Rui Cardoso Martins

Era isto que fechava um restaurante?!

(Ilustração: João Vasco Correia)

Naquele tempo longínquo e pré-histórico de há uma semana e pouco, os restaurantes eram multados e chegavam a fechar por motivos ridículos e sem realismo. Diziam ao proprietário: este espaço na zona nobre, caro senhor, vai ser agora um hotel de luxo porque a taxa de ocupação turística continua a explodir, não vai parar. Ou: esteve cá a ASAE e descobriu que há problemas com a higiene na sua cozinha, meu amigo, isso não pode ser.

Fechava uma casa, abria outra mais modernaça, era dinamismo empresarial. Mas de súbito muito tempo passou (um século em quantos dias?) e a colonização gentrificadora deu lugar à coronanização arrasadora. As multidões nas ruas, restaurantes, hotéis, alojamentos locais, transformaram-se em vazio, medo e tristeza. Um coronavírus mortal assola o coração económico de qualquer país que se possa observar a olho nu no mapa-mundo. O pânico da peste moderna, o encerramento marcial de milhares, milhões de restaurantes no planeta, amigos meus e vossos em desespero, famílias de manhã à noite em casa, transformada em prisão domiciliária. E as penitenciárias feitas locais de onde os presos não saem nem para serem julgados em tribunal. Que uso têm as algemas contra um inimigo invisível que ataca o detido e o guarda ao mesmo tempo?

Sobre o caso que vos trago, posso adiantar: está à cobrança a multa a um restaurante histórico do Cais do Sodré – a última tasca galega e centenária de Lisboa. Mas duvido que algum dia a multa seja paga. O que era essa multa? Um crime de fraude, contrafacção e adulteração do azeite dados aos clientes. Esta é uma história que aconteceu antes do fim (quanto tempo durará este fim, ninguém sabe) do mundo da restauração.

– Profissão?

– Inspector da ASAE, respondeu o homem.

No dia 28 de Maio de 2017, por volta das 13.30 horas, dois inspectores entraram num estabelecimento das traseiras do Mercado da Ribeira, em Lisboa. Nuns azulejos, estava a data da fundação: 1913. Em cima das mesas, os galheteiros.

– Constatámos a presença de vários galheteiros, fomos à porta e ao quadro ver o menu de pratos de comida tradicional portuguesa, que identificamos como levando azeite…

Nas mesas, garrafinhas de 250 mililitros com a denominação de azeite virgem, ou extra virgem. O que acontece, disse o técnico fiscalizador, é que o doseador e a rotulagem tinham gorduras e, atendendo aos níveis do azeite que nas garrafas com a quantidade de gorduras que manchavam os rótulos, levantou “fortes suspeitas de que os doseadores estavam a tapar produto não original da garrafa.” Na despensa, garrafões de cinco litros. O gerente do restaurante admitiu que procedia à remoção dos doseadores para colocar o azeite que lá tinha dentro.

– Fortes suspeitas de que ali seriam retirados os doseadores e ali seria colocado um azeite com qualidade inferior.

Apreensão para depois ser analisado em laboratório.

– É preciso saber que tipo de produto lá está, se é virgem ou extra virgem ou até pode ser óleo de bagaço de azeitona ou inclusivamente óleo de azeite lampante. Também pode haver mistura de azeite com óleo e é preciso saber se há perigo para a saúde pública, disse o inspector.

Isto do azeite lampante obrigou-me a pesquisa: é feito de azeitonas defeituosas, submetido a refinamento a altas temperaturas para lhes retirar a acidez e a descoloração. Não é para consumo. No dia seguinte ao julgamento, por sinal, a casa fechou de vez (já tinha encerrado uma vez por falta de condições higiénicas, mas reabrira). Era um sítio da boémia, depois de noitadas. Um sítio simpático.

Pessoas que conheço foram ao almoço de despedida, o último de mais de um século. Acusaram publicamente os empresários (mais um hotel de luxo…) e a Câmara Municipal no morticínio do património. Soube-lhes bem os pratos saborosos.

Dias depois, a juíza decidiu que na casa se servia “azeite que não era o virgem extra original, mas mistura com outros tipos de azeite”. Feita a análise, tinha qualidade inferior, azeites refinados.

Pena de 115 dias a 5 euros: 575 euros. Pensar que eram estes os grandes problemas dos restaurantes na pré-história do Covid-19. A verdade vem ao de cima como o óleo de bagaço de azeitona.

A grande crise da última tasca galega de Lisboa antecipou-se uns dias à calamidade que estamos a viver. Poucas vezes se viu um doloroso encerramento tão presciente, quase feliz.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)