Estados Desunidos da América

Estas presidenciais são muito mais sobre Donald Trump do que sobre Joe Biden, mas é o democrata que lidera projeções. Com os fantasmas de 2016 presentes, cresce o clima de incerteza, grassa a desestabilização. Ninguém quer fazer prognósticos. A eleição é nesta terça-feira, dia 3 de novembro.

Richard Zimler acordou, viu logo o que passava e depois foi como se tivesse vontade de partir um copo na cara com desespero. Tinha-se deitado mais cedo, moderadamente calmo, otimista, tudo parecia bem norteado, podia dormir descansado. E foi. Mas umas horas depois, com um frio estranho que sentiu percorrê-lo por dentro e por fora, acordou, abriu os olhos na escuridão e pressentiu aquilo que ia ver.

“Não queria acreditar”, diz o escritor de 64 anos quando acendeu a televisão e viu a Florida encarnar. O círculo sufragista do sul e do sol que em 2000 deu uma eleição a Bush sobre Gore, esse estado que vale 29 votos no Colégio Eleitoral, tantos quanto Nova Iorque, perdia a cor azul clara da candidata democrata e ruborizava.

Richard Zimler tem dupla nacionalidade, americana e portuguesa, e vota nas eleições dos dois países
(Foto: Lisa Soares/Global Imagens)

“Foi como olhar para um precipício e sentir-me logo a resvalar. Deitara-me cedo com a esperança intocada na vitória da Hillary [Clinton] que esteve sempre à frente em todas as sondagens. Às quatro da manhã levantei-me, inquieto, a pressentir uma coisa má, liguei a TV e vi a Florida a mudar para vermelho, a cor republicana, a cor de Donald Trump, ele ia ganhar.” E depois foi a hecatombe: o empresário milionário da “reality TV” entrava com estrondo na política e ganharia a seguir o Ohio e os três estados basculantes do “upper midwest”, que caíram como uma parede esboroada, a Pensilvânia, depois o Wisconsin, depois o Michigan, caíram todos para o Partido Republicano. Como um zombie, “voltei para a cama, dormi mal, acordei e depois confirmei, era ele, estava lá de pé, já discursava em Nova Iorque, aqui eram oito horas, lá eram três da manhã. Desliguei logo outra vez de repente a televisão, dei os depoimentos que tinha prometido aos media dar, a palavra medo foi a que mais usei, desliguei o telemóvel, escureci a casa e fiquei assim, sem querer acreditar. Acho que tinha esperança que quatro anos pudessem passar todos numa noite só. Mas não passaram”. E agora Zimler, que tem dupla nacionalidade, é americano nascido em Roslyn Heights, subúrbio de Nova Iorque, é também desde 2002 cidadão português, a morar no Porto, e vota nas eleições dos dois países, agora o escritor está ainda com mais receio do que nessa noite de novembro de 2016. “Não sei como vou aguentar o dia 3 [próxima terça-feira, dia da eleição presidencial nos EUA], é que fico agoniado, fisicamente doente, não sei como vai ser.”

Ninguém se arrisca a fazer prognósticos

À medida que se aproxima a noite eleitoral, 2020 vê crescer os fantasmas de 2016 e o temor de que se repita o choque de uma alteração na última hora. Como então, também agora o candidato democrata, Joe Biden, que é de centro-esquerda e tem como vice-presidente Kamala Harris, que a ser eleita será a primeira mulher, e mulher negra, no cargo, vai à frente nas sondagens. Biden lidera na Pensilvânia (vantagem de +3,6%), Wisconsin (+5.5%) e Michigan (+9.0%). Na Florida, o democrata também vai à frente (+1.2%) e tem hipótese na Carolina do Norte (+0.7%), no Arizona (+2.4%) e pode até sonhar com o Texas, que Trump comanda com +2.6% (todos os dados são a média agregada do site Real Clear Politics à hora de fecho desta edição), um estado que os democratas não vencem desde 1976, quando Jimmy Carter derrotou o republicano Gerald Ford, na senda do escândalo Watergate que em 1974 levou o presidente Nixon a renunciar.

Biden lidera nas sondagens, mas à medida que se aproxima a noite eleitoral crescem os fantasmas de que uma alteração no sentido do voto se repita
(Foto: Erik S. Lesser/EPA)

Será este ano como uma onda tão alta e azul que leva tudo à frente na sua massa de votos, como um tsunami eleitoral? Ou será uma miragem vermelha que vire novamente a expectativa da América e se decide depois, com muita batalha jurídica e agonia legal nos tribunais? Poderá haver outra recontagem na Florida, como em 2000? Ou a eleição presidencial dos Estados Unidos será realmente, como as sondagens sugerem agora, uma vitória descontrolada do ex-vice-presidente de Obama, um “landslide”, uma verdadeira enxurrada?

