É uma paixão que surge de um momento para o outro e fica para toda a vida. Algo que não se explica, mas que se vive intensamente. Colecionam álbuns, cartazes e recortes de revistas. Fazem milhares de quilómetros para não perderem os concertos. E, mesmo quando não podem estar na plateia, são o combustível que alimenta as bandas.
Milão, 3 de julho de 1995. Esta é a data que, 25 anos depois, Fabio D’António terá para sempre gravada na memória. A razão é simples. Naquela noite de verão, Fabio assistiu, pela primeira vez, a um concerto dos Oasis, a banda de rock que surgiu em Manchester, Inglaterra, em 1991, e que viria a tornar-se um fenómeno. À data com 24 anos, Fabio já conhecia bem de que matéria era feita aquela banda, de que rapidamente ficou fã. Mas tudo ganhou outra dimensão quando, em Milão, os viu subir ao palco. “Já sabia muito sobre eles, mas a sua atitude em palco era única. E a voz de Liam – o vocalista – era tão bonita, que imediatamente captava a atenção de todos” Nesse momento, o consultor web, atualmente com 49 anos, não teve dúvidas: “Os Oasis eram uma verdadeira banda da classe trabalhadora”. O entusiasmo foi tanto que, poucos meses depois, criou, com o apoio de outros fãs do grupo, o Oasis Fan Club. Numa época em que as redes sociais estavam longe de ser um fenómeno, era “através de cartas, dos primeiros e-mails e dos anúncios em revistas de música” que o clube tentava reunir os fãs.
Essa foi também a estratégia que Paulo Scavullo, 54 anos, utilizou quando, ainda na adolescência, criou “o primeiro e único Fan Club que as Doce tiveram”. A verdade é que, mesmo sem os recursos que existem hoje, “uma estrutura criada por um adolescente ganhou alguma dimensão”, principalmente depois de o grupo ter representado Portugal no Festival da Eurovisão de 1982, no Reino Unido. “Nessa altura fui contactado por muitos fãs, até de fora do país, e a coisa funcionava”, recorda o artista plástico, que, na época, viu nos “jornais e revistas” os melhores meios para divulgar a existência do clube de fãs das Doce. “Eu escrevia uma carta a dizer que gostava muito de poder dar conta da nossa existência e, como a banda se tinha tornado famosa, as revistas acabavam por corresponder aos meus pedidos.” Além disso, o clube cedo começou a fazer “cartões de fãs autografados pelas próprias Doce, revistas em fotocópias e vários materiais em tipografia”. Mais de três décadas depois, Paulo garante: “Hoje, sei que o facto de eu, naquela altura, ter conseguido fazer tudo aquilo sozinho foi um pouco ousado para aquele tempo. Mas a verdade é que, graças a isso, saboreei muito mais a existência do grupo”.
E poder saborear de outra forma tudo o que as bandas fazem é, afinal, uma das conquistas que mais agrada aos fãs. Principalmente quando se é fã à distância e se consegue manter a paixão por um grupo, mesmo que nunca tenha surgido a oportunidade de assistir a um concerto. É o caso de Caio Rocha, o brasileiro que, aos 31 anos, fala com emoção sobre a forma como, desde a adolescência, passou a seguir tudo o que estava relacionado com “o universo das Spice”.
“A minha tia comprou um computador para a minha prima e, a partir daí, começámos a ter acesso à internet. Como sempre fui muito fã das Spice Girls e estava a fazer um curso de informática, decidi que ia fazer um site sobre elas”, conta o web designer, adiantando que o primeiro passo foi começar a juntar todo o material que encontrava. Por causa disso, muitas vezes a escola acabava por ficar em segundo plano. “Como no Brasil não temos acesso à internet em todo o lado, eu faltava às aulas para poder procurar novos conteúdos e atualizar o site.”
