Estar em casa foi a melhor coisa que lhes aconteceu

Para alguns o confinamento foi a melhor solução (Ilustração: MG/Notícias Magazine)

Quando a quarentena começou houve quem entrasse em pânico. Pais com filhos ansiosos. Adolescentes que não tinham com o que se distrair. Afinal, parar era a solução que faltava.

Lúcia andava assustada. Mesmo antes de se falar em confinamento o filho, Júnior, tinha deixado de ir à terapia ocupacional e às consultas de psicologia. “Andava muito revoltado e agitado. Quando entrámos em confinamento já lá não íamos há 15 dias. Tínhamos percebido em conjunto que não estava a ser benéfico, que não estava a ajudar, embora ele adorasse as médicas.”

Com sete anos, o pequeno tinha vários problemas identificados. Hiperatividade, défice de atenção em grau elevado, insónias e, ultimamente, agredia-se. Além disso, era uma criança demasiado magra para a idade e altura porque quase não comia. Era esquisito com tudo.

“Ficar em casa, devido à pandemia, começou a stressar-me e a assustar-me por não saber como o Júnior ia reagir a ser obrigado a estar fechado tanto tempo, de um momento para o outro, sem a escola, sem os amigos.”

Na cabeça de Lúcia, o cenário só podia piorar. Já se estava a ver a recorrer às médicas e às terapeutas, nem que fosse por telefone. “O mais certo era que o meu filho tivesse de mudar de medicação.” Um drama desnecessário. Ao contrário dos dias infernais que esta mãe tinha previsto, o filho melhorou. “Nem queria acreditar. À medida que o tempo ia passando, notava o Júnior mais feliz, mais calmo.”

Obviamente, a nova rotina escolar (aulas pelo computador, pela televisão, os trabalhos e as fichas) ainda era fonte de stresse. “Na escola, o Júnior andava no ensino acompanhado, e depois de vir para casa só falava com a professora de vez em quando. Essa parte foi mais complicada.” Para ambos. Ainda assim, mesmo sentido que o filho andava perdido em termos escolares, para Lúcia era evidente que a criança estava emocionalmente mais serena.

A dado ponto, a mãe lembrou-se – também como forma de o manter ocupado extraescola – de o colocar na cozinha a confecionar as próprias refeições. “O resultado foi surpreendente. Passou a comer alimentos mais saudáveis e a gostar de legumes, coisa que ele não queria comer nem por nada.”

Ao fim de 15 dias confinado, a criança já não se agredia, deixou de ter insónias e de estar constantemente agitado, e comia. “Continua irrequieto, mas tudo o resto, pura e simplesmente quase desapareceu.” Na ideia da mãe, a explicação é simples. O filho alimentava uma revolta por andar tão sobrecarregado. “E parte da culpa era minha. Pensei que estava a fazer o melhor mas andava a pressioná-lo. Como era constantemente chamada à escola, acabava por lhe pôr muito peso aos ombros. Ele já se sentia diferente dos outros meninos, e ser repreendido a toda a hora não estava ajudar.”

Assim, a partir do momento em que passou a ter mais tempo para estar com a família, ou melhor, que a família passou a ter mais tempo para estar com ele, dando-lhe mais atenção, o menino acalmou. “Nunca mais o ouvi dizer disparates. Foi-lhe retirado um dos medicamentos que tomava, e em dois meses aprendeu a ler, o que ainda não fazia, mesmo estando no 2.º ano.”

Por seu turno, os pais viram nele características nas quais nunca tinham reparado. “Noto que o meu filho tem um nível de inteligência incrível. Faz vídeos e tem uma imaginação que me deixou completamente surpreendida. E é muito espontâneo.” Perante tudo isto, os pais incentivam-no. Quando consegue atingir objetivos, dizem com frequência palavras como “boa, Júnior!”, “isso mesmo”, “parabéns, conseguiste”. Antes do confinamento, é Lúcia quem garante, “como se sentia posto de lado, era agressivo e dizia com frequência: ‘Mas eu não consigo, eu não consigo’. Faltava-lhe isto, ser valorizado.”