“Esse é o melhor cenário para qualquer uma das partes – uma vitória clara decidida nas urnas e não nos tribunais. E que não traga alarme social nem descambe para protestos com confrontos nas ruas, que podem ser muito inquietantes, e perigosos, com extremistas e supremacistas, que existem cá na Europa como lá na América, mas que lá, porque a Constituição o permite em muitos estados, saem para a rua fortemente armados. Até para nós, que somos só espectadores, muito atentos, muito interessados, mas estamos aqui a ver de longe, era melhor que tudo fosse decidido com clareza através dos votos nas urnas, isto é, através da democracia irrefutável, que é como deve ser”, sustenta José Tribolet, cientista de computação e professor no Instituto de Engenharia de Sistemas, que já viveu dez anos, na década de 1970, nos EUA, onde se formou no MIT, em Boston, e nos laboratórios Bell, na Nova Jérsia. “Quanto a prognósticos, é 50/50, não sei, ninguém sabe como aquilo vai acabar”, conclui.

José Tribolet, cientista de computação e professor no Instituto de Engenharia de Sistemas, viveu dez anos nos EUA, onde se formou
(Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens)

“Não faço prognósticos, não arrisco, e não gosto de sondagens”, sublinha por seu lado Ana Santos Pinto, mestre em História das Relações Internacionais e ex-secretária de Estado da Defesa Nacional (2018-2019). “Tenho sentimentos misturados, mas o que seria mais pacificador a curto prazo, nesta eleição tão dividida, tão polarizada, era uma vitória expressiva, sem dúvidas, de um dos candidatos. Nesse sentido, a eleição de Biden pode ser melhor para a América.” E continua: “Não acredito que Trump ‘roube’, com aspas, a eleição. A democracia americana está consolidada, tem instituições resilientes e que vigiam o sistema, e ainda que estejam mais vulneráveis ao ambiente de polarização, mais até do que em 2016, temos que acreditar na capacidade de resistência do processo democrático”. No caso de as urnas darem uma vitória apertada, “aí Trump, o presidente em exercício, vai usar todos os instrumentos políticos e judiciais que tiver à disposição”, antevê Ana Santos Pinto.

“Tenho confiança total na independência e na sobriedade do Supremo Tribunal”, realça à NM Raquel Vaz Pinto, académica do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa, e admiradora do Supremo, que pode ser obrigado a decidir as eleições. “O Supremo tem uma solenidade muito própria e um historial de grande independência. Acredito na instituição e que irão prevalecer os direitos constitucionais fundamentais”, ainda que admita “alguma inquietação com a nomeação apressada da nova juíza, Amy Coney Barret, eleita pelo Senado a uma semana das eleições. Isso foi um sinal de fraqueza, e claro, dos republicanos. Trump terá a noção de que as coisas podem correr mal e está já, como de resto faz quando coloca em causa, e sem provas, a fiabilidade da votação por correio, está já a garantir uma saída. Mas não creio na possibilidade de um roubo, claro que não”, resume Raquel Vaz Pinto.

Raquel Vaz Pinto, académica do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa, confia no Supremo
(Foto: Jorge Amaral/Global Imagens)

Richard Zimler não tem tanta esperança assim. “Trump é um sociopata, não tem consciência, nem política nem outra, não sabe a diferença entre mentira e verdade, ele é que é um ‘fake’ (falso), não as notícias sobre ele. Se ele vai tentar roubar a eleição? Claro que vai. Se vai conseguir? Isso não sabemos.” E para o autor de “O último cabalista de Lisboa”, o melhor cenário “é um ‘landslide’ de Biden que arrume logo com a questão. Essa é a minha esperança”, assume o escritor. E o melhor era mesmo isso, acrescenta agora Raquel Vaz Pinto, “era ser tudo limpinho, limpinho, até para obrigar o Partido Republicano a lidar com a herança pesada de Trump”.

O Supremo Tribunal enrolado em polémica

Foi um acontecimento sem precedentes: a uma semana das eleições, Amy Coney Barrett foi confirmada pelo Senado como juíza do Supremo Tribunal, que tem um total de nove elementos em cargo vitalício, e já ocupou o lugar da falecida Ruth Bader Ginsburg, juíza liberal que morreu em setembro. E, assim, o mais alto tribunal federal dos Estados Unidos, a instituição que possui autoridade jurídica total dentro do país para interpretar e decidir sobre a lei federal, incluindo a Constituição, é também um dos temas centrais da campanha eleitoral.

