Fátima Cardoso: “Ninguém gosta de ouvir histórias sem um final feliz”

Foto: Orlando Almeida/Global Imagens

Fátima Cardoso, médica e investigadora, 53 anos, assumiu a presidência da Aliança Global pelo Cancro da Mama Avançado (ABC Global Alliance) e trouxe a sede da organização para Lisboa, cidade para onde regressou há dez anos para assumir a direção da Unidade da Mama do Centro Clínico Champalimaud. Foi aí que foi entrevistada e fotografada numa manhã fria de janeiro, numa conversa marcada pelas novidades na investigação, a necessidade de seguir as recomendações internacionais de tratamento e as críticas a um sistema que ainda dificulta o acesso dos pacientes aos melhores tratamentos disponíveis.

A ABC Global Alliance, que criou em 2016, tornou-se há dois meses uma entidade autónoma da Escola Europeia de Oncologia (ESO) e é presidida por si. Quais são os seus grandes objetivos para o mandato?
Mantêm-se os mesmos: lutar pelos direitos e pela melhoria da vida dos doentes com cancro da mama avançado (ABC) em todo o Mundo, conforme os dez principais objetivos definidos na nossa carta (ver caixa). Há um fosso entre países desenvolvidos e em vias de desenvolvimento, mas as desigualdades de acesso dentro de cada país são cada vez mais, mesmo nos países desenvolvidos. E há problemas que são transversais, como o estigma e o tabu.

Mesmo na Europa?
Uma das conclusões do relatório da década (2005-2015) que fizemos que mais me chocou foi perceber que, em países como França e Alemanha, uma em cada cinco pessoas acha que os pacientes com ABC não devem falar da sua doença, exceto com o médico. As pessoas não gostam de ouvir histórias que não tenham um final feliz. Há medo de falar de uma doença incurável.

O relatório também mostra que a maioria continua a acreditar que há cura para este tipo de cancro.
Neste momento, não existe cura para a doença quando ela está metastizada [quando o cancro sai da zona da mama e axila e as células tumorais invadem outros órgãos, como o fígado, os pulmões, os ossos e o cérebro]. Isso quer dizer que a doença vai ser a causa de morte do paciente na grande maioria dos casos. Mas é tratável porque há muito que podemos fazer para aumentar a sobrevida e a qualidade de vida destes pacientes. Não os podemos curar, mas podemos dar-lhes uma vida digna.

A 5.ª Conferência Internacional de Consenso do Cancro de Mama Avançado aconteceu há dois meses, em Lisboa. Qual é a importância da definição de recomendações internacionais de tratamento?
As recomendações não são leis, mas são referências. Definem, à luz da evidência científica existente, a melhor forma de tratar a doença, dependendo das suas características. Segui-las é a melhor forma de melhorar a sobrevida e a qualidade de vida dos doentes.

Isso quer dizer que, em teoria, doenças iguais deviam ter tratamentos iguais em todo o lado. Porque é que não têm?
Quando as recomendações internacionais não são seguidas, 80% das vezes o problema são razões financeiras. Sejam elas a falta de acesso, a falta de cobertura de saúde, a falta de capacidade dos sistemas nacionais de saúde ou mesmo a ausência de um sistema nacional de saúde. Mas também por causa dos critérios de reembolso. Este ano, na conferência europeia, vai ser feito um manifesto sobre esse tema.

Em que medida é que os critérios de reembolso impedem o acesso ao tratamento recomendado?
As leis relativas aos critérios de reembolso ou pagamento não evoluíram com a ciência. Posso dar exemplos de situações que acontecem em muitos países incluindo Portugal: a evolução na radioterapia tem sido enorme e essa evolução passa pela diminuição do número de sessões necessárias, acontece que os hospitais são pagos por sessão. Por isso, há uma pressão muito grande para que os médicos não usem o hipofracionamento [protocolo terapêutico em que são utilizadas altas doses de radiação aplicadas de forma mais precisa sobre o tumor, o que permite menos sessões]. Outro exemplo: o hospital é pago de acordo com a utilização do hospital de dia, o que põe em causa a prescrição da quimioterapia oral e de hormonoterapia, feita em casa, em casos em que ela é o tratamento indicado.

Este tipo de pressões também existe nos privados?
Existe para todos. A única diferença é que num hospital público o dinheiro vem do Estado e no privado o ónus recai sobre os seguros, a ADSE ou os próprios doentes.

Foto: Orlando Almeida/Global Imagens

Qual seria a solução para isso?
Tem de ser uma decisão política. Os hospitais devem ser pagos pelo tratamento da doença ou da metástase, independentemente do número de sessões de radioterapia que fazem ou da forma de administração do tratamento. Ganharíamos todos: o Estado não pagava mais do que paga, os hospitais não tinham pressões financeiras na altura de optar por um tratamento, as listas de espera diminuíam e o paciente tinha acesso ao tratamento mais adequado. Neste momento, por uma questão de inércia política, o custo-eficácia está contra todos.

