Estudo em casa deu a volta ao mundo

Marta tem 15 anos e é a irmã mais velha da família Gonçalves. Cármen tem cinco anos (Foto: DR)

Todos os dias, de segunda a sexta, Afonso, nove anos, tira a manhã para os estudos. Das 9 às 13 horas, mais coisa menos coisa. Parte desse tempo é passado de olhos cravados no tablet, a seguir as aulas disponibilizadas na plataforma online do Estudo em Casa. Português, Matemática, Estudo do Meio, Inglês, Expressão Artística. Muitas vezes, quando o dia começa, já tem na cabeça o programa de estudo para aquele dia. Volta e meia a irmã mais velha, Marta (14 anos), também espreita. As aulas de Português e Expressão Artística, sobretudo. Por vezes, a mais nova, Cármen (cinco anos), ainda se junta. Mas só para fazer desenhos. Porque não está em idade escolar.

A rotina dos irmãos Gonçalves é decalcada da de muitos milhares de jovens portugueses que, desde 20 de abril, têm acompanhado a iniciativa, espécie de versão 2.0 da velhinha Telescola. Culpa do maldito vírus que obrigou a trocar as salas de aula pelo estudo doméstico. A diferença é que estes irmãos fazem-no a bordo de um veleiro que, há cerca de um ano, partiu de Cascais determinado a dar a volta ao Mundo. E que agora, à custa da pandemia, está há quase três meses retido na Marina de Santa Marta, na ponta norte da Colômbia.

O percalço não demove a família do objetivo ambicioso de seguir viagem. Nem serve de desculpa para que os catraios descurem os estudos. Afonso é um dos quase 900 alunos portugueses inscritos no ensino doméstico. Marta está matriculada na Clonlara School, uma escola nascida nos EUA, ainda nos anos 1960, que abre portas ao estudo à distância enquanto promove a autonomia e a individualidade dos alunos. Ambos começaram este tipo de ensino ainda antes de partirem em viagem, em julho do ano passado. Entretanto, veio a covid e o Mundo mudou à força. Um pouco por todo o Globo as escolas fecharam portas. Portugal não foi exceção.

Marta, Afonso e Cármen são fãs das aulas de Expressão Artística
(Foto: DR)

Para ajudar à solução, o Ministério da Educação avançou com o Estudo em Casa, que mais não é do que um “conjunto suplementar de recursos educativos para o Ensino Básico, com conteúdos organizados para diferentes anos de escolaridade”. As aulas foram transmitidas de segunda a sexta na RTP Memória (até à última sexta-feira) e podem continuar a ser acompanhadas via web, seja através do site ou da aplicação. Rute Gonçalves, mãe de Marta, Afonso e Cármen, soube pela mãe. “Parece que vai voltar a Telescola”, disse-lhe a progenitora. Rute, habituada a ser uma espécie de tutora dos filhos a tempo inteiro, foi informar-se. E percebeu que o Estudo em Casa, assim batizado nesta nova versão, poderia ser uma ajuda preciosa para os filhos. Em particular para o mais novo. “Queres mudar um bocadinho de professora?”, perguntou a Afonso. “Achei que seria uma forma de poder sentir-se mais perto dos coleguinhas que tinha na escola e de ter acesso a conteúdos diferentes. E ele tem andado muito entusiasmado.”

Como entusiasmante tem sido fazer vida ao sabor da maré. O sonho era antigo, bem antigo, até porque antes de ser um desígnio de família há muito era o sonho de João, 49 anos, marido de Rute, pai de Marta, Afonso e Cármen. “Estamos juntos há mais de 20 anos e há muito que ele me dizia que queria navegar num veleiro e conhecer outros locais, outras famílias”, recorda a esposa, a partir da Colômbia. Entretanto, a família cresceu e com ela a ideia de passarem mais tempo de qualidade. E o sonho foi-se fazendo resolução de vida. “Começámos a trabalhar para o projeto dez anos antes de ele acontecer.”

A bordo do veleiro onde querem dar a volta ao Mundo, os Gonçalves não descuram os estudos. Nem as brincadeiras
(Foto: DR)

Primeiro, foi preciso poupar para conseguir comprar o barco. Depois, tiveram de encontrar uma embarcação que preenchesse os requisitos de um desafio tão exigente. “Tinha de ser um barco de aço, com uma quilha estrutural, para os momentos em que o tempo não estivesse tão bom. Encontrámo-lo em Amesterdão, há mais ou menos quatro anos.” Mas ainda havia muito trabalho pela frente. Só a recuperação do barco levou mais de ano e meio. E depois ainda foi preciso resolver a vida profissional do casal. João, que é dono de uma empresa na área do turismo, deixou-a entregue a um amigo. Rute, que trabalha na Galp, pediu uma licença sem vencimento. “Não só não levantaram problemas como apoiaram o projeto. Há quem pense que não, mas é possível embarcar numa aventura destas sem renegar o passado.”

