Filhos das crises. Histórias duras, memórias cruas

Emília Alvim, 97 anos, viveu a II Guerra Mundial e esperou que o conflito terminasse para casar, pois "já havia gasolina, já havia comida" (Foto: André Gouveia/Global Imagens)

A II Guerra Mundial colocou pobres em filas para o pão. A ditadura separou famílias. África mora no peito de um passado feliz. A troika obrigou a uma nova emigração. Recordações de crianças em momentos marcantes da História de Portugal.

O pai foi preso pela PIDE na madrugada de 3 de dezembro de 1948. Alberto Serrano, filho único, tinha quatro anos e não se lembra se houve despedida. A memória anterior a esse dia pára na sua humilde casa em Alcobaça, com uma trapeira, e nas brincadeiras com o pai. Prendiam um isqueiro num fio para fazê-lo deslizar da cabeceira até ao fundo da cama como se fosse um funicular. A memória volta a dias depois da prisão do pai, Albino Serrano. A mãe fez as malas para irem viver com os avós paternos e um tio, em Alcobaça. Família de trabalho, a mãe teve de procurar emprego. Arranjou-o numa fábrica de fiação, seis quilómetros a pé para cada lado, de dia e de noite, ao sol e à chuva, trabalho duro, por turnos.

“Na prática, a prisão do meu pai tornou-me órfão de pai e mãe.” A mãe com horários que não lhe permitiam uma presença regular junto do filho. O pai preso na cadeia do Aljube, aos 25 anos, por ter distribuído propaganda antifascista e contra Salazar. “Quando foi conhecida a sua localização e a possibilidade de ter visitas, recordo ter ido a Lisboa com a minha mãe. Tenho gravado o momento em que no parlatório, separados por duplo vidro com uma grade interior, a minha mãe pediu ao guarda que ouvia a conversa que me levasse a dar um beijo ao meu pai, o que foi recusado.” As visitas eram penosas física e emocionalmente, longa distância, raros transportes, pernoita em Lisboa.

Em março de 1949, o pai foi transferido para Caxias, o que dificultou a logística das viagens. Não tem recordações daí, talvez uma ou duas visitas. Em janeiro do ano seguinte, julgado e condenado pelo tribunal plenário, o pai foi transferido para a cadeia do forte de Peniche. Alberto tinha cinco anos, a distância era mais curta, visitou o pai várias vezes. “Durante todo o tempo de cativeiro, o meu pai aproveitou todos os meios que lhe foram permitidos para estudar francês, inglês e contabilidade. Quando o visitava, em Peniche, mostrava-me os seus cadernos e sempre me dizia para estudar muito.” Com seis anos já sabia ler e escrever e enviava postais ao pai. “Uma vez por outra, conseguia construir um ou outro simples brinquedo em madeira que me dava durante as visitas.” Todos os cadernos, muitos postais e cartas foram oferecidos e estão expostos no Museu Nacional Resistência e Liberdade.

A infância de Alberto Serrano ficou marcada pela prisão do pai, Albino Serrano, perseguido pela PIDE. As visitas à cadeia de Caxias eram penosas
(Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens)

“Durante todo o tempo em que esteve detido, e graças ao esforço abnegado da minha mãe, nunca passei fome, nunca fui descalço para a escola, as roupas e o calçado eram recuperados vezes sem conta.” Não pedia brinquedos no Natal. Frequentou gratuitamente o Jardim-Escola João de Deus, a escola primária e um colégio até ao antigo 5.º ano do liceu. “Crescer foi aperceber-me dos sacrifícios feitos pela família perante uma situação tão difícil, senti sempre que era em mim que se concentravam todos esses sacrifícios, para que eu pudesse estudar.” Licenciou-se em Físico-Química.

O pai saiu em liberdade quatro anos depois de ser preso e não teve dificuldade em arranjar trabalho, tinha sido funcionário público, escriturário da estação do sobreiro de Alcobaça. “Alcobaça era, ao tempo, uma terra de elevada consciência republicana e as pessoas eram reconhecidas pela sua competência e honestidade.” A adolescência foi passada com o pai em casa. “Sempre me deixou ler o que ele lia, guardou sempre para si o que tinha passado na prisão. Só muitos anos depois escreveu dois livros, não editados, com memórias suas e de outros companheiros de cativeiro.”

Alberto desfia memórias que guarda. “Nunca me moldou, deixou que me moldasse por mim próprio”, confessa. E hoje, diz, cá está com 75 anos na senda do pai, de valores que transmitiu aos filhos e netos. Valores de integridade, liberdade, antiopressão, honestidade, seriedade.

