Usam peças em segunda mão por convicção. Em nome da sustentabilidade ambiental, da poupança económica, de uma estética vincada e muito própria. Por educação também. O negócio cresce e o freeganismo, que bate o pé ao consumo desenfreado, vai despertando em Portugal.
Era miúda e metia-se nos armários da avó Augusta, que vestia diferente das outras senhoras e aceitava roupa de pessoas que já não a queriam usar para distribuí-la por gente que precisava. Habituou-se a esse vem e vai de peças dos outros e ao lava-se, passa-se e estão prontas a usar outra vez. Perdia tempo a apreciá-las e ainda hoje gosta de prestar atenção às texturas, aos padrões, às costuras, às etiquetas, à forma como a roupa é feita. Comprou a primeira peça de roupa usada quando era adolescente, há mais de 30 anos. Um par de calças de ganga coçada com a cintura mais baixa do que o habitual na altura, no centro comercial Stop, no Porto.
A partir daí, Patrícia Vieira Campos, 50 anos, do Porto, funcionária pública, aluna de doutoramento em arte dos media, não olhou para trás. Comprava roupa usada nas viagens que fazia ao estrangeiro, ia à Vandoma vender e comprar. “Descobri que era uma boa solução, que acabava por ser mais barata, e que encontrava coisas únicas, mais bem feitas e mais bonitas”, conta. Peças resistentes que duram mais do que uma vida. E compôs o seu estilo. “As peças têm muita personalidade em segunda mão.” A moda e o lixo entram na conversa. “Fazemos tanto lixo, temos tanto lixo em todo o lado. Na moda, a ideia é estar sempre a mudar, não faz sentido comprar coisas novas quando há tantas por aí mais baratas e únicas.”
A filha, Frederica Vieira Campos, 19 anos, a estudar harpa em Londres, no Royal College of Music, concorda. “Hoje em dia, não faz sentido este consumo desenfreado, temos de deixar de produzir e usar o que já temos”, diz. Em pequena, usava roupa que já não servia aos primos, cresceu e continuou a usar roupa e adereços de outros, como os sapatos da mãe que alargaram e ficaram perfeitos para o seu pé. “Por onde já andaram e por onde vão andar”, comenta a mãe. Frederica veste um casaco em segunda mão que lhe custou cinco libras (5,85 euros) e um cachecol usado de dez libras (11,70 euros), costuma comprar roupa usada numa aplicação, revela que o Instagram é cada vez mais utilizado para essas vendas e compras. No ano passado, comprou um vestido por três libras (3,51 euros) para o baile de gala do colégio. Anda a pensar em dar andamento à roupa que tem parada no armário, emprestá-la durante um mês pelos amigos. Depois decidirá o que dar e o que volta à base. Frederica descobriu o seu estilo também. “A normalidade já é ser ambientalmente consciente, ter um estilo próprio, comprar em segunda mão. As pequenas lutas podem ser feitas nas rotinas, sem grandes incómodos, sem fazer parte do sistema”, realça.
“O consumo desenfreado não faz sentido”
Patrícia Vieira Campos
Funcionária pública
O sistema tem um número surpreendente. Todos os anos, os portugueses deitam 200 mil toneladas de roupa ao lixo. É uma estimativa da Agência Portuguesa do Ambiente que tem em conta o potencial de resíduos têxteis que existem no total de resíduos urbanos, incluindo a recolha seletiva e indiferenciada. Em 2030, prevê-se que o volume total de resíduos de vestuário possa chegar aos 148 milhões de toneladas, o que equivale ao desperdício de 17,5 quilos que cada pessoa coloca no lixo por ano. E a cada segundo que passa um camião de lixo de roupas é queimado ou enviado para aterro em todo o Mundo – e as roupas de tecidos não biodegradáveis podem ficar até 200 anos nos aterros.
