Sérgio Conceição: “Sofro muito com a derrota e não sou muito feliz com a vitória”

Sérgio Conceição, treinador da equipa de futebol do FC Porto (Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

O Clube das 5 da Manhã”, do canadiano Robin Sharma, é o livro que anda por estes dias na mesa de cabeceira de Sérgio Conceição. É a história de uma empreendedora que revoluciona a sua vida quando começa a acordar de madrugada. Curiosamente, de há uns meses para cá, também o técnico do F. C. Porto faz questão de acordar diariamente às 6.30 horas, para correr. Por gosto, sim, para aliviar o stresse também. Fá-lo de madrugada porque não concebe a ideia de roubar à família mais tempo do que aquele que o futebol já lhe leva. Só depois segue para o Olival, que se faz casa de manhã à noite. É lá que o encontramos, depois de mais um treino vespertino. Chega sério, palavras bem medidas, a pele marcadamente morena (culpa do sol que apanha no centro de estágios, explica). Fala das corridas e da família. Pergunta, meio a sério meio a brincar, se a entrevista só durará uns dez minutos. Depressa se esquece do relógio. Ao longo de mais de uma hora, vemo-lo sisudo e austero, a personificar o inconformismo de que tanto fala, mas também sentimental, emocionado, o lado humano a querer furar o temperamento que a vida lhe colou à pele. Ou divertido, a rir com vontade, só um homem simples, de princípios fixos, a jurar amor eterno à mulher e aos filhos. Invariavelmente genuíno, sem personagens nem capas, faz questão de garantir.

Chegou ao F. C. Porto há pouco mais de três anos. Desde então, a equipa venceu uma Supertaça, dois campeonatos e uma Taça de Portugal. O F. C. Porto tem neste momento a hegemonia do futebol português?
Acho que nisso não há dúvidas. Não sou eu que o digo. São os títulos conquistados nos últimos tempos, no passado recente. Também no confronto direto com os grandes rivais o F. C. Porto tem levado a melhor. Mas obviamente que o futebol é um recomeçar constante, tanto de um jogo para o outro, como depois dos títulos que se ganham.

Em relação a este último título, se não tivesse acontecido aquele desabafo após a derrota na Taça da Liga, em janeiro, em que se queixou de falta de união, o F. C. Porto teria sido campeão?
Foi um desabafo de alguém que conhece bem o clube, por dentro e por fora. Achava que era preciso dar um sinal forte a toda a gente, que era preciso essa tal união e foi com esse intuito que o fiz, sempre em prol de algo em que eu acredito. Há valores que são fundamentais para se ganhar, nomeadamente esse espírito de união.

Estava muito sereno nesse dia. Foi algo pensado?
Essa observação é curiosa. Vou dizer-lhe uma coisa: com o tempo, perdi um bocadinho o receio de andar de avião. Tinha algum. Mas é incrível que se estivermos a passar por uma turbulência no início fico algo nervoso e ansioso e depois, se a turbulência começar a apertar, eu até começo a ficar mais calmo, a ter mais discernimento. Acho que se passa o mesmo na minha vida. No meio de momentos difíceis de enfrentar, tenho essa capacidade de me pôr de fora do problema e pensar no que será melhor. E de agir. No futebol e na vida, é preciso coragem para dar o passo em frente, mesmo que o passo possa trazer dissabores, como já tive alguns.

Faz falta ao futebol português esse lado mais genuíno, essa coragem de dar o murro na mesa?
Eu faço-o. Cada um tem de responder por si. É importante estar-se de bem consigo próprio, fazer as coisas de forma genuína, de forma natural, direta, sem grandes malabarismos. Acredito que no futebol, muitas vezes, as coisas não se passem assim. Não é só a nível do treinador, também a nível de dirigentes. Mas aprecio sempre mais as pessoas do futebol que agem de forma frontal e genuína.

Também é adepto do F. C. Porto. É mais difícil ser-se simultaneamente treinador e adepto?
Eu sou um grandíssimo apaixonado pela Académica de Coimbra. Nasci numa aldeia da região e representei a Académica durante grande parte da minha formação. Depois, vim para aqui com 16 anos e sem dúvida nenhuma ganhei um amor grande ao clube e às pessoas da região. Obviamente, esse portismo foi crescendo e foi-se entranhando, também graças a alguns títulos que fui conquistando como júnior e sénior. Mas uma coisa é a nossa paixão em termos clubísticos, outra é o nosso profissionalismo. E isso é maior do que tudo o resto.