Albino Serrano, pai de Alberto Serrano, escreveu dois livros em que recordou os tempos de cativeiro. “Caminhos da resistência e da esperança” é um deles
(Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens)

A ditadura separou pais e filhos, abriu feridas. Em maio de 1961, Maria Machado Pulquério tinha dez anos e passou à clandestinidade. Juntou-se aos pais e à irmã em Odivelas, ajudava-os na tipografia que imprimia o “Avante!” e outros panfletos em papel muito fininho para esconder da PIDE. Até aos oito anos, viveu com os pais e as irmãs em Vale de Vargo, Serpa, entretanto passou para casa dos avós maternos e tios e viveu ainda com os avós paternos e um tio num monte nos arredores de Beja. “Para mim, que era uma criança, o que mais me entristecia era estar separada dos meus pais e saber que era complicado e perigoso virem até ao monte para nos visitarem.” Acabou a instrução primária, juntou-se aos pais e a uma vida de clandestinidade. Nomes falsos, moradas falsas. Viveu em muitas casas. De Odivelas passaram para a Damaia.

Maria ocupava-se da composição e revisão do “Avante!”. A tipografia era rudimentar, era preciso arranjar uma desculpa para ir a casa dos vizinhos verificar se se ouvia o barulho das máquinas. A telefonia estava sempre ligada para abafar o ruído do prelo. A clandestinidade era difícil. “Se era para os adultos, mais ainda era para as crianças. Não podíamos ter grandes relações com os vizinhos, só as estritamente necessárias para podermos dar uma aparência normal e não levantar suspeitas, o que levava a que não fosse habitual entrar em casa deles e eles na nossa. Não se podia ir ao cinema, nem mesmo ao café, cada vez que se ia à rua tínhamos de estar com os sentidos alerta para detetar alguma situação estranha.”

Brincar era um momento raro. Mais uma mudança, mais uma casa com um jardim à frente numa zona de vivendas. Entretinha-se a tratar das flores e quando os pais tinham de sair, e só regressavam de noite, esperava-os com as luzes apagadas. “Nessas alturas, ficavam as janelas todas fechadas e eu lá dentro sem fazer barulho, espreitando por uma fresta, pensando no que faria se lhes acontecesse qualquer azar.” Dali passaram para um terceiro andar em Benfica, onde sacudiu um tapete para a rua e um polícia entrou em casa e o pai, com toda a calma, resolveu a situação. Mais outra casa em Rio de Mouro com um minúsculo quintal onde plantavam couves e alfaces e criavam coelhos. Mais uma mudança de casa para Idanha, Belas, um rés-do-chão com muito campo à volta. “Apesar dos cuidados a ter, ali foi onde brinquei mais. Íamos com a minha irmã e o meu pai jogar à bola e correr pelos campos, de onde trazíamos flores campestres para oferecer à nossa mãe, que adorava.”

Em maio de 1961, Maria Machado Pulquério tinha dez anos e passou à clandestinidade. Juntou-se aos pais e à irmã em Odivelas. Ajudava-os na tipografia que imprimia o “Avante!”
(Foto: Paulo Spranger/Global Imagens)

“Vivia-se com medo, é óbvio que havia medo, mas também não podíamos estar sempre a pensar nisso”, contrapõe. Em agosto de 1968, os pais foram presos, pai levado para Peniche, mãe para Caxias, julgados por atividades contra a segurança do Estado. Maria não podia vê-los. A mãe foi libertada em 1972, o pai em 1973. Reencontraram-se no 1.º de Maio depois do 25 de Abril. Apanhou um táxi com os dois filhos pequenos e o companheiro, todos na clandestinidade. Maria tem 70 anos, foi funcionária do PCP, fez parte do sindicato da administração local, em 1966 estava na então URSS a frequentar o curso de Filosofia, Economia Política, História do movimento comunista e do movimento sindical mundial, onde conheceu Raimundo Narciso, seu marido.

O mar num búzio, carnavais nas ruas

O búzio que encostava ao ouvido trazia-lhe o som do mar da praia das Chocas tão distante da Figueira da Foz. O dialeto suaíli e português dos macuas veio consigo e, por vezes, pedia que lhe fizessem as sandes da dona Varssante com duas fatias de pão, tomate e alface dentro, tostadas ao lume. E quantas vezes dançava como se tivesse chocalhos nos pés como fazia em Nampula, Moçambique, onde nasceu há 49 anos. Manuel Santos Maia, artista plástico, José Maia como curador e professor, tem os sabores e os cheiros de África entranhados, são intuitivos. E esse passado, que não se descola da alma, faz parte da sua arte desde 1999.

