Conselho de Administração. A situação foi colocada à ministra no que veio a público. Nessa altura, solicitou às suas representantes informações sobre o que estava a acontecer.

Concorda ou não com as condições do maestro, nomeadamente a inclusão de trabalhadores no Conselho de Administração?
Não me quero pronunciar sobre a revisão dos estatutos da CdM. Mas não me parece que deva ser feita com objetivos direcionais, a questão deve ser mais vasta e avaliar se há ou não necessidades de alteração. De resto, a questão que o maestro coloca tem fundamentalmente a ver com a forma como é feito o diálogo entre o Conselho de Administração e os trabalhadores. E se houver trabalho precário indevido a questão tem de ser resolvida. A ministra não tem dúvidas. Mas isso não pode ser confundido com revisão de estatutos.

Os representantes do Estado em Serralves informaram a ministra de quantos trabalhadores foram dispensados nesta fase?
A conversa com Serralves foi feita com os dois representes e a presidente do Conselho de Administração. E, que eu saiba, a ACT afirma em conclusão que não encontrou indícios de trabalho precário em Serralves.

Em 2027, Portugal voltará a acolher a organização da Capital Europeia da Cultura. O modelo ainda faz sentido?
Trata-se de uma política europeia que em Portugal teve impacto positivo, nomeadamente em Guimarães e no Porto. Julgo que o papel importante na transformação dos territórios e na criação de polos culturais se mantém e que continua a fazer sentido enquanto política pública que vai unindo diferentes cidades na Europa. A nível nacional, é algo que tem potencial de transformação do território. Várias cidades portuguesas estão já a posicionar-se, num trabalho extraordinário que envolve as próprias regiões.

Num país com mais de 500 escolas de dança e mais de 30 anos de criação, um centro nacional de dança contemporânea é um projeto que se impõe?
Parece-me uma boa ideia. Ainda no anterior Governo chegámos a ter duas ou três reuniões sobre isso. É uma área que temos de retomar porque necessita de um projeto agregador. É um objetivo: falar com quem temos de falar e procurar uma solução, que também não é igual para todas.

O que entende por serviço público de Cultura?
Precisamente o que disse há pouco – aonde há talento tem de haver oportunidade. E que quem vive em Portugal, seja em que terra for, tenha possibilidade e oportunidade de participação cultural.

Pensou muito antes de aceitar o cargo?
Não me foi dado muito tempo para pensar (ri). Não, não pensei muito. Sempre fiz serviço público, estudei sempre em instituições públicas. Toda a vida o que eu fiz foi serviço público e é o que gosto muito de fazer.

Terá ponderado alguns aspetos.
Ponderei se teria condições, desde logo pessoais, para poder pensar o futuro.

Pensou seguramente nos orçamentos. Por exemplo, para 2021 tem prometido bater-se por um aumento orçamental, que não garante. Pode pelo menos garantir que não haverá cortes?
Até à data tenho conseguido. Mas as decisões são coletivas. Na família, quando tomámos uma decisão, tentamos que seja partilhada. No Governo, é igual. A garantia que pode existir é a de que o meu papel é o de tudo fazer para que essa noção de serviço público possa ser concretizada.

O que diz o primeiro-ministro?
Tem naturalmente a mesma visão.

Quem tem andado então a atrapalhar, uma vez que ainda não foi atingido o tão falado 1% orçamental?
Vamos deixar de falar só de dinheiro. Precisamos de associar ao dinheiro projetos concretos. Uma estratégia concreta.

Faltam projetos?
Haverá sempre projetos para todo o dinheiro possível. A Cultura parte de 2015 num patamar muito baixo de investimento. Mas que teve ao longo de cinco anos um acréscimo de 40%. É preciso explicar a todos que quando me bato por mais investimento público não o faço a pensar apenas no apoio ao artista – que é importante e fundamental. Faço-o também a pensar, e muito, na importância de garantir que todos, estejam onde estiverem, têm acesso à cultura.

É dirigente do Partido Socialista, tem peso político. Pode sempre dar um murro na mesa.
Associo o peso que possa ter sobretudo ao que é o meu percurso por áreas muito diferentes, à experiência acumulada. À capacidade de dialogar no âmbito do Governo, de fazer pontes, de conseguir dar a minha visão, afirmar porque é que é necessário mais investimento e que impacto ele poderá ter. Julgo que o tal peso estará relacionado com isto.

Acha que é essa a imagem que o setor tem da ministra?
Podemos nem sempre concordar no caminho por onde gostaríamos de ir, mas pelo menos percebemos as diferenças e aquilo que nos distancia dos objetivos. Penso que é essa a perceção que têm de mim: a de alguém que defende a necessidade de percebermos as razões de não estarmos de acordo porque é esse exercício que nos permite continuar a dialogar. A política exige este diálogo, que só é possível havendo disponibilidade para ouvir. Ao contrário do que se diz, reunimos muito.