Amy Coney Barrett, que é apenas a quinta mulher a chegar ao Supremo, e que foi proposta e apressada pelo presidente Trump, foi eleita com 52 votos a favor e 48 contra. É a primeira vez na história do Supremo, desde 1869, que uma juíza é confirmada somente com os votos de um partido, diz o “National Journal”.

No dia da coroação, Amy Coney Barrett, já juíza entronada, surgiu ao lado de Trump numa das varandas da Casa Branca, decorada como para um comício
(Foto: Brendan Smialowski/AFP)

Os conservadores exultaram quando Barrett foi anunciada na Casa Branca no final de setembro, no já célebre evento de “super propagação” de covid-19 em que vários convidados, sem máscaras nem distância social, foram infetados com o coronavírus. Mas está aqui um dos conseguimentos maiores do legado de quatro anos de Trump, para o que foi essencial a maioria republicana no Senado: num só mandato, já nomeou e colocou no Supremo Tribunal três juízes de tendência conservadora, Neil Gorsuch, Brett Kavanaugh e agora Amy Coney Barrett, deixando a instituição soberana inclinada para a Direita, num desequilíbrio inédito de seis contra apenas três nomeados por presidentes democratas.

Dois outros factos recentes estão a levar o Partido Democrata a olhar de viés para a instituição suprema e a duvidar da sua real independência nestas eleições. Um foi o caso da votação decidida pelo Supremo Tribunal poucos minutos antes de o Senado confirmar Amy Coney Barrett. Numa decisão 5-3, o tribunal disse que os boletins enviados pelo correio no Wisconsin podem ser contadas apenas se forem recebidos até ao dia da eleição. Os democratas pretendiam estender a contagem dos votos até seis dias após o dia da eleição (desde que tivessem data até 3 de novembro), isto tendo em conta o aumento recorde na votação por correspondência, já superior a 60 milhões, e os atrasos na distribuição de cartas do United States Postal Service. Recorde-se que Trump ganhou no Wisconsin em 2016 por menos de 1%, cerca de 23 mil votos.

O segundo sinal a trazer intranquilidade aos democratas foi dado no dia da coroação de Amy Coney Barrett, que, já juíza entronada, surgiu ao lado do presidente Trump na varanda sul da Casa Branca, decorada como para um comício, num evento claramente partidário. Com os democratas alvoroçados pela falta de distância ética da nova juíza, Alexandria Ocasio-Cortez, a jovem congressista que é a esperança liberal do futuro do Partido Democrata, sugeriu que os seus colegas deviam “jogar duro” como fazem os republicanos, e mudar as regras do tribunal superior, abrindo novos lugares para mais juízes. Isto é, se ganharem as eleições, e sobretudo se ganharem o Senado, onde estão em minoria por três senadores – nestas eleições também estão em disputa 1/3 dos lugares no Senado, assim como todos os lugares da Casa dos Representantes, que é a outra metade do Congresso. Caso houvesse alguma dúvida sobre o que Alexandria Ocasio-Cortez queria dizer, ela foi bastante explícita num tweet: “Expandam o Supremo Tribunal”. A hipótese da expansão, que desataria o nó da maioria atual de 6-3 em juízes conservadores, já foi colocada por Joe Biden que, se ganhar, diz que pedirá sugestões nesse sentido a um comité de avaliação.

O que se passa com os votos por correio é grave

Com um inverno negro a começar a caminhar, e a previsão do descontrolo da pandemia do coronavírus a ameaçar matar 2 822 americanos por dia nos próximos meses (485 mil até fevereiro de 2021; a América agora com 8,9 milhões de infetados), os pedidos de voto antecipado por correio explodiram.

O presidente Trump tenta há muito deslegitimar o resultado da eleição, vilipendiando o voto por correspondência, citando fraudes fictícias. Mas não se ficou só pelas palavras: em junho, nomeou Louis DeJoy, um dos principais contribuidores para a sua campanha em 2016, como diretor dos Serviços Postais dos Estados Unidos, apesar de DeJoy não ter qualquer experiência no ramo. Notícias subsequentes deram conta do resto: DeJoy estava a eliminar máquinas de triagem de cartas, a suprimir postos de receção e a deixar as encomendas postais atrasarem dias ou até semanas.