Neto de construtor civil, o pai tinha lojas de quase tudo e fazendas de algodão em Nampula. A mãe era dona de casa, cuidava dos quatro filhos. Memórias felizes, de dias soalheiros, o verão como paraíso. “O núcleo familiar estava sempre presente. Brincava com os meus amigos, dançava nos passeios a imitar que tinha chocalhos nos pés.” Os passeios fora da cidade, a casa na praia das Chocas, os instrumentos de desenho do avô que usava para fazer os seus traços de menino. As brincadeiras na rua, no parque, num jardim ao pé de casa. Em setembro de 1976, aos seis anos, saiu de Nampula com a mãe, os irmãos, a avó. O pai regressaria mais tarde, no início da década de 1980. “Estávamos colados à minha mãe, muito próximos da mãe, e quase não existia espaço. O avião fez uma paragem em Luanda, onde estava muita gente.” Aterraram em Portugal, foram para a Figueira da Foz. Lembra-se do seu primeiro aniversário em Portugal. “O bolo era muito simples, tudo era dececionante, tudo era muito escuro, tudo era muito frio.” A avó começou a usar xaile. “Camadas dentro de camadas, as roupas eram pesadas.”

Entrou na escola primária aos sete anos, na faculdade foi estudar belas-artes para o Porto. Em 1999, deu início ao projeto artístico “Alheava”. Um mês depois de a avó Celeste morrer ninguém lhe falava de África. “Percebi que mais ninguém contava histórias de Moçambique, ninguém falava desse passado.” Foi esse vazio que lhe encheu a arte. Mergulhou no espólio de imagens, filmes, certidões, nos álbuns de recordações, nas fotografias que o pai tirou. Na revisitação de memórias familiares viu um foco maior: a História de Portugal. Moldou a sua casa de Nampula num monólito branco, expôs fotografias, trabalhou esculturas em pau-preto, mostrou os caixotes de madeira que trouxeram os haveres de África. As inquietações entranharam-se na sua arte. “Porque não se fala do passado? Qual o trauma? Como são os objetos e o que contam? Quem os fez e para quem foram feitos? Quem são essas personagens quando falam do colonizador e dos retornados? Portugal alheou-se deliberadam ente relativamente ao passado colonial que não quer ver.” É uma narrativa complexa.

Manuel Santos Maia, artista plástico, José Maia como curador e professor, tem os sabores e os cheiros de África entranhados. E esse passado faz parte da sua arte desde 1999
(Foto: Pedro Correia/Global Imagens)

José Maia fala de alheamento, invisibilidade, um legado que não pode ser negado ou apagado. “Alheava”, o seu projeto artístico, é um caminho, um percurso que dificilmente terá fim. É a reconstrução de um passado vivido em Moçambique, em que assume diferentes papéis: artista, historiador, arqueólogo, encenador, etnólogo. Homem e menino. É uma intimidade documentada. “Parti da memória individual e familiar para abordar o alheamento de Portugal face ao passado colonial e pós-colonial.” Em 2014, quase 40 anos depois, voltou a Moçambique. E foi como se tudo estivesse no seu lugar.

Maria Fernanda tinha seis anos quando entrou no navio “Príncipe perfeito” com os sete irmãos, os pais e a avó. Foram 19 dias no mar em direção a Lourenço Marques, Moçambique. O pai, escrivão no Tribunal São João Novo, no Porto, tinha pedido transferência para África. Moçambique está cheio de boas recordações. No início de fevereiro de 1975, entrou num voo da British Airways que descolou só com mulheres e crianças. Enquanto subia as escadas do avião, confessa, pensou que não se importaria que lhe partissem as pernas para não deixar aquela terra. “Não queria vir-me embora.”

Quando chegou a Moçambique, entrou na escola, brincava na rua até às nove da noite, à cabra-cega, às escondidas, à macaca, aos berlindes. Na adolescência, havia bailaricos em garagens, sessões de cinema, idas à piscina, carnavais na rua vestidos de hippies com flores na cabeça e chinelos nos pés. Era o tempo das minissaias, das calças à boca de sino. As famílias juntavam-se nas praias, passeavam numa carrinha aos fins de semana para fora da cidade. “Tivemos uma infância muito feliz e uma adolescência ótima. Vivíamos todos bem, nunca nos faltou nada”, recorda. “Não havia televisão e não precisávamos de televisão para nada.” Depois de jantar, liam-se livros debaixo dos candeeiros da rua. O pai no tribunal, a mãe a tomar conta dos filhos e com um ateliê de costura com cinco empregadas que faziam roupa de linho e de malha para bebés. Memórias felizes. Tinha 13 anos quando a família se mudou de Lourenço Marques para a Beira para uma vivenda junto à praia. Em agosto de 1974, numas férias, voltaram a Lourenço Marques, mas acabaram por nunca mais regressar à Beira. “Havia tiroteios na baixa, havia filas para ir ao pão, o hospital tinha exposições de cadáveres, não podíamos sair à rua.” Em 1975, com 17 anos, estava novamente em Portugal. “Tenho tudo na minha cabeça. Os meus pais ficaram sem nada.”