Quais foram principais novidades que a 5.ª Conferência Internacional de Consenso para o Cancro da Mama Avançado trouxe?
Onde houve mais alterações nas recomendações para o subgrupo de pacientes com cancro hormonodependente, que são cerca de 65% dos doentes com cancro da mama avançado. Nos últimos anos, uma das grandes áreas de investigação tem sido como podemos evitar ou atrasar os mecanismos de resistência e concluiu-se que associando à hormonoterapia determinados agentes biológicos, como os inibidores das ciclinas, conseguimos um aumento da sobrevida na ordem dos nove meses. Com base nestes dados, recomendámos que devem ser administradas a todos os doentes, a não ser que haja alguma contraindicação.

Foi precisamente a propósito do cancro hormonodependente que se envolveu numa polémica com o Infarmed no final do ano passado. Afirmou que estavam a negar às mulheres jovens com cancro da mama avançado hormonodependente uma classe de medicamentos que lhes aumenta a sua sobrevida.
Foram declarações duras, mas conscientes. Às vezes é preciso “agitar as águas”. Há mais de dois anos que as recomendações são muito claras: todos os tratamentos disponíveis para mulheres na pós-menopausa deveriam estar disponíveis para as mulheres na pré-menopausa e para os homens. O Infarmed justifica que a indústria não pediu o alargamento da aprovação do medicamento, só que não se deve esperar que a proteção dos doentes caiba à indústria farmacêutica, mas sim aos reguladores.

E o que é que tem sido feito pelos reguladores?
Quando levantei este problema com a Food and Drug Administration (FDA), nos Estados Unidos, e com a Agência Europeia do Medicamento (EMA), a atitude deles foi criar um grupo de trabalho para avaliar a situação, envolvendo-nos a nós, médicos e investigadores, e às associações de doentes. E já começaram a emitir recomendações que vão neste sentido. A atitude do Infarmed foi fazer queixa de mim à Ordem dos Médicos e à minha entidade empregadora. Acho que esta atitude fala por si mesma.

Em Portugal, já foi chamada a dar opinião, como perita, sobre esse assunto?
Voltei para Portugal há dez anos – peço desculpa pela falta de modéstia, mas não há ninguém no país que saiba mais do que eu sobre cancro da mama -, tenho enormes responsabilidades nesta área a nível europeu, mas nunca o regulador português esteve interessado em conversar comigo. Esse é outro problema do Infarmed: mune-se de poucos peritos, devia diversificar o leque de peritos com que trabalha. Para serem verdadeiramente peritos nas respetivas áreas e poderem aconselhar adequadamente o Infarmed.

Mas a questão vai mais longe do que a avaliação de eficácia, é uma questão de preço.
Nenhum sistema nacional de saúde tem tanto dinheiro que possa pagar tudo a todos. É também por isso que as recomendações internacionais são importantes: estabelecem o nível de evidência, o grau de recomendação, mas também a escala de benefício clínico desenvolvida pela ESMO (Sociedade Europeia de Oncologia). Para cada medicamento há uma pontuação, que no caso do cancro avançado vai de um a cinco, e a prioridade deve ser dada aos medicamentos que têm pontuações de quatro e cinco. E, se houver recursos, aos que têm três. Os reguladores europeus, nomeadamente o alemão, estão a utilizar este sistema para não gastar dinheiro mal gasto e investir no que vale a pena investir. Posso estar mal informada, mas, que saiba, o Infarmed não o utiliza.

Que outros problemas de acesso existem em Portugal?
O facto de o medicamento estar aprovado não quer dizer que esteja disponível rapidamente. Há situações em que, entre todas as autorizações necessárias, o paciente demora entre três a seis meses a ter acesso ao medicamento. Num cancro avançado, cuja sobrevida média é de três anos, tempo é o que os doentes não têm. O processo tem de ser mais célere.

Como é que se explica a um doente que não pode aceder a um tratamento que lhe prolonga a vida?
Um dos grandes debates é esse: devemos dizer ao paciente qual seria o melhor tratamento se ele não tem, por alguma razão, possibilidade de o ter?

Devem?
É um dilema. Acho que, por princípio, os doentes devem conhecer as recomendações para exigirem ser tratados de acordo com elas. Por outro lado, essa informação leva a uma sobrecarga tantos dos pacientes como das famílias. É uma decisão difícil.