Faltava planear. Rute encarregou-se disso. Metódica, minuciosa, perdeu incontáveis horas à volta de ficheiros Excel. Um para a parte financeira. Um para a rota a seguir, pensada para um período de dois anos e meio. Só que nem um ano depois, tinham já eles passado por 49 ancoradouros/portos, num total de 13 países, 6 481 milhas e 1 194 horas de navegação, a covid veio travar-lhes a rota e trocar-lhes as voltas. E assim acabaram retidos na Marina de Santa Marta, onde estão há três meses. O entusiasmo de Rute não esmorece, ainda assim. “Ficámos aqui retidos com mais 17 barcos, ao todo pessoas de dez nacionalidades, e criou-se um grande espírito de partilha, ajuda, amizade.” Exemplos não faltam. Cármen, a filha mais nova, já teve aulas de inglês dadas por vizinhos. Marta de francês. Aos domingos, às 7.30 horas, há ioga para todos. Às terças-feiras todos participam na recolha de lixo. Não há televisão, mas volta e meia os “vizinhos” juntam-se todos para ver filmes na Internet. E vídeos, fazem uns quantos vídeos. Desde versões improvisadas de músicas dos “Eagles” a brincadeiras relacionadas com os “prisioneiros da marina”. Os miúdos também se divertem com jogos. Cartas, xadrez, damas, Monopólio, Cluedo. Cármen, a mais nova, até já aprendeu os números e valor deles a jogar às cartas.

Os irmãos Gonçalves estudam a bordo do veleiro em que viajam
(Foto: DR)

O futuro é que segue nebuloso. “Ainda não sabemos bem. Em princípio Panamá, Costa Rica, Polinésia Francesa, Fiji, Vanuatu, Austrália. Depois ou fazemos Indonésia, Tailândia, Índia e regressamos pelo canal do Suez para o Mediterrâneo ou paramos a viagem e vendemos o barco”, projeta Rute. Dependerá de tudo um pouco. Do estado de espírito, da pandemia, dos compromissos profissionais do casal. Até porque a paragem forçada, que se pode estender até setembro, fez com que perdessem o timing para atravessar o Pacífico e se atrasassem quase um ano. “Mas a ideia da viagem é o tempo que vivemos em cada local, em família e com cada nova pessoa que conhecemos. Não é uma corrida à volta do Mundo.” Certo é que os rituais de estudo são para manter. Com o Estudo em Casa a servir de amparo. “Só lamento que não seja possível fazer download das aulas porque por acaso aqui na marina temos Internet, mas durante a viagem muitas vezes não vamos ter”, queixa-se Rute.

Da África do Sul ao Luxemburgo

Criado em “tempo recorde”, como sublinha, em declarações à “Notícias Magazine”, o ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues, o Estudo em Casa já trazia no ADN um horizonte maior de extravasar as fronteiras do país e da idade. “O modelo foi desenhado com a perspetiva de que a transmissão em formato televisivo, em canal aberto, e simultaneamente na Internet, permitisse um acesso universal dos estudantes ao conhecimento escolar, mas também um alcance muito mais amplo, incluindo as diversas faixas etárias e as comunidades de língua portuguesa em diversas partes do Mundo.” O governante frisa ainda, a propósito destas últimas, que se trata de “um recurso educativo importante”, “no sentido de consolidarem as suas aprendizagens, bem como os vínculos com a língua e cultura portuguesas”.

Gisela Nunes, que vive na África do Sul mas também tem nacionalidade portuguesa, via as aulas todas as manhãs
(Foto: DR)

Gisela Nunes, 23 anos, nascida e crescida na África do Sul – mesmo que, graças aos pais, também tenha nacionalidade portuguesa – é um bom exemplo disso. Em pequena, a língua dos progenitores ainda lhe ia sendo familiar. Tanto que frequentou a escola portuguesa até ao sexto ano. Mas depois seguiu outro rumo. Pelo meio, os pais separaram-se e a mãe voltou a juntar-se, desta feita com um sul-africano. Deixaram, por isso, de falar português em casa. Gisela ainda ia ouvindo os avós, também portugueses, mas era manifestamente pouco. Deixou-se andar assim durante anos. Até que veio o vírus. E o confinamento. E um dia, enquanto via a RTP, ouviu falar do Estudo em Casa. O conceito despertou-lhe curiosidade, ao ponto de ir procurar na Internet para saber mais. “Foi aí que comecei a ver as aulas, a tirar notas e a estudar a língua”, partilha, em inglês. Diz que ainda está demasiado tímida para dar a entrevista em português. Mesmo que tenha melhorado bastante nas últimas semanas. “Foi bom porque lá explicam tudo mesmo desde o princípio. E tem a vantagem de se poder parar, pesquisar determinadas palavras e continuar a ver, no ritmo que quisermos.”