Mas há momentos em que é mais difícil separar o Sérgio adepto do Sérgio treinador?
Eu sou extremamente competitivo. Para mim torna-se fácil. Aquilo que é a minha profissão e aquilo que é o clube que represento acaba por ser sempre maior. Mas se me perguntasse quando comecei a carreira de treinador qual era o clube que eu queria treinar, sem dúvida nenhuma que era o F. C. Porto. E ganhar títulos no F. C. Porto é extremamente gratificante.

Tem com Pinto da Costa uma relação muito especial. Recentemente, o presidente falou até numa relação fraternal. Em algum momento olha para o presidente como uma figura paternal que perdeu tão cedo [o pai faleceu quando o técnico do F. C. Porto tinha 16 anos]?
Olho para o nosso presidente como alguém que me conhece há muitos anos e como o presidente mais titulado do mundo. Alguém profissional, perspicaz, bom naquilo que faz, porque é verdade. É se calhar o melhor dirigente do mundo. Quando passamos tanto tempo com as pessoas, ganhamos afetos. Esse respeito, esse afeto, essa estima e essa amizade foram crescendo e sem dúvida nenhuma que há essa ligação muito especial entre mim e o presidente.

O próximo campeonato será mais equilibrado – isto reparando nós que tem havido várias equipas a reforçarem-se bem – ou antevê uma disputa como nas épocas anteriores, praticamente a dois, entre F. C. Porto e Benfica?
Acho que a tendência é cada vez mais essas equipas poderem tirar pontos às equipas grandes. Não somos um país muito competitivo ao nível do mercado, por todas as razões e mais algumas.

É preciso criatividade?
É. Criatividade, inteligência, há que olhar para a lufada de ar fresco que é o talento que existe na formação. Acho que é preciso trabalhar mais naquilo que é a nossa formação. Talento têm, é preciso meter mais condimentos que façam com que o jogador esteja mais bem preparado quando chega a este nível. Mas é uma saída e tem-se visto. Temos agora o exemplo do Fábio Silva, uma mais-valia incrível. Isso entronca naquilo que estava a dizer: de termos pouca competitividade no mercado e na qualidade que existe na formação.

Já falou no facto de na época passada ter havido muita gente a chegar “em cima da hora” e de isso ter custado o acesso à Liga dos Campeões. Este ano as coisas estão a correr melhor?
É dentro dessa dificuldade. Para mim o pior momento da época é este. Definimos os alvos e depois é difícil lá chegar. Temos de ser criativos e inteligentes e tentar ao máximo ajustar a equipa, olhando para os títulos internos e pensando em fazer uma boa figura nas competições europeias.

Para jogar no F. C. Porto não basta ser bom jogador? Quais são as características de um “jogador à Porto”?
Foi uma discussão muito interessante que tivemos na UEFA, numa reunião que temos todos os anos, entre os treinadores das equipas que estão presentes na Liga dos Campeões. Lembro-me de o Allegri, que treinou a Juventus e o Milan, dizer que o perfil de jogador era diferente. Se calhar, um jogador mais combativo seria mais para a Juventus e um jogador mais técnico seria mais para o Milan. Da mesmo forma, acho que tem de haver um perfil de jogador do F. C. Porto. Não basta ter contrato, é preciso sentir o clube. Faz parte do que o jogador tem de interiorizar quando entra aqui. Há características que o jogador terá de ter, caso contrário terá muito mais dificuldades em adaptar-se.

Consegue apontar essas características?
Tem de ter espírito de sacrifício, tem de ser ambicioso e tem de ser muito focado, muito determinado. São características essenciais.

O Benfica está a bater recordes em contratações. Espera um rival mais forte?
Com certeza diferente. Tem uma equipa técnica nova, mudou alguns jogadores, está a gastar mais porque com certeza precisa mais, até porque nós somos os atuais campeões nacionais. É normal que depois de uma época que não tenha corrido bem se queiram ajustar. Mas isso não tem que nos preocupar, nem tem que mexer no que é o nosso trabalho. Olhamos, estamos atentos, mas não mais do que isso.

Jorge Jesus está de volta ao campeonato português…
Mesmo que não percebesse de futebol, se caísse aqui no fim do verão, depois de acabar a Taça de Portugal, não saberia quem tinha ganho, por toda essa fumarada que criou a vinda do Jorge Jesus. Sabendo vocês que me dou bem com o Jorge Jesus, que já fomos adversários, que já foi meu treinador, com muito gosto.