O amor pela banda britânica apenas era alimentado à distância, porque nunca surgiu a oportunidade de assistir a um concerto. Mas nem por isso Caio perdia o entusiasmo, até porque o facto de poder “ver os shows em cassetes de vídeo até a fita ficar estragada” fazia com que se sentisse “mais próximo” das artistas. Além disso, graças à página, o brasileiro ganhou “muitos amigos”, com quem passou a trocar mensagens e a partilhar o sentimento de admiração pelo grupo. Catorze anos depois, Caio não esconde a emoção quando recorda o momento em que, corria o ano de 2006, a banda anunciou o regresso aos palcos. “Lembro-me desse dia como se fosse hoje. Ia ter uma prova de matemática, mas estava tão nervoso que não a consegui fazer. Foi um dia muito especial, em que eu tremia de felicidade. Ainda hoje, só de me lembrar, sinto exatamente aquelas emoções.”
Especialmente atenta às emoções, Anabela Valente, 38 anos, recua até ao dia em que ouviu as canções do último álbum dos Diabo na Cruz, a sua banda de eleição, que anunciou o fim, após 11 anos de estrada, a 21 de maio do ano passado. “Conhecia muito bem o trabalho deles e quando lançaram o último álbum [Lebre], ao tentar interpretar as letras, achei que aquilo parecia uma despedida e até comentei isso com a minha filha. Mas, como depois disso ainda anunciaram uma série de concertos, pensei que podia ter percebido mal”, revela a empresária de Aveiro, que descobriu a banda “porque já seguia a carreira do Jorge Cruz [vocalista] a solo”.
Após cerca de um ano, Anabela assistiu, pela segunda vez, a um concerto do grupo, em Ílhavo, e depois disso passou a ir vê-los “sempre que tinha oportunidade”. E a energia dos músicos tocou-a de tal forma que Anabela depressa ficou fã. “Aquilo que eles faziam era tão bom que eu não conseguia compreender como é que a banda era pouco conhecida do público.” Nessa altura, através de uma pesquisa na internet, a empresária ficou a saber “que existia uma página de fãs dos Diabo na Cruz, mas que tinha sido desativada”. Foi então que surgiu a ideia de criar uma página de Facebook. “Eu fazia quilómetros e levava as minhas filhas aos concertos. Pensei criar uma página também para poder mostrar [os concertos] aos fãs que não tinham a possibilidade de ir aos espetáculos ao vivo.”
“Reis do rock” jantam com os fãs
A verdade é que, se as redes sociais dão aos fãs a possibilidade de se conhecerem uns aos outros e partilharem tudo o que tem que ver com o universo das bandas, elas são também um meio que lhes permite entrar em contacto com os ídolos. Foi o que aconteceu a Rui Couceiro, 36 anos. Natural do Porto, o editor tem pelos GNR “um fascínio muito grande”, que o acompanha desde a infância. Aos oito anos, Rui comprou o primeiro CD e a admiração pelos GNR foi crescendo com o passar do tempo, a ponto de começar a guardar “recortes de revistas e de jornais” onde havia alguma alusão à banda. “Comecei a ir aos concertos sempre que podia e comprei a discografia toda. E, ao longo da minha vida, as pessoas com quem me relacionei mais proximamente tiveram, de uma maneira ou de outra, de se relacionar, também, com o meu gosto pelos GNR”, confessa o editor, apressando-se a explicar a forma como vive o gosto pela banda. “É uma relação de uma permanente descoberta porque quando uma pessoa tem uma relação muito próxima com uma obra está sempre a descobrir coisas novas nessa mesma obra. É assim na literatura, como é assim na música. À medida que a escuta se vai renovando vamos descobrindo coisas novas.”