Foto: Orlando Almeida/Global Imagens

Aquilo a que se chama “cancro da mama avançado” são muitas doenças e o prognóstico não é igual para todas.
De forma muito simplificada são três doenças: o cancro da mama hormonodependente, o HER2+ e o triplo negativo. Nos países desenvolvidos, a média de sobrevida do HER2+ está quase nos cinco anos, nos hormonodependentes são três anos – mas com estes novos medicamentos pensamos que em breve vai chegar também aos cinco anos – e, infelizmente, no triplo negativo não passa de um ano e meio.

Porque é que o triplo negativo tem uma sobrevida média tão baixa?
Chamamos-lhe triplo negativo porque não tem os recetores hormonais que são dois [recetor de estrogénio e o recetor de progesterona], nem o recetor HER2 [fator de crescimento epidérmico tipo 2]. Mas eles serão positivos em alguma coisa. Nos últimos anos, a investigação têm-se focado em dissecar este subtipo de cancro da mama e, neste momento, já sabemos que são entre cinco e sete doenças diferentes, ou seja, já definidas pela positividade de alguma coisa. Isso é um passo importante para desenvolver tratamentos dirigidos a esses marcadores positivos e já há ensaios clínicos em curso.

O que é que há de mais recente e promissor nesta área?
Foram apresentados recentemente os resultados preliminares para um novo medicamento, contra o subtipo HER2+, o Trastuzumab Deruxtecan (DS-8201). Desde há muitos anos que não víamos um resultado tão eficaz. Tem possibilidade de vir a revolucionar o tratamento desta doença. Já está em fase III de ensaios clínicos e penso que vai ser rapidamente aprovado porque os resultados são verdadeiramente espantosos. Mas tem toxicidade em alguns casos fatal, que vamos ter de aprender a combater.

Porque é que é tão difícil encontrar tratamentos eficazes no ataque ao tumor e, simultaneamente, com poucos efeitos secundários?
As células tumorais são células nossas que perdem a capacidade de morrer e deixam de se especializar. Em vez de terem uma função específica, toda a sua energia é dirigida para se dividirem. Como são “imortais”, e se dividem sem controlo, criam massas tumorais. Mas, na essência, têm as mesmas características que as células normais. É por isso que qualquer medicamento que aja sobre as células tumorais também age sobre as normais, provocando efeitos secundários.

O futuro de um tratamento mais eficaz passa por tratamentos que possam ser mais dirigidos?
O objetivo é poder um dia caracterizar tudo o que é diferente na célula tumoral, em relação à célula normal, e desenvolver tratamentos que só ataquem o que é diferente. Por outro lado, para fazer um tratamento individualizado, temos de investigar mais o microambiente. O mesmo tumor vai-se comportar de forma diferente em pessoas diferentes porque o ambiente à volta, o sistema imunitário, é diferente em cada pessoa. Quando soubermos mais sobre o microambiente e o relacionamento da célula tumoral com ele, vai ser possível fazer terapêuticas mais individualizadas.

Terminemos falando sobre a linguagem. “Lutar contra o cancro” e “vencer o cancro” não são expressões que colocam um ónus demasiado grande no doente?
Os estudos sobre a linguagem à volta do cancro mostram que a maioria dos pacientes, sobretudo os que têm casos avançados, não gosta de analogias bélicas. Dizemos com muito respeito e como forma de motivação frases como “é uma lutadora” ou “está a combater a doença”, mas as pessoas acham que isso traz sobre elas muita responsabilidade. Responsabilidade essa que não têm porque, mesmo tendo acesso aos melhores tratamentos e fazendo tudo bem, podem ter uma recidiva. Um terço dos casos de cancro da mama volta e a culpa não é do doente.

Os dez objetivos da Aliança Global pelo Cancro da Mama Avançado (ABC)

  1. Ajudar a prolongar a vida dos doentes, duplicando a sobrevivência média global até 2025.

2. Melhorar o conhecimento sobre o ABC através da recolha de dados de qualidade.

3. Melhorar a qualidade de vida dos doentes.

4. Assegurar que todos os doentes com ABC recebem o melhor tratamento e os melhores cuidados possíveis ao melhorar a disponibilidade e o acesso a equipas multidisciplinares.

5. Melhorar a comunicação entre os profissionais de saúde e doentes com ABC através da formação em comunicação.

6. Responder às necessidades de informação dos doentes através da utilização de materiais e recursos precisos e atualizados.

7. Assegurar que os doentes conhecem e podem ser referenciados para serviços de apoio não clínicos.

8. Combater o estigma e o isolamento dos doentes que vivem com ABC através do aumento do conhecimento público sobre a doença.

9. Assegurar que os doentes com ABC têm acesso ao tratamento independentemente da sua capacidade financeira.

10. Ajudar os doentes a continuar a trabalhar através da implementação de legislação que proteja o direito ao trabalho e assegure flexibilidade e adaptação dos ambientes laborais.