Como olha a ministra para o setor?
Um dia perguntaram-me se achava que os artistas se queixavam de mais. Respondi que prefiro mil vezes viver num país onde as pessoas se podem queixar do que em qualquer outra realidade. Algumas queixas serão justas e outras injustas, faz parte da dinâmica. O que me preocupa e ocupa é identificar nas reclamações as que têm em si objetivos que nos devem unir. E procurar respostas. Há, no mundo da Cultura, muitas gerações de instabilidade e de imprevisibilidade. Todo o contexto e toda a história do país fazem com este seja um setor em que ainda faltam muitas respostas e ao qual o futuro tem de trazer diversas mudanças. É assim que os perceciono.

Temeu ser remodelada?
Nunca temo ser remodelada. Vivo mesmo muito tranquila e bem com o que faço. Genuinamente gosto do que faço e quando sair farei outra coisa de que vou gostar e que me irá fazer feliz.

Por exemplo.
Muitas coisas. O meu gabinete costuma dizer que tenho demasiadas ideias por semana. É o temor deles. Sempre fui uma pessoa curiosa, criativa, que tem ideias.

Entre essas muitas coisas está a candidatura à Câmara de Lisboa?
É verdade que tenho, dos seis anos que passei na Câmara Municipal de Lisboa, recordações muito boas, mas sou avessa a respostas taxativas. Olhando para os próximos dez anos, se me perguntar qual é o lugar público que vejo como mais desafiante direi que é a Câmara de Lisboa, ou até outras Câmaras. Mas a vida pode levar outro rumo, o que neste momento não consigo antecipar.

Como lida com as frustrações do cargo de ministra?
Desejaria sempre poder ter mais condições de agilidade. Para poder apoiar de forma mais célere. Dentro do quadro que tenho de respeitar, procuro sempre as soluções mais adequadas ao objetivo. Mas existe sempre a frustração por não poder ser mais rápida. Posso dar um exemplo: quando a tempestade Leslie fez colapsar a abóbada do Convento da Saudação, em Montemor, e me diziam que não havia dinheiro para a reabilitação eu respondia “tem de haver”. E conseguimos um investimento para conter os estragos e iniciar as obras de um convento extraordinário, património do Estado. Fiquei muito feliz.

Em Montemor também há forcados. Se, como disse, a tourada é um atentado a civilização, só pode defender que seja proibida.
Acredito firmemente – e é algo que me define mesmo – que nenhum ser humano pode tratar mal um ser vivo. É um princípio absolutamente estrutural em mim, define-me e aplica-se a cães, a gatos, ao touro. A posição que tenho decorre disto e como, apesar de ser ministra, não deixo de ser pessoa, se vir alguém maltratar um animal intervenho. É isto que me define. Como ministra de um Ministério que tem as touradas no seu âmbito, respeito as minhas atribuições e o programa do Governo. E não estando a questão que coloca no programa do Governo não está também em cima da mesa.

(Foto: Paulo Spranger/Global Imagens)

Como convive com as corridas?
Há questões estruturantes – touradas, canábis, eutanásia – sobre as quais tenho uma opinião que nem sempre é coincidente com a opinião do partido e do Governo ao qual pertenço. Porém, se a minha opinião pessoal não está espelhada no programa do Governo não é relevante, a não ser para mim e para a minha vida.

Defende a eutanásia e a legalização da canábis?
Por natureza, para além de ser alguém que se define nesta relação com os seres vivos, sou profundamente liberal. Julgo que cada um deve poder ser o que é e defender o que defende, desde que respeite o outro.

Em que outra pasta governamental se imagina?
Quando estou muito focada num determinado objetivo estou mesmo muito focada e, portanto, tenho dificuldade em perspetivar-me no futuro. Digo isto sinceramente. Comigo, tudo foi acontecendo.

Que marca quer deixar?
Futuro. Aliás, acredito que seria muito importante termos um Ministério do Futuro. Procuro em tudo o que faço ter uma dimensão de futuro. Perspetivado de forma diferente. Na relação com os artistas, com as estruturas, na forma como as novas gerações olham para os monumentos, como descobrem nomes tão importantes da História de Portugal: Amália Rodrigues, Almada Negreiros, Lourdes Castro ou Paula Rego. O futuro nesta dimensão de orgulho nas pessoas que fizeram história do meu país. Eu tenho imenso.

Não é grande adepta da máscara. Como viveu a pandemia?
Não sou, não sou (ri). Mas já me habituei. Profundamente liberal, defendo acerrimamente a liberdade dos outros e já agora também a minha. E, portanto, vivi com um esforço crescente de adaptação. A não poder estar com os meus amigos, a não poder ver os meus pais, a não poder ir a um restaurante, a um cinema. Custou-me muito o lado pessoal. Não estar com as pessoas. Sou muito uma pessoa de pessoas, preciso de pessoas e vê-las apenas num ecrã de computador não é a mesma coisa.

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