Gaslighting: relações tóxicas que levam à loucura

O termo gaslighting tem origem na peça teatral "Gas Light", de 1938 (Foto: DR)

Há quem consiga colocar os outros a duvidarem da própria sanidade mental. Depois de destruídas a autoconfiança e a autoestima de uma pessoa, as vítimas começam a perder a capacidade de dizerem o que pensam, de tomar decisões e de acreditar em si próprias.

“Isso nunca aconteceu e eu nunca disse isso.” “Não sabes fazer nada bem feito.” “Toda a gente acha que és maluca e que precisas de ajuda.” “Estás a levar isso muito a peito, eu estava só a brincar.” “Se não fosse eu, estavas sempre a meter-te em problemas.” “ Não vais conseguir resolver isso.” “Pára de fazer um drama por tudo e por nada.” Estas são algumas das frases que ouve quem está a ser vítima de gaslighting. Esta técnica de manipulação é usada para “invalidar a perceção do outro, tendendo a distorcer ou a omitir seletivamente partes da realidade da vítima, ao ponto de esta começar a duvidar do seu próprio julgamento e questionar a sua própria razão”, explica Sara Ferreira, especialista em psicologia clínica. “Como disse Joseph Goebbels, ministro da Propaganda de Hitler, ‘Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade’, sendo que, para quem usa o gaslighting como forma de manipulação psicológica e emocional, esta frase pode ser considerada um verdadeiro mantra.” A psicóloga considera que este é um problema cada vez mais comum em relacionamentos pessoais, afetivos e profissionais.

O termo gaslighting tem origem na peça teatral “Gas Light”, de 1938, posteriormente adaptada ao cinema e celebrizada no filme com o mesmo nome, de George Cukor, com Charles Boyer e Ingrid Bergman. A história retrata precisamente um marido que, na tentativa de institucionalizar a mulher para lhe ficar com a fortuna, manipula todo o ambiente doméstico para a levar a pensar que está louca. Assim, o termo começou a ser usado na literatura clínica para descrever esta forma de manipulação.

Como no filme, o agressor costuma ser alguém próximo da vítima. Regra geral é mesmo uma das pessoas em quem ela mais confia: o marido, a mãe, o melhor amigo ou um chefe muito próximo. “Na maioria das vezes, o(a) agressor(a) consegue criar na vítima uma dependência emocional ou psicológica excessiva. Neste sentido, a insegurança e a ansiedade provocadas com as investidas de gaslighting fazem com que a pessoa aceite sem questionar os ‘pontos de vista’ do agressor”, refere Sara Ferreira.

“O agressor cria na vítima uma dependência emocional ou psicológica excessiva”, explica Sara Ferreira, psicóloga clínica
(Foto: DR)

Isto é possível também porque o agressor – tal como noutros tipos de violência ou abuso – tenta que a vítima esteja o mais isolada possível dos outros. “O agressor sabe que é menos provável que alguém esteja sob o seu domínio se tiver outras pessoas para lhe fornecer um ‘teste de realidade’ ou validar as suas experiências. Portanto, não é surpreendente que digam sempre coisas como ‘os teus amigos são todos uns imbecis’, ‘eu sou a única pessoa em quem podes confiar’, ‘as outras pessoas só se querem aproveitar de ti’.”

Quem imagina os manipuladores como pessoas execráveis logo à primeira vista não podia estar mais enganado. Tipicamente, eles são sedutores natos, sobretudo no início da relação. “Até sentirem que têm o seu terreno conquistado, são geralmente pessoas extremamente simpáticas, prestáveis e colaborativas”, alerta a psicóloga Diana Gaspar. “É aquela pessoa que consegue resolver tudo, que apoia em tudo, quase a pessoa perfeita. Ora, a perfeição só existe quando é encenada.” Só com o tempo e evolução da relação este comportamento tende a atenuar-se, revelando-se outro tipo de atitudes e padrões, nomeadamente a violência verbal, o humor sarcástico ou a chantagem.

Viver segundo os limites dos outros

No caso do gaslighting, a manipulação é sempre declarada e intencional – sendo este padrão de comportamento associado sobretudo a pessoas que tendem a desprezar as necessidades dos outros -, mas há outros tipos de manipulação que nem sempre são deliberados. “Todos nós temos a potencialidade de sermos tóxicos e, muitas vezes, podemos tentar manipular os outros sem nos apercebermos que o estamos a fazer. Em certos momentos, e como seres imperfeitos que todos somos, podemos desenvolver ciúmes, inveja e desenvolver um comportamento manipulador e tóxico”, esclarece Diana Gaspar.