Agentes da polícia de Nova Iorque intervêm durante uma ação de rua de apoiantes de Trump, contestada por críticos do presidente americano
(Foto: Justin Lane/EPA)

Benjamin Ginsberg, um dos mais eminentes advogados republicanos, está tão preocupado com o que essas alegações fraudulentas farão ao Partido Republicano que escreveu um artigo no “The Washington Post”, que não é o jornal favorito dos conservadores: “Como advogado republicano que gastou quatro décadas a monitorizar eleições à procura de fraudes, posso dizer com confiança que não há provas que sustentem as palavras e as ameaças do presidente”. E escreveu mais: “O objetivo [de Trump] parece ser semear o caos para, de alguma forma, se agarrar ao poder”.

Ginsberg, como muitos, teme que Trump rejeite os votos contados depois do dia da eleição, sobretudo em estados onde os republicanos possam ter uma vantagem mínima, porque as autoridades locais, também republicanas, serão forçadas a concordar com o presidente e a dizer que os resultados são ilegítimos – ou então têm de lhe fazer frente.

Com um formato traçado para impedir o caos ocorrido no primeiro debate, o último encontro entre Trump e Biden teve um tom bem mais sóbrio
(Foto: Shawn Thew/EPA)

Historicamente, há sempre mais eleitores democratas a votar por correio do que republicanos, que preferem o voto presencial na urna. Mas há perguntas preocupantes sem resposta à vista: será permitido a algum estado contar boletins de voto após a eleição? Quão significativo será o voto antecipado para a margem do vencedor? E os resultados, serão contestados e empurrados para o Supremo Tribunal, como na Florida na agonia de 2000?

É perigoso achar piada aos ignorantes

Raquel Vaz Pinto, que também é comentadora na TSF, diz que “Trump não é um conservador, é um disruptor sem ideologia”, “Ele é, com todos os seus excessos, a sua própria ideologia”, pois entende que “as democracias estão sob ataque”. E teme os efeitos da desestabilização: “Por um lado temos os grupos supremacistas brancos, em que alguns são milícias organizadas, que se sentem caucionados pelo presidente; por outro temos o acesso fácil e assustador às armas na América, que é uma coisa que nos enche de perplexidade a nós, europeus; e por fim a tese que Trump põe a circular há meses, de fraude eleitoral, a que devemos juntar ainda o facto de não dizer claramente se concede em caso de derrota e se abandona democrática e pacificamente o lugar. Essa preparação de terreno não antecipa nada de bom sobre os dias imediatamente a seguir às eleições, com guerra nos tribunais e contestação na rua”, salienta Raquel Vaz Pinto.

Tribolet, para quem boa parte do mundo tem ainda “uma imagem desatualizada da América, que não é uma nação una mas um país federado em 50 estados com diferenças abissais entre si”, alega também que “Trump é um demagogo puro sem ideologia nenhuma”. Na sua opinião, “vai haver uma perturbação social muito grande, a Direita vai tentar fazer estragos” e sublinha de novo que “os radicalismo de uma certa Direita nada têm a ver com a propalada ‘law and order’ (lei e ordem) que os republicanos e a Direita gostam tanto de anunciar”. E Trump, prossegue Tribolet, “que não estuda, não planeia, não calcula a médio prazo, e por isso não é um político profissional, mas é muito instintivo no que faz, anda já dizer que lhe roubaram a eleição”.

Ana Santos Pinto, mestre em História das Relações Internacionais, foi secretária de Estado da Defesa Nacional
(Foto: Gerardo Santos/Global Imagens)

Ana Santos Pinto não acredita “na possibilidade de uma guerra civil”, mas admite “um clima significativo de contestação. “Temos que acreditar, repito, na resiliência do sistema democrático, no papel da Casa dos Representantes, do Senado, do Supremo Tribunal, de todas as instituições que têm o dever de zelar pela saúde da democracia.”

Richard Zimler, que a partir do Porto votou antecipadamente por correio na primeira semana de outubro e continua a fazer o “tracking” do seu voto pela internet – “já chegou ao centro de colheita do meu círculo eleitoral a Nova Jérsia, mas ainda não foi descontado, ando a vigiar” -, não consegue não ficar ansioso. “Boa parte da América é muito ignorante, e pior, tem ignorantes orgulhosos da sua ignorância, que preferem acreditar numa conspiração descabelada na internet como o QAnon [movimento cristão que diz haver uma rede de pedofilia e satanismo entre as elites democratas], do que pensar pela sua cabeça e aprender bons factos lendo livros.” Levemente irado, Zimler pergunta: “A ignorância é cómica? Conheço muita gente que acha que sim. Então, Hitler também era cómico, falava de forma espasmódica, gaguejava, Mussolini também, era um palhaço. Mas as pessoas ouviam o que eles diziam e o que eles faziam? Isso não tem graça nenhuma! É a mesma coisa com Trump e isso é muito, muito perigoso”.