Além disso, por mais vezes que se ouçam os mesmos temas, Rui assegura que “os GNR não cansam, porque as suas canções são de qualidade superior e as composições do Tóli César Machado são intemporais”. Sem esquecer, claro, “o carisma e as letras do Rui Reininho”. Músicos que, tal como Jorge Romão, o portuense veio a conhecer mais tarde, precisamente desafiado pelo último. Foi há 12 anos. “Enviei um e-mail para os GNR, a reclamar a atualização do site deles, com um comentário em que eu até dava algumas sugestões. Na altura, o Jorge Romão terá achado piada a essa minha intervenção e convidou-me para uma conversa no centro comercial Miguel Bombarda.” Daí, surgiu outro convite: “O Jorge Romão desafiou-me a construir um site novo para eles”. Desafio que foi imediatamente aceite, “a título de carolice absoluta e com o maior gosto”, fazendo com que Rui passasse a acompanhar o grupo nos concertos, já com a função de fazer fotografias para publicar nas redes sociais.
No entanto, mais do que para partilhar fotografias, as redes sociais servem para ligar pessoas. E foi precisamente através de um clique que, há dois anos, muitos souberam de uma iniciativa que tinha como propósito homenagear os Xutos & Pontapés, “altamente motivada pela partida do Zé Pedro”, em novembro de 2017. Inspirado pela iniciativa Rockin’1000, que em 2016 reuniu mil músicos em Itália para tocarem, em uníssono, a música “Learn To Fly”, dos Foo Fighters, Pedro Brazão, 52 anos, quis homenagear os Xutos & Pontapés. Uma ideia que surgiu numa conversa entre amigos e se transformou numa homenagem “única” à banda e, especialmente, ao guitarrista. “Tivemos uma grande força da parte da família do Zé Pedro e fomos avançando com o projeto.” Cerca de seis meses depois, no dia 7 de julho de 2018, o campo de jogos do Pragal, em Almada, encheu-se de músicos que tocaram o tema “Não sou o único”. E, assegura Pedro Brazão, quem lá esteve viveu, de facto, “um dia único e cheio de emoções”, cujas imagens foram registadas em vídeo e entregues, “como forma de agradecimento” à banda. Mas desengane-se quem pensa que os Xutos’1000 terminaram no campo de jogos do Pragal. Apesar de não ser um grupo de fãs oficial, a dimensão que o projeto tomou fez com que os participantes passassem a ser “uma família”. O mesmo acontece com os encontros levados a cabo pelo Oasis Fan Club.
“Os encontros de fãs dos Oasis são sempre experiências ótimas. Somos praticamente amigos próximos, mesmo que não nos encontremos muitas vezes”, nota Fabio D’António. Era assim quando a banda de rock inglesa subia aos palcos e é assim ainda hoje, 11 anos após o fim. Porque o grupo extinguiu-se, mas os fãs continuam “a celebrar a música dos Oasis”, em eventos com bandas de tributo ou em exposições, DJ sets ou através do merchandising. Mas sem esquecer a mágoa que sentiram quando chegou a notícia do fim. “Assim que o concerto em Paris [2009] foi cancelado, recebi alguns telefonemas de fãs que iriam assistir, mas pensei que seria apenas mais um conflito entre Noel e Liam Gallagher” – os irmãos cujas brigas passaram a ser do conhecimento público -, destaca o representante dos fãs, acrescentando que meia hora depois ficou a saber que se tratava mesmo de “uma notícia muito triste”, que deixou os fãs desapontados. Apesar da mágoa, deixar de viver a energia dos Oasis não era opção. Até porque, assegura o consultor web, não faltam memórias de “momentos incríveis”.
