Rui Cardoso Martins

Fala comigo

(Ilustração: João Vasco Correia)

Lá em cima, Wonderland, terra das maravilhas, pista de gelo, roda gigante, a casa do Pai Natal. Cá em baixo, estação da Avenida, linha azul do grande covil de toupeiras do metropolitano. Um rapaz, de joelhos, agarra uma rapariga também pelos joelhos. Ele bateu-lhe?! Uma passageira sobe para pedir ajuda.

– O rapaz estava agachado à frente da rapariga, a rapariga a chorar e agarrada aos seus pertences, e ele abanava-lhe as pernas e gesticulava – “Fala comigo, fala comigo!”. O chefe da estação desceu logo a seguir e falou com o senhor, que estava mais calmo, mas entretanto exaltou-se outra vez, passava um bocado perto da linha… e foi quando eu decidi subir a ver se na parte de cima da estação estaria algum polícia, visto que estávamos na época do ano da Wonderland e podia haver alguma espécie de policiamento.

Eram 20.21 horas, Dezembro de 2019. No Parque Eduardo VII, em Lisboa, passeavam trenós e renas de plástico. Casais iam às compras no frio. Chegaram meses, meses, meses. Um confinamento galáctico, 16 milhões de contaminados, 660 mil mortos no Mundo, fogos de Verão no hemisfério Norte. No tribunal, ainda não se sabe o que ela não falou. O rapaz também manteve silêncio no seu julgamento.

– Já disse que o rapaz gesticulava muito, que falava alto. E ela, dizia alguma coisa?

– Eu nunca ouvi a voz dela.

– Ele fez mais alguma coisa?

– É assim: ele, por aquilo que estava a fazer, tinha-a magoado nas pernas. Fazia assim.

– Aqui só gravamos áudio, não vídeo, vou ter de lhe pedir que, por palavras suas, nos demonstre o que estava a mostrar.

– Ok. Ele, ao pedir que ela falasse com ele, portanto… batia com as mãos na zona das coxas, portanto… dava-lhe…

– Dava-lhe assim umas palmadas nas coxas, é isso?

– Sim, dava a sensação de que… “fala comigo!”, assim a bater.

– A pessoa que estava junto dessa senhora a chorar é este senhor que está aqui deste lado?

Levantaram-se os dois.

– Agora estão de máscara, mas…

Para ajudar a identificação, o rapaz acenou excentricamente, fez-lhe adeus como se cumprimentasse uma velha amiga que um dia lhe surgisse, olhem, no cais contrário de uma estação.

– Sim, sim, confirmou a testemunha.

– Relativamente à maneira como ele falava, não era uma forma carinhosa, ou era?

– Não.

Um consultor de 27 anos estava também no metro da Avenida.

– Ele agarrava-lhe as coxas?

– Exactamente. E o que dizia era “fala comigo, fala comigo”, estava sempre a dizer isto. Até que ele falou mais alto e disse: “Eh pá, fala comigo!” E disse uma asneira.

– Que asneira foi?

– “Fala comigo, caralho.” Eu não queria estar a dizer.

– Não se preocupe, temos de fazer prova das coisas. Se não nos disserem as palavras que ouviram, não conseguimos.

– Ok, ok…

– Mas foi de forma agressiva?

– Sim, foi. Ele queria uma resposta para algo que… o que nos pareceu foi que aconteceu algo antes.

– Era este senhor que aqui está, em pé?

O arguido voltou a fazer adeus, sacudia alegremente os dedinhos. Entrou o guarda da estação, forte e calmo. Disse que uma adolescente subira as escadas, que tinha assistido a uma agressão, e se ele podia ir lá abaixo. O rapaz estava de joelhos, a agarrá-la. A senhora a chorar, ele perguntou se precisava de auxílio. Ela não lhe falou. Perguntou: “Quer eu chame a polícia?”. Fez que sim com a cabeça. Aparentemente, em estado de choque. Ele disse: “A partir de agora, o senhor não diz mais nada, vamos aguardar a polícia”.

De repente atacado pelas costas, o guarda manietou-o no chão.

– A pessoa que provocou esta situação toda era este senhor?

E lá fez o rapaz outro adeus, excêntrico e bizarro.

Wonderland, Natal, Dezembro, Janeiro, Fevereiro, Março, Abril, Maio, Junho, Julho… oito-nove meses. A rapariga não veio depor contra o rapaz. Mandou dizer que tinha teste covid-19 marcado para essa hora. E, dois dias depois, a cesariana na maternidade.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)