Estar solteiro em tempos de pandemia

O que parece inegável é que, nesta nova realidade, a solidão se vai impondo

Conhecer novas pessoas é hoje uma missão mais difícil. Pensar em novos relacionamentos também. Até porque o medo ainda anda por aí. Vantagens e desvantagens de uma nova era.

Manuel Tur, 35 anos, encenador, há muito se define como “um gajo analógico”. “Nunca fui de andar nos Tinders nem nessas aplicações. Nunca tive mIRC, por exemplo [chat que era uma das aplicações mais populares da Internet no início dos anos 2000]. Mas sou assim no geral. Tanto que só tive MB Way há dois meses”, brinca. Vai daí, pode dizer, com elevado grau de certeza, que todas as relações amorosas (ou simples engates) que teve até hoje resultaram de interação cara a cara. “Ou alguém que já conhecia, ou uma amiga de algum amigo.” Vem isto a propósito da pandemia e de tudo o que vem com ela. De como ser solteiro – não na perspetiva do estado civil, mas na de não ter companheiro(a) – pode ser particularmente desafiante em tempos de covid. Porque as saídas à noite estão restringidas. Porque a vida social acaba necessariamente mais limitada. Porque ainda há o medo que o vírus inspira para agudizar o desafio.

O portuense conta a experiência na primeira pessoa. “Claro que a dada altura comecei a sentir falta. Nunca fui de andar aí ‘roda no ar’, atenção. Mas, mais do que uma necessidade sexual, começa a sentir-se uma necessidade de contacto, de falar com alguém, de ter alguém”, conta, descomplexado. Sobretudo porque, desde o início da pandemia, praticamente não tem conhecido pessoas novas. “Eu até saio para passear o cão, mas, quer dizer, não vou estar com engates de rua. Agora com as máscaras e tudo. Uma pessoa pode ter uma surpresa desagradável”, vai dizendo, com inegável sentido de humor. A solução? “O que tenho feito é mais recuperar contactos antigos, com pessoas que já conhecia.” Mesmo assim, há obstáculos. Ou um grande obstáculo. O medo, pois. “Não sei se é mais uma coisa do sexo feminino, mas tenho notado muito isso, uma certa desconfiança. Pessoas que me questionam sobre os meus contactos sociais. Ou então: ‘Mas tens a certeza que estás bem?’.” Resumindo: sem dramatismos (“eu sou um dos otimistas”, assinala), não crê que conhecer alguém novo, na perspetiva de um possível relacionamento amoroso, “vá acontecer tão cedo”. Mas o assunto não lhe tira o sono. “Inquieta-me, mas não me preocupa. Embora reconheça que estes são tempos muito particulares.”

Maria Isabel Dias, especialista em sociologia da família e do género, reconhece que vivemos hoje uma realidade distinta, em nome do “isolamento físico e de todas as circunstâncias derivadas das medidas de higiene e distanciamento a que todos temos de estar obrigados”. Realidade essa que tem impacto direto em todas as relações. “A pandemia teve um efeito drástico numa dimensão fundamental que é a da convivialidade”, começa por sintetizar a docente de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. “Nas sociedades modernas, o contexto de convívio ficou muito mais comprometido. As pessoas deixaram de frequentar espaços onde é mais fácil encontrar parceiro, seja ele sexual ou amoroso. E portanto tornou-se mais complicada a vida para quem é solteiro e quer entrar numa relação conjugal de namoro. Ou noutro tipo qualquer de relação.”

Solidão, ansiedade, depressão

As restrições impostas ao nível da diversão noturna – durante meses, todos os espaços estavam obrigados a fechar às 23 horas; agora, à exceção de Lisboa, onde até as discotecas têm de fechar às 20 horas, o horário foi estendido até à uma da manhã – têm aqui um peso importante. “As pessoas estão a estranhar muito esta questão da falta da noite, como espaço de convívio para se encontrar novas relações”, assume Catarina Mexia, psicóloga e terapeuta familiar. Há casos e casos, claro. Desde que o desconfinamento começou, a vida social – e noturna – de Catarina Saraiva, 39 anos, passa essencialmente por jantares em casa de amigos. E a empresária por conta própria, nas áreas do imobiliário e do têxtil, garante que não se dá nada mal com isso. “Sinceramente não tenho grandes saudades da noite. Gosto de dançar e ouvir música, mas em casa dá para fazer isso e até dá para estar mais à-vontade, num registo mais tranquilo. Não sei se não me vou habituar a isto.” Admite, no entanto, que sente falta de pessoas novas. Mas descansa-a a ideia de que “isto é temporário”. Quanto ao vírus, assegura que não anda assustada. Nem crê que isso vá condicionar a possibilidade de se aproximar ou envolver com alguém. “Por acaso não tenho tido encontros com pessoas que vou conhecendo virtualmente. Também já não o fazia muito antes. Mas acho que se surgisse a oportunidade não deixaria de o fazer por causa do vírus.”