Agora que em casa todos sabem lidar com o Júnior, Lúcia concluiu: “A pandemia e o confinamento foram maus para muita gente, mas para o meu filho foi a melhor coisa que lhe podia ter acontecido. E a nós também. É que o facto de ele estar melhor também melhorou o nosso ambiente familiar.”

Quem diria?

A pedopsiquiatra Bárbara Romão acompanhou este caso de perto. Na verdade, assim que foi obrigada a suspender as consultas presenciais com a criança, deu consigo várias vezes a pensar, “preocupada”, como é que a família ia conseguir lidar com este caso. Só que depois começou a verificar que não era só o Júnior que estava a apresentar melhoras significativas ao fim de umas semanas de confinamento.

Diana Costa, 19 anos, fala na primeira pessoa. “Aos 13 diagnosticaram-me ciclos rápidos de depressão.” Uma situação que se resolveu há um ano e meio mas que a deixou sempre com muitas dificuldades no dia a dia, sobretudo em questões como “fazer amigos, mantê-los, lidar com pessoas em geral”. Quando foi para a universidade, como passou a ter uma vida muito preenchida, Diana ficou com a sensação de que estava a lidar melhor com as suas crises. Só na quarentena é que tomou consciência de que “não era feliz com a vida que tinha” e que “andava tão ocupada que nem tinha tempo para pensar nas coisas”.

Resultado: nas duas primeiras semanas em casa ficou muito em baixo. Após dias de ansiedade, de muitas noites mal dormidas a desabafar com pessoas próximas e a refletir, reuniu uma série de verdades sobre si que já não podia ignorar. “Punha sempre os outros à frente do meu bem-estar. Se estivesse muito cansada mas me pedissem para sair, eu ia. Também achava que os amigos nunca me iam desiludir.” Assim que começou a acalmar percebeu que as pessoas têm direito a errar, “é humano”. Que se não queria sair, “então não saía”. Que “não ia perder a habilidade de falar com as pessoas só porque não ia estar com elas todos os dias”. E que tinha de pensar mais em si, algo que “antes não acontecia”. O facto de aceitar certas coisas e relativizar outras clareou horizontes. Ao ponto de garantir que está “mais confiante”, “menos antissocial” e, no geral, “muito melhor”. Prova disso é que as relações e as conversas não são tão difíceis hoje como eram há uns meses. “Sinto que este período da quarentena me ajudou muito a parar e a saber o que me faz feliz, em vez de ignorar o que me faz triste.”

Na opinião de Bárbara Romão, estas e outras melhorias relacionadas com “ansiedade, depressão, distúrbios alimentares, défice de atenção e insónias” devem-se sobretudo “à libertação das rotinas opressoras a que as crianças, os jovens e as restantes pessoas são sujeitas no seu dia a dia de escola e de trabalho”. No caso da evolução positiva das crianças, como aconteceu com o Júnior, a pedopsiquiatra declara que “a maior parte dos nossos filhos não sabe fazer tarefas domésticas, e como não há tempo para os ensinar, os pais preferem fazer eles, para ser mais rápido e porque hoje as crianças têm muitas tarefas escolares para cumprir”. O que acaba por “retirar habilidade, responsabilidade e até benefícios do convívio” aos mais pequenos. Além disso, “mesmo o facto de os pais terem mais tempo durante a quarentena para conversar e contar a história da família faz com que os mais novos comecem a perceber quem são, de onde vêm e, se calhar, a admirar mais os laços familiares e até a entenderem melhor o pai e a mãe”.

Para Bárbara Romão, há aqui um culpado identificado e um caminho a seguir. “O stresse contamina as relações, retira tempo às famílias, à comunicação e ao espaço que podiam ter para descansar e relaxar uns com os outros.” Posto isto, “ou o sistema de educação e de trabalho são repensados, de forma a reduzir o ritmo frenético que temos todos os dias, ou acabaremos todos por adoecer, com pânico, pressão e fobias”.