Maria Fernanda recorda com saudade a infância passada em Moçambique, quando brincava na rua até às nove da noite, à cabra-cega, às escondidas, à macaca, aos berlindes
(Foto: Miguel Pereira/Global Imagens)

O recomeço foi duro. Um mês em casa de uns tios em Lisboa, três meses em Trás-os-Montes, em casa da avó, regresso ao Porto. A mãe levantava-se de madrugada para ir para a fila da Segurança Social e recorria à ajuda alimentar aos retornados. O liceu esteve fechado três dias porque as alunas não queriam meninas retornadas. “Chamavam-nos as brancas de segunda.” Maria Fernanda voltou a sair do país, primeiro para estudar na África do Sul, depois para trabalhar na maior empresa de supermercados desse país. Em 1991, voltou a Portugal e em 2010 regressou a Moçambique. “Fui ao liceu onde andei, à casa onde vivi, andei lá por todo o lado, e adorei. África proporcionou-nos coisas boas. Ainda hoje mantenho as minhas amizades de África, puras e sinceras.”

Ecos da guerra, mossas da austeridade

A II Guerra Mundial estalou e Portugal declarou neutralidade na batalha mais mortífera da história da humanidade. Os ecos chegavam ao nosso país, os bens de primeira necessidade escasseavam. “Faltava muita coisa, não havia pão, não havia gasolina, as pessoas viviam muito mal, iam aos campos buscar saramagos, uma planta muito amarga, para comer. Se quisessem um bocadito de pão tinham de ir para a bicha às três da manhã. Havia gente muito desgraçada.” Havia gente que roubava para comer. Emília Alvim tem 97 anos, na altura era uma jovem curiosa numa família abonada da Vila da Feira. Pai empregado de escritório da Linha do Vale do Vouga, mãe chefe dos correios de São João da Madeira. Não lhe faltou nada.

“O meu irmão ficava à janela para ver se a PIDE vinha e eu ouvia as notícias na rádio”, relembra. O pai, conservador que gostava de andar com cravos ao peito, não se importava da rádio sintonizada às escondidas na BBC, emissora que relatava o que ia acontecendo num conflito que mobilizava tantos países e tantos militares. “O Hitler fez muita asneira, matou muita gente.” Emília envolveu-se em quermesses para ajudar quem precisava e o seu futuro marido, médico, estava na “intendência”, na baixa da vila, “a passar receitas de um quilo de arroz, um quilo de açúcar”. Esperaram o fim da guerra para se casarem em 1946, sem as sombras pesadas do passado. “Já havia gasolina, já havia comida.”

Emília Alvim, 97 anos, viveu a II Guerra Mundial e esperou que o conflito terminasse para casar, pois “já havia gasolina, já havia comida”
(Foto: André Gouveia/Global Imagens)

Emília Alvim frequentava um colégio em Espinho e queria estudar Astronomia em Inglaterra, mas parecia mal uma rapariga sair do país sozinha. Apesar das notícias da rádio de um Mundo em guerra, a vida seguia com mais e menos dificuldades numa terra de província. Havia teatros de revista e bailaricos. “A guerra estava longe, estava para lá.” No início de setembro de 1945, os Aliados venciam. “Quando acabou a guerra, toda a gente ficou alegre. As pessoas estavam cansadas de tanta desgraça.”

Joaquim Alves tinha nove anos quando o conflito rebentou, andava na escola, 15 quando acabou, já era aprendiz da arte da serralharia em São João da Madeira. As poucas histórias da guerra eram contadas pelo avô que tinha estado em França. O pai morreu antes de nascer, filho único de mãe solteira, 4.ª classe feita com distinção, infância numa aldeia de lavradores ricos e gente pobre da lavoura. “As crianças não tinham brinquedos, ficou-me essa memória. Vivia-se de outra forma, era uma época de dificuldades, rezava-se o terço para a guerra acabar.” E quando acabou, diz, “toda a gente estava contente”.