Durante semanas, todas as manhãs Gisela assistia a uma aula. Por isso, em quatro ou cinco semanas, concluiu todas as 23 lições do nível inicial. Só lamenta não ter conseguido prosseguir com o intermédio. “Como é tudo falado em português, e já é um nível mais avançado, senti muitas dificuldades em compreender”, queixa-se, lamentando que não haja aulas de português em… inglês. Seja como for, aprendeu o suficiente para notar diferenças assinaláveis. “Agora quando vou aos meus avós já percebo melhor o que dizem e já consigo participar nas conversas. E a minha mãe ficou orgulhosa por perceber que eu tinha aprendido muitas palavras novas, e por iniciativa minha.” Afinal, o confinamento foi o clique que faltava para que Gisela prosseguisse um objetivo que há muito trazia guardado. “A quarentena inspirou-me”, reconhece. E não tenciona parar. No futuro, quer inscrever-se em mais cursos de português. Até porque a família almeja regressar a Cascais nos próximos anos. E ela até já tem um objetivo bem definido: “Quero aprender português e um dia quero ensinar inglês nas escolas internacionais, em Portugal”.

Sara Magalhães, a viver no Luxemburgo há seis anos, aproveitou o Estudo em Casa para melhorar o francês
(Foto: DR)

Mas também há emigrantes a usar o Estudo em Casa para aprender outras línguas. Sara Magalhães, 30 anos e residente no Luxemburgo há seis, que o diga. No caso desta assistente dentária, natural de Guimarães, a iniciativa serviu sobretudo para melhorar o francês, uma das línguas mais faladas no país. “A minha mãe foi-me dizendo os horários e eu acompanhava pela televisão.” Admite que não terminou as aulas, até porque entretanto começou a fazer outros cursos online, mas aquelas horas que passou a ver o Estudo em Casa a ajudaram a recordar e a aumentar o vocabulário. “Acompanhei os módulos sobre a casa, a alimentação, os graus de parentesco, a vida quotidiana”, enumera, antes de deixar elogios à iniciativa. “Muito bom, sobretudo tendo em conta que as pessoas tiveram de estar fechadas em casa. E também estimula as crianças a serem autodidatas, o que é importante.”

Recordar, aprender, matar saudades

Os testemunhos de Gisela e Sara mostram que, ao longo de mais de dois meses, o Estudo em Casa rasgou fronteiras. Físicas sim, geracionais também. Os números sustentam a tese. Segundo dados cedidos pela RTP à “Notícias Magazine”, entre as 95 mil pessoas que, em média, assistiram às emissões do programa na RTP Memória, mais de um terço (perto de 35 mil) tinham mais de 35 anos. Dentro destas, cerca de cinco mil tinham mais de 55 anos. Isabel Francisco, 63 anos, residente no Porto, inclui-se nesses milhares. Assim que ouviu falar na iniciativa sentiu o interesse instalar-se de mansinho. Até porque a curiosidade já lá morava há umas dezenas de anos, desde a velhinha Telescola, criada em 1965 e na altura concentrada apenas no equivalente aos atuais quinto e sexto anos. “O meu irmão mais novo já apanhou a Telescola. Eu não. Fiquei sempre com aquele bichinho de querer saber como era.”

Por isso, quando soube que a RTP Memória começaria a transmitir aulas de várias disciplinas, ficou atenta. Ainda para mais porque, por estar em lay-off, tempo não lhe faltava. Era a altura do estado de emergência, da quarentena, dos números a subir a pique. Isabel, cautelosa, deixou-se ficar por casa, como mandava a prudência. E o Estudo em Casa foi-se fazendo companhia de umas quantas manhãs confinadas. “Vi logo no primeiro dia.” E foi vendo nos dias e semanas que se seguiram. “Não posso dizer que esteja propriamente agarrada à televisão o dia todo, mas quando estava a dar deixava-me ficar a ver.” Sobretudo as aulas de História, Português e Matemática. Os momentos em que assistiu às aulas serviram-lhe dois propósitos. Por um lado, recordar conhecimentos antigos. “Gosto de relembrar e comparar com o que ensinavam no meu tempo.” Por outro, enganar a nostalgia. O coração agradece. “Isto ajuda a transportar-me à minha meninice, a matar saudades do tempo em que andava na escola.”