“É um fenómeno transgeracional”
À semelhança do italiano, Paulo Scavullo não consegue falar das Doce como se fosse algo que foi realmente extinto. E especifica: “O fenómeno das Doce é uma coisa transgeracional”. Algo que se deve “às grandes canções que foram muito populares” e ao facto de elas terem, na época, “uma imagem muito à frente do seu tempo”, desafiando, “com rigor, talento e sofisticação e irreverência”, todos os preconceitos numa altura em que o país vivia, havia pouco tempo, uma democracia. Todas essas características fazem com que ainda hoje seja “impossível falar dos anos 1980 sem referir as Doce”. “É a prova de que, de facto, fizeram uma coisa única”, observa o fundador do clube de fãs, que em 2011 criou a página de Facebook “Doce Fan Club”, para conseguir reunir “as informações que andavam um pouco perdidas na internet”, com o cuidado de quem conhece realmente o percurso do grupo e pretende homenagear a banda. No fundo, trata-se de retribuir “o profundo respeito” com que as artistas sempre trataram o público. “Depois dos espetáculos, que eram delirantes, elas mesmo cansadas faziam questão de estar com os fãs”, realça Paulo, confessando-se curioso para assistir ao filme “Bem Bom”, de Patrícia Sequeira, cuja estreia está prevista para novembro. Mesmo sabendo que não será uma obra “totalmente biográfica”, o artista plástico não tem dúvidas: “Será sempre uma homenagem às quatro mulheres que fizeram algo absolutamente único em Portugal”.
“Único” é, para Rui Couceiro, um dos termos que melhor descreve o espírito que todos os anos, por altura dos Reis, se vive no Jantar dos Reis do Roque, que dá aos fãs dos GNR a possibilidade de se sentarem à mesa com os músicos. Criada há uma década, a iniciativa continua a fazer sucesso na Casa de Pasto Manuel da Feira, em Espinho, um restaurante “com uma atmosfera incomparável”, que se tornou “muito conhecido por todos os dias passar música dos GNR”. Para Rui Couceiro não há nada igual. “Ao estarem perto das pessoas que gostam deles, os GNR mostram o profundo respeito que têm por todos aqueles que lhes permitiram ter a vida que têm e fazer aquilo que mais gostam, que é música, e isso é exemplar.” Por outro lado, o portuense diz que nunca poderá agradecer aos GNR tudo o que lhe transmitiram. “Foi com o Rui Reininho que eu, hoje editor de livros, aprendi a plasticidade da língua e percebi que as regras não tinham de ser sempre seguidas.”
Gratidão é, também, a palavra que Caio Rocha escolhe para falar de tudo o que viveu, mesmo que à distância, com as Spice Girls. “Não consigo olhar para a minha infância e lembrar-me de alguma parte em que elas não tenham estado presentes. Ainda que de forma indireta, a verdade é que as Spice Girls sempre fizeram parte da minha vida.” E a distância acabou por ser atenuada no dia a dia, à medida que o web designer foi construindo um acervo dedicado à banda. “Tenho mais de 700 revistas. Muitas delas chegam-me através de outros fãs, que enviam para minha casa, e eu guardo tudo.”
Reunidas num espólio físico ou numa plataforma digital, as recordações dos fãs contribuem para perpetuar o legado das bandas. Contudo, quando chega o fim, há quem prefira não acrescentar textos ou imagens. Deixar tal como estava. Essa foi a opção de Anabela Valente, que passou a olhar para a página de fãs dos Diabo na Cruz como “um museu” em que estão perpetuadas “memórias muito felizes”. Considerando-se privilegiada por ter tido a oportunidade de viver de perto a energia dos Diabo na Cruz, a empresária assegura que “a forma bonita como os músicos trataram os fãs” ajudou a ultrapassar “a tristeza” de saber que a banda tinha terminado. Se a empresária gostaria que o tempo voltasse atrás, para poder voltar a desfrutar da “energia dos Diabo na Cruz nos concertos”, Rui Couceiro também ficaria feliz se pudesse recuar ao passado. Os GNR continuam no ativo, mas há um momento que o fã não viveu e que “daria tudo” para poder ter experienciado: o concerto da banda portuense no Estádio de Alvalade, em 1992. “Senti muitas vezes que nasci fora de época e que deveria ter nascido mais cedo para poder ter vivido tudo aquilo desde o início”, partilha o editor. “Mesmo sem ter vivido o concerto presencialmente, olho para esse momento como se de facto o tivesse vivido. E sonhei durante anos com essa possibilidade.”