Acha que houve uma estratégia?
Isso não sei. Acho que tem tudo a ver com a comunicação dos clubes. Mas isso não faz parte daquilo que é o meu trabalho. Como pessoa do futebol, acho que se devia dar mais mérito a quem ganha.

“Sem dúvida que há uma ligação muito especial entre mim e o presidente”, reconhece Sérgio Conceição
(Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

Continua a dar-se bem com o Jorge Jesus?
Já não falo com ele há algum tempo. É mais difícil falar com o Jorge Jesus quando se ganha. Fica todo… [risos] Isto é uma brincadeira. No Flamengo ganhou algumas coisas e falar com ele nessa altura não dava. Mas fez-lhe bem sair de Portugal, andar por outros países, experimentar outros campeonatos. Tive essa experiência e acho que ficamos com uma visão diferente.

Todos os clubes tiveram de enfrentar a pandemia. A face visível, para quem está de fora, é a falta de adeptos nas bancadas, mas certamente há outras questões que foi preciso afinar. Foi difícil?
Foi. Em termos logísticos, não era fácil dar aos atletas o que queríamos, sobretudo com atletas em espaços completamente diferentes, um num apartamento e outro numa casa com jardim. Em muitas situações foi preciso sermos verdadeiramente criativos. Houve um trabalho muito grande de muita gente que o público não conhece, mas foram pessoas muito importantes na conquista destes títulos. Seria injusto não dizer isto.

Os jogadores sentiram muito a falta dos adeptos? No primeiro jogo depois da paragem, com o Famalicão, parece que se sentiu a equipa a acusar algo de estranho…
Era melhor para os jogadores [ter adeptos nas bancadas], sem dúvida nenhuma. Seria uma mais-valia. Estive lá dentro muitos anos e sei o que isso é. Com o Famalicão, fizemos uma excelente primeira parte, podíamos ter marcado três ou quatro golos, sofremos um golo num erro individual e a equipa conseguiu reagir. Mas sofremos o segundo golo e depois, aí, com aquele ambiente estranho, foi difícil irmos à procura de mais.

Entende que está na hora de os adeptos regressarem aos estádios?
É uma questão sobre a qual a DGS tem de se pronunciar. Não se pode fazer do futebol o exemplo máximo do rigor. Claro que isto não passou e temos de respeitar as regras. Mas quando são regras têm de ser regras para todos, tem de haver aqui algum equilíbrio. Não me cabe a mim comentar, mas em estádios de 30 mil, 40 mil pessoas, talvez fosse possível ter uma percentagem dessa lotação. Era melhor para toda a gente. O futebol sem adeptos é como ter um baile sem música.

Certamente tem seguido o caso do Football Leaks, Rui Pinto está a ser julgado, o Benfica tem surgido com frequência envolvido nessas questões. Sente no campo uma proteção ao Benfica?
[hesita] Eu não queria ir muito por aquilo que se tem falado fora dos relvados. Em janeiro, voltando ao tal desabafo, tive a oportunidade de dizer que no segundo ano [desde que chegou ao F. C. Porto] houve falta de verdade desportiva, porque houve jogos em que se a terceira equipa estivesse bem estávamos a falar de três títulos. Normalmente, se as coisas correm de forma normal, acaba por haver um equilíbrio entre os clubes grandes, entre os que são alguns erros contra e outros a favor. Há dois anos acho que houve esse tal desequilíbrio. Não digo isto por ter perdido. Houve também demérito nosso e houve mérito do Bruno Lage, mas acho que a percentagem maior do bolo foi decidida com essas situações mal assinaladas.

A arbitragem esteve melhor na época passada?
Houve esse tal equilíbrio, situações em que fomos prejudicados e em que fomos beneficiados. E com os nossos adversários igual. É preciso ver que, mesmo com o VAR, são sempre situações em que são pessoas a decidir. E, quando assim é, estão sujeitas ao erro. Erros vai haver sempre, para uns e para outros. Não se pode é errar de forma descarada, porque o erro é grosseiro. Nós, se erramos duas ou três semanas seguidas, estamos com as malas à porta. Um árbitro que erra numa semana e prejudica uma equipa, dois pontos decisivos, na semana seguinte está a apitar, e a apitar se calhar o jogo mais importante. Com isso é que eu não estou nada de acordo.