Ana Carvalheira, psicóloga e investigadora do ISPA – Instituto Universitário, na área da psicologia da sexualidade, tem ouvido, em consulta, uns quantos desabafos de “pessoas frustradas por não terem parceiro e quererem ter”, mas destaca a diversidade de perspetivas e posturas como um ponto de partida importante para olhar para a questão. “Há pessoas mais descontraídas, que tendem a arriscar e a transgredir, pessoas menos descontraídas, mais preocupadas e com uma atitude mais responsável, e até algumas particularmente rígidas, que tendem a ficar mais frustradas e a retrair-se. Algumas delas podem mesmo ficar mais isoladas.”

Os comportamentos também tendem a variar consoante a faixa etária. “O impacto não é igual para todos. Eu conheço melhor a realidade de uma faixa etária mais velha, de mulheres com quarenta, cinquenta anos, solteiras, divorciadas, sem parceiro e tenho notado as pessoas mais seletivas, a olhar mais para o que está próximo e a moderar mais comportamentos de procura de parceiros previamente desconhecidos. Acho que os jovens são mais propensos a transgredir.”

O que parece inegável é que, nesta nova realidade, a solidão se vai impondo. Sobretudo porque, defende Ana Carvalheira, já vivíamos um momento social “de muita individualização e em que as pessoas estão muito viradas para si e para as suas necessidades, onde imperam valores como o imediatismo”, uma certa tendência para o “fast love”. Junte-se a isso uma pandemia e tudo que vem com ela e concluímos que “em vários casos, o vírus tem acentuado a tendência para um desinvestimento relacional”. Também devido a uma certa desesperança em relação ao futuro, sublinha. “Há muito quem pense: ‘Se até agora não encontrei ninguém agora ainda vai ser mais difícil’. E isto é terrível porque as pessoas ficam muito sozinhas. Há uma maior solidão e, nalguns casos, por consequência, um maior desligamento.” Com a saúde mental a ressentir-se. “Há cada vez mais quadros de ansiedade e depressão”, alerta a especialista.

A sedução das apps…

A psicóloga Catarina Mexia também tem notado a propensão para a solidão. Com todos os efeitos que daí derivam. “Este medo da solidão e de morrer sozinho veio pôr mais pressão nas pessoas para encontrar alguém. Particularmente nas mulheres, até pela questão da maternidade.” Quer isso dizer que as apps de encontros estão a encontrar terreno fértil para crescer? Há indicadores disso. “É preciso ter em conta que essas soluções já eram muito utilizadas antes da pandemia. Já num estudo recente que fiz sobre o recrudescimento do VIH entre os homens que têm sexo com homens constatei o elevado uso dessas aplicações. Eram soluções que já estavam generalizadas antes da covid”, salienta a socióloga Maria Isabel Dias.

Agora, desenham-se as condições perfeitas para que o seu uso se torne ainda mais recorrente. “Sabemos todos que a pandemia trouxe um uso intensivo das tecnologias de informação e comunicação. E que o ser humano sabe ser muito criativo em condições de adversidade. É muito possível, por isso, que o uso destas aplicações tenha aumentado.” Os números dão-lhe razão. Segundo dados divulgados pela Match Group, uma empresa americana que é responsável por algumas das mais famosas apps de encontros a nível mundial, só o Tinder – popular aplicação de encontros em que o utilizador vai deslizando para a esquerda ou para a direita consoante goste ou não dos perfis que lhe vão aparecendo, com o objetivo de fazer “match” -, registou, entre 1 de abril e 30 de junho, um aumento de receita direta na ordem dos 15%.

…e as boas notícias

Mas neste cenário novo para solteiros, com o início de novos relacionamentos amorosos e sexuais aparentemente dificultado, também há razões para manter o otimismo. Quem o garante é Catarina Mexia. “A necessidade de manter mais distanciamento, o facto de os relacionamentos serem hoje mais mediados pelas tecnologias, no fundo obrigou-nos a ter tempo, a conhecer a pessoa antes do envolvimento. Uma das coisas positivas é que as pessoas acabam por dar mais espaço ao envolvimento emocional. Quando aceitamos falar sobre o encontro que vamos ter, sobre os nossos medos, sobre as nossas vulnerabilidades, muito por causa do vírus, acabamos por criar um momento importante, que pode estar na base de relações mais sólidas.”

Este tempo, esta necessidade de maior resguardo, pode ser particularmente importante para quem não está tão à vontade. “Esta fase acaba por ser uma boa proteção para os tímidos. Esta possibilidade de poder caminhar lado a lado, sem haver a pressão de um toque imediato, dá tempo às pessoas para aos poucos irem abrindo as suas barreiras, os seus limites.” No limite, considera, pode aumentar o tabu, e por consequência o desejo. Algo que, de resto, não é uma absoluta novidade. “No tempo dos nossos avós já era assim, mas as coisas foram mudando. Hoje um primeiro beijo num primeiro encontro é a coisa mais normal. Podemos aproveitar para pensar que todas estas restrições podem ter um lado positivo.”