Foi uma notícia que mudou a perspetiva de Maria Luís, 19 anos, natural do Porto, estudante universitária de Biologia, vegetariana há quatro anos, vegan há dois. Leu-a, releu-a, pesquisou, refletiu. “Para cada par de calças de ganga são gastos sete anos de água que uma pessoa beberia. Não tinha a noção de que a moda rápida tinha tanto impacto ambiental. Quando comecei a ler essa notícia, fiquei chocada.” Há um ano que veste roupa usada, já gostava das peças, do conceito, por vezes acompanhava as amigas a lojas de segunda mão. Agora usa a roupa até acabar, o seu armário é mais pequeno, não está cheio, tem quase uma dúzia de cruzetas vazias. E, como sabe que o preconceito existe, avisa: “Não é roupa para velhos”.
“Há armários cheios de roupa bonita que pode ser usada”
Maria Luís
Estudante de Biologia
É uma questão cultural, de escolha, de consciência. “Não estamos educados de que isto é uma opção. É uma questão de educação e de promoção, é preciso normalizar este tipo de práticas.” Não é fácil, sabe disso, há um sistema montado, um mercado instalado, moda atrás de moda, coleção atrás de coleção. “É um ciclo muito interessante, muito rápido, um sistema muito esperto para as empresas. No mundo das redes sociais, tiram-se fotos ao que é mais trendy, ao que está mais na moda. Dois meses depois, tudo muda e é preciso comprar mais roupa.” Um ciclo de pescadinha de rabo na boca. E há ainda o politicamente correto. “A pressão social torna isto difícil, há sempre o estar na moda.” Maria não cede, continua a procurar roupa em segunda mão em lojas na Baixa do Porto, há mais de dois anos que não compra calças de ganga, manda recado para que não lhe ofereçam roupa no Natal. “Temos de ser mais conscientes, é importante reduzir, há armários cheios de roupa bonita que pode ser usada.” E, pelas contas que fez, compensa, financeiramente falando. Roupa mais barata, uso mais consciente. Só que este não é o cenário habitual. “Estamos melhor do que o que estávamos, mas em comparação com outros países estamos muito atrás”, observa. Os amigos espalhados por diversos países comprovam o que diz. Pela parte que lhe toca, não vai mudar. “Não é a única coisa que vai salvar o Mundo, mas cada contribuição ajuda. A minha contribuição é ser vegan e usar roupa em segunda mão.”
O freeganismo encaixa nesta visão do Mundo. “O freeganismo é uma filosofia de boicote ao consumo e de utilização daquilo que é considerado pela sociedade capitalista como desperdício”, refere Pedro Costa, que, em 2016, criou Freeganismo Portugal, grupo privado no Facebook, hoje com mais de 6 600 membros que dão o que não precisam. Roupa, mochilas, produtos de higiene, entre tantos objetos. “Os freegans também recolhem roupa do lixo ou partilham roupa usada em feiras de trocas”, diz, acrescentando que nota uma maior preocupação acerca do desperdício, sobretudo no último ano.
Vestuário com história, peças com personalidade
Há três anos que Pedro Pereira, de 36 anos, barista do Porto, compra toda a roupa em segunda mão. Por várias razões. “Por uma questão de preço, é muito mais barato. Compro peças que estão quase novas a um bom preço.” Pedro veste um blusão de ganga de marca que lhe custou 35 euros, novo andaria pelos 120. Nos pés, sapatilhas usadas, de marca também, por 20 euros, novas estão por 80 ou 90. Por outro lado, o que vê nas montras por estrear não lhe enche o olho. “Não gosto do estilo, é tudo muito igual, a qualidade da roupa não é a melhor.” Faz todo o sentido reutilizar, na sua opinião. Pedro não é de modas. Compra em lojas, em sites, já tem vendedores habituais, de confiança. Começou por comprar peças em segunda mão, conjugando com alguma roupa nova. Em Berlim e em Edimburgo, em algumas viagens que foi fazendo, constatou e entendeu a normalidade de reaproveitar vestuário. Hoje, confessa, tem muito menos roupa e nunca lhe fez confusão de onde vem ou quem usou as peças que compra. “Não carrego a carga de outra pessoa”, garante. E, pelo Porto, foi assistindo ao aumento do negócio. “As pessoas vestem da mesma forma as peças que ditam a moda. Mas, cada vez mais, procuram a sua individualidade, peças únicas.”