Mas nunca vamos ouvir o Sérgio a atirar-se ao guarda-redes que dá o frango ou ao jogador que falha o penálti…
Mas também digo. Não digo é em público. No balneário, faço sentir ao jogador que errou, ou porque foi falta de concentração ou porque não esteve bem. Aliás, sou o primeiro a chegar ao balneário e a dizer que errei. Dentro do balneário, estamos a falar com uma família. E à família diz-se sempre as máximas verdades.

Enquanto treinador, até onde quer ir? Sabendo que está num grande clube em Portugal, gostava de ser campeão noutro país?
Não gosto muito de pensar nisso. Mas fui sempre assim na minha vida. Isso de pensar a médio prazo, a longo prazo… não. Obviamente tenho algumas paixões em relação a outros estilos de futebol que não o português.

Qual é o estilo de que mais gosta?
Gosto muito do futebol alemão. Tem golos, mas há muito mais do que isso. Muita qualidade na forma como os treinadores montam as equipas, como jogam, há muito futebol.

É um homem do futebol jogado no relvado. Nesse sentido, vê com bons olhos o facto de dois canais de notícias terem acabado com os programas que têm adeptos como comentadores?
Eu vejo com bons olhos tudo o que é tirar da televisão pessoas que digam disparates. Há muita gente a dizer disparates. Não tem a ver com o serem adeptos afetos aos clubes ou não. Uma coisa é gostar de um clube e ir para ali dizer o que se pensa de forma genuína, não ir dar uma opinião em que os comentadores sigam todos a mesma linha. Já não é a sua opinião, é a opinião que convém passar para o exterior. E isso já não gosto. Além de que acho que se fala pouco de futebol jogado e muito de situações que gravitam em torno do futebol.

“Vejo com bons olhos tudo o que é tirar da televisão pessoas que digam disparates”, assegura o treinado do Futebol Clube do Porto
(Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

Também há um peso grande das comunicações dos clubes nesta envolvência do futebol. Como é que o Sérgio olha para esta estrutura do futebol?
Umas vezes de uma forma positiva, outras nem tanto. Mesmo no meu clube.

E porquê?
Uma coisa é a comunicação da equipa e da pessoa que está perto de mim, que neste caso é o Rui Cerqueira. E outra é a comunicação da SAD do clube, que é outra comunicação. Tenho uma boa relação com as pessoas. Falamos de muitos temas que são importantes e interessantes. Como pessoa do futebol, e como não tenho nada a esconder, umas vezes estou de acordo, outras nem tanto. Nos outros clubes não sei o que se passa. Aqui temos todos uma boa relação e falamos em prol do que é mais importante para o clube. Obviamente que as pessoas podem e devem discordar, faz parte da democracia.

Marega protagonizou um dos momentos da época, ao abandonar o relvado em Guimarães num murro na mesa contra o racismo. Entende que o desporto também tem este papel maior, de combater discriminações de várias ordens? Nos EUA, por exemplo, tem-se assistido muito a esse fenómeno…
Acho que tocou num tema muito interessante, daquilo que o futebol pode fazer de bem à sociedade. Esse é um bom exemplo. Alertar as pessoas para um mal que nós temos. Sinceramente, não tinha ideia de Portugal ser um país com pessoas que discriminassem. E o gesto do Marega foi um alerta muito importante, claro que sim.

É conhecido por ser um treinador firme, duro com os jogadores.
Ai isso sou, posso não ser bom, mas firme sou. [risos] Estou a brincar. Acho que a exigência e a disciplina são muito importantes para se ganhar.

O que é que o Sérgio jogador pensaria do Sérgio treinador?
Ia ser difícil. Não que quisesse prejudicar o trabalho do treinador, mas por uma ambição muito grande, de jogar sempre. Mas, atenção: eu gosto desse género de jogadores. Ao longo destes três anos já tive situações em que as coisas não foram um mar de rosas, houve situações em que tivemos de agir e não foi nada fácil. Mas faz parte. Gosto muito de apanhar jogadores com a minha competitividade. E tenho alguns com esse feitio.

E como é o trato com os jogadores? Num balneário também é importante que haja momentos em que o homem se sobrepõe ao treinador?
Há momentos assim há. Muitos. O treinador tem de saber que tem uma série de jovens à frente, cheios de sonhos, cada um com as suas expectativas pessoais, de países e formação diferentes. Faço questão de conhecer ao máximo cada um dos atletas que tenho à disposição, também o que o rodeia, designadamente, a família, a história de vida. Informo-me muito sobre pormenores da vida deles. Às vezes ficam admirados por eu saber algumas coisas, até da infância deles. Acho que uma coisa está ligada à outra. Não podemos dissociar o atleta do homem.