“Naquela altura, tínhamos informações de que as pessoas passavam muitas dificuldades. Mas aprendi mais sobre a guerra agora do que naquele tempo.” Infância solitária sem crianças na aldeia, jovem que cedo se fez adulto, aos 11 anos já trabalhava numa serralharia, passou depois 17 anos na secção de fabrico de peças da metalúrgica Oliva, foi mecânico assistente de máquinas, aos 30 anos abriu um supermercado no Parrinho, na cidade sanjoanense. A mulher deixou o emprego de costureira de calçado para tomar conta do negócio, Joaquim manteve-se à volta das máquinas até à reforma.

Da mulher ouviu histórias de penúria desse tempo da guerra. “A minha mulher ia para a bicha de madrugada buscar farinha, milho ou pão. Na minha aldeia, os lavradores ajudavam-se uns aos outros. Ouvíamos falar e sabíamos que havia uma guerra.” Não a sentiu na pele e, naquele tempo, depois da instrução primária, trabalhava-se. “A minha mãe deu-me o que tinha, deu-me uma educação para viver pela vida fora, ensinou-me que não tinha ninguém para ajudar a resolver os meus problemas, mas para pedir ajuda se precisasse.” Lições de humildade numa vida simples que Joaquim Alves, agora com 90 anos, não esquece. “Foi muito difícil chegar aqui. Há dificuldades que consegui ultrapassar, não era expectável que tentasse dar um passo maior do que a perna.”

Joaquim Alves tinha nove anos quando a II Guerra Mundial rebentou: “As crianças não tinham brinquedos, ficou-me essa memória”
(Foto: Maria João Gala/Global Imagens)

Uma guerra no século passado, uma turbulência no século XXI. A austeridade fez mossa, a troika torceu o país. Em fevereiro de 2013, Anthony Ferreira e sua mãe instalavam-se em Paris, juntando-se ao pai que já ali estava há sete meses. A separação da irmã, então com 16 anos, dos amigos, do país, da família, foi dolorosa. Anthony tinha cinco anos. “Não me lembro de muitas coisas quando cheguei. Mas lembro-me do primeiro dia, a mãe tinha trazido uma prenda de lá [Portugal].” Era um DVD novo do Flash McQueen que via vezes sem conta.

A adaptação foi dura. Não sabia falar francês, entrada no jardim de infância, uma cidade imensa e desconhecida para quem nasceu em Coimbra e vivia em Pombal. E um frio de rachar. Pedia à mãe um casaco para as pernas. Levava o brinco da irmã para a escola e dormia com a sua fotografia debaixo da almofada. Ainda hoje não gosta de passar à porta desse jardim de infância. Não gosta de lembrar, dá-lhe vontade de chorar. Essas memórias são um espaço onde ainda hoje, com 12 anos, não gosta de entrar.

A 2 de março desse ano de 2013, estava com a mãe numa manifestação contra a troika em Paris, em simultâneo com muitas outras cidades europeias. Anthony levou um cartaz que dizia: “Ó Coelho! És mau! Obrigaste-me a deixar os meus amigos! E vou crescer sem os meus irmãos!” .“Pus palavras no sofrimento dele”, conta Elisabeth Oliveira, a mãe, filha de pais portugueses, nascida em França, licenciada em Psicologia, que organizou o protesto antitroika na capital francesa.

Em fevereiro de 2013, Anthony Ferreira e a mãe instalaram-se em Paris, juntando-se ao pai, que já ali estava há sete meses. A troika separou-o da irmã, então com 16 anos
(Foto: DR)

Aos 33 anos, emigrou para Portugal para mudar de vida. Aos 43 anos, voltava a Paris para trabalhar como porteira num bairro perto da Torre Eiffel. Em Portugal, fez de tudo um pouco, sempre trabalhos precários, inserir encomendas no computador, telefonista, professora de Inglês nas atividades extracurriculares. Participou na primeira manifestação antitroika em Leiria. A austeridade virou-lhe a vida do avesso. “O meu pai, quando emigrou, com 17 anos, não tinha nada a perder. Eu emigrei para não perder tudo. Já tinha uma vida construída. Emigrar para enriquecer o currículo? Tudo bem. Emigrar para ter de comer no século XXI?”

Anthony quer ser arquiteto, é engenhocas, mata saudades nos regressos a Portugal, nos momentos em que vê os três irmãos, revê os amigos e a família, come sopa, vai à praia, anda de tronco nu ao ar livre a fazer tendas ou casotas para a cadela da irmã. São momentos que não esquece.

São histórias de vida em épocas marcantes da história do país. Quatro gerações marcadas por heranças complexas e lições que nenhuma borracha consegue apagar.