“Compro peças quase novas a um bom preço”
Pedro Pereira
Barista
A roupa não é apenas roupa, simboliza um circuito pesado, alimenta uma máquina que não dorme. A indústria da moda tem em cima dos ombros 10% das emissões de dióxido de carbono e poderá atingir os 26% até 2050. Só 20% das roupas recolhidas no Mundo são recicladas e menos de 1% dos materiais usados no fabrico do vestuário são reciclados para novas peças. Com esses cenários, a consciência ambiental ganha força. O movimento “No buy year” ou “No spend challenge” ou ainda “No shopping year”, com origem nos países anglo-saxónicos, quer conquistar adeptos em todo o Mundo para que não comprem uma única peça de roupa durante um ano, neste caso o de 2020, em nome de hábitos de consumo mais sustentáveis. É um aviso à indústria têxtil e uma forma de exercer pressão sobre quem manda na moda.
A venda de roupa usada é um negócio que tem vindo a crescer. Há mais espaços, mais procura, mais oferta. A loja “Mão Esquerda”, na Baixa do Porto, tem roupa usada, retro, vintage. É um projeto de Carolina Mendonça e Lígia Sousa que procura objetos de design, de roupas, malas e outros adereços para homem e mulher. “Há uma tendência crescente, há uma procura com mais curiosidade. É mais uma curiosidade positiva do que uma estranheza negativa”, explica Carolina Mendonça. O turismo ajudou, considera, os clientes têm todas as idades, as roupas são compradas a fornecedores japoneses, holandeses e alemães. Há quem procure pechinchas, há quem chegue com uma ideia muito clara do que procura.
“Primeiro estranha-se, depois entranha-se”
Anabela Sampaio
Comerciante de roupa usada
Anabela Sampaio terá sido a primeira a vender roupa usada no Porto. Começou há 25 anos, há três voltou ao Centro Comercial Cedofeita com a Belinhas Vintage. São cerca de 40 metros quadrados de loja, com roupa, malas, sapatos, objetos decorativos, peças à consignação. A procura tem aumentado. “Primeiro estranha-se, depois entranha-se”, sublinha. A crise económica teve o seu papel. “O raciocínio teve de mudar.”
José Reis, 35 anos, assessor de comunicação do Teatro Municipal do Porto, natural de Vila Nova de Famalicão a viver no Porto, compra roupa usada há mais de dez anos. Primeiro, por uma questão de afirmação. “Procurava marcar um estilo, procurava outro tipo de peças.” Fintava o convencional e tradicional, o que toda a gente comprava e usava, começou a frequentar lojas de roupa em segunda mão, que eram poucas. Daí para as preocupações ambientais foi um pulo, focou-se num estilo mais sustentável e ecológico, construiu o seu estilo, vincado e muito próprio, espécie de imagem de marca, mistura roupa nova mais básica com peças em segunda mão, únicas, com personalidade. Faz combinações, usa lenços, luvas, gravatas, malas de mão, casacos compridos, sem prazos de validade na cabeça. Não há peças para uma única estação, há peças que se conjugam para qualquer ocasião, há peças usadas que se oferecem e se recebem de amigos que sabem o valor que se dá à roupa que foi de outros.
José Reis destaca o tipo de tecidos, os padrões mais retro e não usuais, as texturas que resistiram à uniformização das modas, as cores, a qualidade da produção de outros tempos, a resistência das peças mais antigas. É roupa para a vida, é aquela peça que marca a diferença. “Isto é isto, mas pode ser outra coisa.” De onde vem, como ali chegou? Quem a vestiu, de quem foi? São mistérios que fascinam. “Não sabermos a história é mais interessante, é possível criar uma história, vestir uma história criada por ti que pode ser ou não ser.” Já se deparou com lenços semelhantes ao que o seu avô usava. “É interessante esta rotatividade de estilos e de peças.” Vasculhar para não comprar, reaproveitar para não acumular.