É sabido que odeia perder, que tem um temperamento especial, já admitiu até que tem um feitiozinho. Quem sofre mais com o seu mau feitio?
As pessoas que trabalham comigo, o Dembelé. [Sérgio olha para o treinador-adjunto, que também assiste à entrevista, e ri-se] As pessoas que trabalham mais diretamente comigo, sem dúvida nenhuma, mas mais do que eles a minha família. E é uma das questões que me deixa um bocadinho incomodado. Porque acho que não merecem. Tento de certa forma amadurecer também nesse sentido, de separar o meu trabalho dos momentos em que estou com a minha família. Esse equilíbrio é muito importante. Mas não é fácil para pessoas que vivem verdadeiramente aquilo que fazem.

Qual é a primeira “operação não-futebol” que faz depois de um jogo?
É difícil. Depois de um jogo, quando chego a casa, ainda estou a ver o jogo dentro da minha cabeça. Tenho três ou quatro situações que quero ver e normalmente dou uma olhadela no jogo. É um bocadinho massacrante, mas a minha tendência é essa.

Como são as suas noites quando perde?
Muito más.

O que é uma noite muito má?
É não dormir. Às vezes passar só um bocadinho pelas brasas, mas estar a ver o jogo de tal forma que fica difícil. Faz parte da forma como vivemos a nossa profissão e eu tenho esta forma de ser e de sentir as coisas. Mesmo quando ganho não é que as minhas noites sejam muito felizes. Aqui é entrar um bocadinho naquilo que eu sou. Como acho que ganhar é normal, penso que o mínimo é voltar a ganhar o próximo jogo. Sofro muito com a derrota e não sou muito feliz com a vitória. Se me perguntar se vivo plenamente satisfeito com esta forma de ser… vivo, porque sou assim.

Tendo esse temperamento, alguma vez se magoou por dar assim um murro ou um pontapé em alguma coisa?
Uma vez, na mão.

Mas partiu?
Quase. Pensei que o banco era de plástico e não, era de vidro grosso. Não abanou sequer, o que abanou foi a minha mão.

Em que jogo foi?
Não vou dizer.

De onde lhe vem esse temperamento? Dos genes ou daquilo que foi passando ao longo da vida?
Acho que tem a ver com tudo o que foi a minha infância, com as dificuldades que passei quando era miúdo. Tive a perda dos meus pais muito cedo, tive uma vida difícil que me moldou a vontade de triunfar. Desde pequenino que tive de lutar muito, fui homem muito mais cedo do que normalmente se é. Era eu, quando era júnior, que tinha algum dinheiro para sustentar a minha família. Vivo com uma parte negra dentro de mim, de essa felicidade nunca ser máxima pela falta que me fazem os meus pais. No fundo, é isto, é sempre uma vontade grande de ganhar, de chegar ao topo, de lhes agradecer. Nunca me canso de lhes agradecer tudo o que fizeram por mim.

Também por isso gosta tanto de ser pai?
Adoro. Se pudesse ter 15 filhos, tinha 15 filhos. A minha mulher [Liliana] é que não pode. Já tentei convencê-la que podia arranjar outra senhora, mas não consigo [risos].

“Vivo com uma parte negra dentro de mim, de a felicidade nunca ser máxima pela falta dos meus pais”, conta Sérgio Conceição
(Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

Está apaixonado?
Continuo apaixonado pela minha mulher. Há 25 anos. Estamos casados há 25 anos, mais três em que fomos namorados. Ela tinha 14 anos e eu 17. E desde então nunca nos largámos e continuo muito apaixonado por ela.

É a pessoa que mais acredita em si?
Nós somos um, verdadeiramente. Conhecemo-nos muito bem, com um olhar, um gesto, há uma cumplicidade tão grande na nossa vida e na nossa relação que já nos permitimos estar em silêncio e a falar, o que é a fantástico.

Naquelas noites más, qual é a importância dela?
É a única que sabe dizer algo no momento certo, que me conhece verdadeiramente bem.

Tem cinco filhos, quatro deles jogam futebol, o mais novo também já dá uns chutos. Quando conseguem juntar-se todos num jantar de família, como é?
Uma confusão. [sorri]

Fala-se muito de futebol?
Fala-se quando tem de se falar. Fala-se muito de outros temas, mas o futebol está muito presente. Quando estamos juntos, cada um partilha as experiências que vai vivendo, que vai passando. O estarmos juntos à mesa para mim é fundamental, sem telemóveis, isso é importante, essa é a regra.

