Fausto Bordalo Dias
À entrada da universidade, contudo, alguém me disse: este é o melhor disco português de todos. De todos os discos de todos os músicos portugueses.
No fim da adolescência, muito cansado da lonjura, encarava a portugalidade como uma condenação azarada. Via pela pouca televisão, e mais por algumas revistas importadas cheias de fotografias de pessoas sob flahes de luz, que o estrangeiro era de outra alegria, com dinheiros e carros, casas com jardim e um cão atrás de uma bola. Tudo me parecia melhor. A impaciência de crescer criava em mim a dúvida acerca de meu lugar, minha cultura, meu orgulho.
À entrada da universidade, com 18 anos de idade, obstinado por tristíssimas artes, meu tempo era todo sob música obscura, entre Current 93 e Coil, Dead Can Dance ou Diamanda Galás. Em constante sacralização, do efectivamente sagrado e do profano, minha vocação era para imaginários lugares estrangeiros, montanhas soturnas que se habitariam de seres bicéfalos e línguas negras como serpentes. Imaginava que a arte de que gostava vinha inteira de ilhas geladas, casas ao centro de lagos infinitos, cantoras aprisionadas em cavernas fundas. Longe, muito longe. À entrada da universidade, contudo, alguém me disse: este é o melhor disco português de todos. De todos os discos de todos os músicos portugueses. Era “Por este rio acima”, de Fausto Bordalo Dias, de quem eu tive logo a impressão de conhecer algo, sem saber o quê.
Coloquei o vinil a tocar e meu primeiro pensamento foi o de me ser insuportável lidar com aquilo naquele instante. Não vi imediatamente a pesarosa solenidade. Tão ao contrário. Era por ali um baile folclórico, quase até eufórico, indicado para proibir que permanecesse sentado. Pasmei. Era tão verde e tão entregue ao lado lunar, que não entendi nada. Rigorosamente nada. Então, mesmo sem entender, ouvi adiante: “Meu amor quando eu morrer / Ó linda / Veste a mais garrida saia / Se eu vou morrer no mar alto / Ó linda / E eu quero ver-te na praia”. Para mim, ali se pôs a praia das Caxinas, seu areal frio de inverno, o céu escuro depressa, os barcos ao largo e as gentes a espiarem para intuírem se foram salvos, estavam salvos, voltariam salvos os homens do mar. Se houvessem de naufragar, pudessem as mulheres estar de cores na areia, ventando como pequenas fogueiras com que os homens aquecessem as vistas à hora tão triste da morte. Fartei-me de chorar. Por entre a festa, por entre esse folclore até eufórico, não faltavam as luas, os medos, os mutilados, os mortos. Não faltava a profunda dor da multidão.
Senti que tudo quanto significava a maravilha podia ser aqui, podia ser português. Senti que não estava longe. Estava ao centro. No centro do mundo.
Há dias, depois de eu ter dito em várias entrevistas, e por mais de 20 anos, que uma das pessoas que mais gostaria de encontrar era Fausto Bordalo Dias, o Paulo Pinto e o Paulo Praça entregaram-lhe um livro que lhe assinei com profunda admiração e trouxeram-me aquela quadra que tanto amo dedicada. Certamente não é inteligível para todas as pessoas mas, com isto, algo na minha vida se completa. Tão grande e tão simples quanto isso. Como um pedaço de alma que me houvesse partido aos 18 anos e regressasse agora, por fim, madura e grata. Feliz.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)