Mas a especialista em psicologia positiva, e autora do livro “Atrai pessoas fantásticas para a tua vida – 11 passos para te libertares de relações tóxicas, manipuladoras e das expectativas dos outros”, também defende que são precisos dois para dançar esta valsa: “Só há manipuladores enquanto houver pessoas que se deixam manipular”. Diana Gaspar garante que, com esta frase, não pretende atribuir culpa à vítima, mas antes alertar para o padrão de comportamento que ela apresenta e que é necessário para que o agressor seja bem-sucedido. “As pessoas que se deixam envolver neste tipo de relação, ou estão num momento mais frágil da sua vida, ou têm um grande desejo de aceitação, ou estão a precisar de se sentir mais integradas, e têm dificuldade em perceber quais são os limites relacionais. São pessoas com dificuldade em traçar os seus limites e, por isso, vivem em função dos limites dos outros, secundarizando as suas necessidades.”

“Só há manipuladores enquanto houver pessoas que se deixam manipular”, assegura Diana Gaspar, psicóloga
(Foto: DR)

Apesar desta tática de controlo psicológico e emocional ser transversal em termos de idade, condição socioeconómica, cultural e de género, ela é usada com mais frequência contra as mulheres. “‘Funciona mais’, em parte, porque o próprio gaslighting alimenta-se também dos estereótipos de género, sexistas, que muito mais facilmente tendem a rotular as mulheres como loucas, ciumentas, emocionais, descontroladas, confusas, fracas ou incapazes”, sublinha Sara Ferreira.

Quem procura ajuda sabe que se sente mal, apesar de muitas vezes não identificar claramente a causa do mal-estar. A psicóloga clínica e coach Filipa Jardim da Silva revela que a pessoa manipulada, geralmente, chega a uma sessão de psicoterapia com queixas de ansiedade e/ou depressão, podendo também existir ataques de pânico, alterações de sono e apetite. Exibe também um conjunto de sinais e comportamentos muito sugestivos, fruto do estrago que já foi feito: “Há dificuldade em queixar-se da relação e do outro, assumindo a responsabilidade absoluta por não se estar a sentir bem; um autoquestionamento permanente em relação ao que sente, ao que pensa, ao que faz; crenças negativas que minam a perceção de si; dificuldade em tomar decisões e expressões verbais que traduzem insegurança e submissão, como o pedir desculpa várias vezes, um tom de voz mais baixo e, com frequência, um contacto visual fraco”.

Bandeiras vermelhas

Para quem sofre este tipo de abuso, reconhecê-lo como um problema, sair da relação tóxica e voltar a acreditar em si próprio pode ser um percurso longo. João, de 30 anos, procurou ajuda psicológica por se sentir ansioso, ter diminuído a produtividade no trabalho e por estar, no geral, insatisfeito com a vida. Mas quando Filipa Jardim da Silva lhe começou a falar sobre o chefe, percebeu que o problema talvez viesse daqui. “Havia imensa tensão física, suor, movimento na cadeira”, recorda a psicóloga. Seguindo essa pista, aprofundando o tipo de relação entre o paciente e o chefe em questão, percebeu que João o admirava profundamente mas, apesar de noutros tempos ter existido respeito e incentivo, a dinâmica transformou-se quando João ganhou visibilidade e responsabilidade na organização.

“Quando as interações com uma pessoa geram em nós insegurança, há algo menos bom na dinâmica relacional”, reconhece Filipa Jardim da Silva, psicóloga clínica e coach
(Foto: DR)

“Várias interações eram desrespeitadoras, criando a perceção de que nada do que fazia era suficientemente bom, gerando uma tensão permanente com telefonemas que tinham de ser atendidos no imediato e emails escritos em letras maiúsculas salientando erros.” João estava focado em receber os difíceis mas tão desejados elogios do chefe, apesar de três anos de críticas permanentes e coação. “Não tinha consciência do nível de toxicidade desta relação, colocando em si a responsabilidade de tudo o que corria menos bem e naturalizando a exigência e estilo de comunicação como sendo algo comum na sua área de trabalho.”

Segundo a profissional, há várias “bandeiras vermelhas” que nos devem deixar alerta para este tipo de manipulação: sentirmos que as nossas emoções, necessidades e opiniões são minimizadas; não existir espaço para diálogo em caso de conflito; haver situações e factos verdadeiros que são negados e desconstruídos pelo outro; e, em todas as situações, a culpa acabar invariavelmente por ser nossa no discurso do outro. Mas Filipa Jardim da Silva assegura que a forma melhor e mais simples de avaliamos o tipo de relação que temos com os outros é sempre a forma como nos sentimos. “Uma relação saudável tem o poder de nos fazer sentir apoiados, seguros e valorizados pela pessoa que somos. Quando, pelo contrário, as interações com uma pessoa tendem a gerar em nós desconforto, inquietude, autoquestionamento e insegurança é sinal de que há algo menos bom na dinâmica relacional.”