Para Isabel Francisco, o Estudo em Casa tem duplo propósito: matar saudades e recordar conhecimentos antigos
(Foto: Pedro Correia/Global Imagens)

Ainda mais porque a vida não lhe permitiu seguir além da quarta classe. “Na altura o meu sonho era continuar a estudar e ser professora, mas não foi possível.” O gosto pelos estudos nunca esmoreceu, ainda assim. Conta que quando a filha andava na escola tinha o hábito de lhe folhear os livros. Que ainda hoje adora aprender com a descendente, sobre a história e a memória dos lugares da cidade do Porto. E mesmo que diga que já está velha para voltar a estudar, a meninice parece voltar toda nos minutos de entusiasmo em que fala de como o gosto por aprender lhe ficou para sempre.

O entusiasmo de Isabel é o mesmo de Emanuel Almeida, 69 anos. A diferença é que, enquanto a portuense vê as aulas sozinha, este reformado de Vila Nova da Barquinha assiste religiosamente ao Estudo em Casa com o neto, Pedro Teixeira, de nove anos. “Desde que ouvi falar nisto que fiquei muito curioso para perceber como ia funcionar. Surpreendeu-me pela positiva porque acho que os professores foram muito bem escolhidos. Estão muito cientes da matéria e lecionam muito bem, com muito entusiasmo.” O empenho de Emanuel também ajuda. É que além de assistir às aulas com o neto faz questão de levar a coisa a sério. Tira apontamentos e tudo, para mais tarde recordar. Nuns desenhou cilindros e pirâmides, noutros foi anotando os dias da semana em inglês. “Já não me lembrava.” As aulas de Português também lhe têm sido bem úteis. “Escrevo muito no portátil, mas já não sabia bem a diferença entre o acento grave e o acento agudo. As aulas também me ajudaram nisso.”

Com tanta dedicação, Emanuel assume, meio a sério, meio a brincar, que acaba por estar mais atento ao Estudo em Casa do que o neto. “Eu vou vendo os horários das aulas e vou-lhe perguntando quando são as aulas dele. O meu neto é um bocadinho distraído”, brinca o avô babado. “Às vezes lá diz que já sabe a matéria, mas eu insisto: ‘Pronto, ainda bem, assim fazes uma revisão’.” O neto, diz, é um privilegiado. Porque além de ter uma ótima professora, ainda tem o acompanhamento da mãe, também ela docente. E a companhia do avô, sempre que chega a hora das aulas na RTP Memória. Por vezes, até da avó, Virgínia, 70 anos. “Eu vou fazendo a minha lida na cozinha, ocupo-me mais com isso. Mas volta e meia vou espreitando e recordando coisas que aprendi no meu tempo.” A ensinar o neto é que já não se aventura. “No início ainda tentava mas as coisas hoje são muito diferentes. O Pedro começava logo a dizer: ‘Ó vó, olha que não é assim!’ Então pronto, como lhe ensinava tudo ao contrário, deixei de ensinar”, ri-se a avó Virgínia, antes de soltar um elogio à iniciativa: “Acho que ensinam muito bem, de forma a que tanto as crianças como os adultos entendam”.

Sempre que o neto, Pedro, acompanha as aulas do Estudo em Casa, Emanuel faz-lhe companhia. E até tira notas
(Foto: Pedro Martins/Global Imagens)

Do lado do Ministério da Educação, e agora que as emissões do programa na RTP Memória já terminaram, o balanço é “claramente positivo”. “Foi consensualmente reconhecido, a nível nacional como internacional, enquanto um fator de coesão, de continuidade das aprendizagens e de transmissão de conteúdos adequados e relevantes para os diferentes níveis e ciclos educativos”, defende Tiago Brandão Rodrigues, antes de sublinhar os “contributos importantes ao nível das dinâmicas familiares, da aprendizagem ao longo da vida e da educação em comunidades de língua portuguesa espalhadas pelo Mundo”. Do outro lado do Mundo, num dado veleiro que está há três meses parado numa marina da Colômbia, há uma família portuguesa que tende a concordar.

Números

212 mil pessoas a ver
A audiência média diária do Estudo em Casa na primeira semana em que as aulas foram transmitidas na RTP Memória (share de 7,4%).

18,5% de share
As aulas de Expressão Artística foram as mais vistas. Tiveram uma audiência média de 279 mil pessoas. A aula mais vista, a 21 de abril, juntou 528 mil.

439 mil visitantes
O número aproximado de pessoas que entraram no site, na primeira semana em que a plataforma esteve disponível. Através da app entraram 29 mil.

93% de visitantes em Portugal
Os acessos ao site do Estudo em Casa aconteceram maioritariamente no nosso país. Mas 1,64% dos acessos foram feitos a partir do Brasil. E 0,72% a partir dos EUA. Entre outros.