Telemóveis fora da mesa?
Fora da mesa. O meu também. Para podermos conversar um bocadinho e partilhar a nossa semana. Alguns dos meus filhos estão mais longe. O Rodrigo esteve anos no Benfica, o Sérgio está muitas vezes fora também e quando estamos juntos é verdadeiramente para partilhar. Não atendem o telemóvel.

O Rodrigo também ingressou no F. C. Porto [equipa B]. É um orgulho a dobrar para si?
É um gosto vê-los felizes e a dar sequência àquilo de que gostam. O Rodrigo passou anos no Benfica e esteve bem. Preferiu sair, mesmo sabendo da vontade que eles tinham para a renovação e eu apoiei como apoiaria se ele tivesse ido para outro clube. Obviamente fico mais contente por ele ter vindo para o F. C. Porto. Eu quero é que eles sejam felizes e que tenham certos valores e princípios. Isso é importantíssimo na vida, independentemente daquilo que façam.

Numa entrevista ao JN, em 2018, chegou a apontar o dedo ao treinador do Rodrigo no Benfica, João Tralhão, por lhe ter chamado pelo nome de um jogador do Belenenses que na altura tinha tirado pontos ao F. C. Porto. Nessa perspetiva, é um descanso ter o Rodrigo aqui?
Depende das pessoas que estão à frente das equipas. Acredito que nem tudo seja perfeito também no F. C. Porto. Acho é que é importante termos a noção de que, independentemente dos pais que tenham, os jovens têm de ser tratados de uma forma igual. E nesse episódio não foi.

Incentiva os seus filhos a prosseguir os estudos?
Sim, o Sérgio, o mais velho, está formado em Gestão Desportiva. O Moisés está no ISMAI, o Rodrigo já fez o 12.º ano e o Francisco também. Por isso estão todos bem encaminhados, claro que sim. Faço questão.

E o Sérgio pai, era bom aluno?
Era um aluno esperto. [risos]

O que é um aluno esperto?
Esperto porque se calhar não estudava tanto, porque havia sempre o gosto por jogar futebol na rua. Mesmo assim conseguia sempre passar. Era esperto na forma como geria esse pouco tempo que tinha e dedicava aos estudos. O futebol era a grande paixão.

E alguma vez teve um plano B que não fosse fazer do futebol vida?
Não. Até porque comecei muito cedo a ter essa responsabilidade. Gostava muito de pilotos de automóveis. Mas não é que sonhasse com isso. A minha paixão foi sempre o futebol.

Quando era mais novo, durante as férias, chegou a ajudar o seu pai nas obras. Tirou daí algum ensinamento que lhe continue a ser útil na vida profissional, agora como treinador de futebol?
Tiramos sempre. Nas férias trabalhava com o meu pai. Numas outras férias vendi na feira com o meu primo. Tinha 13, 14 anos. Tira-se sempre. Foi muito importante trabalhar na feira. Eu era um miúdo tímido, introvertido. E o vender na feira foi importante para ganhar essa capacidade de comunicar, de me desinibir e de estar bem com o próximo mesmo sem o conhecer.

Participa frequentemente em iniciativas solidárias, mesmo que muitas vezes faça questão de não divulgar. Fá-lo pelas dificuldades que passou quando era mais novo?
Acho que tem um pouco a ver com isso, mas também tem a ver com esse equilíbrio que eu quero manter sempre, de ter os pés bem assentes na terra. Ter tempo para a religião, que é muito importante para mim, ter tempo para ajudar a minha família e outras pessoas que parem na minha vida e necessitem de um ou outro tipo de ajuda. É algo que me faz sentir bem. Não preciso de divulgar nem de andar por aí a gritar que faço isto ou aquilo.

“Sou um católico praticante, não há um dia que não reze, faço jejum na quaresma”, afirma o treinado do F.C.P.
(Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

A propósito da religião, também há momentos em que a religião serve de refúgio para o futebol?
Sim. Faz parte da minha vida. Sou católico praticante, vou à missa frequentemente, não há um dia que não reze, faço o jejum na Quaresma, sou um praticante à antiga.

Lembra-se de algum dia em que, durante um jogo de futebol complicado, tenha pedido ajuda a Deus e tenha surtido efeito?
São situações que tenho guardadas para mim, mas há muitas coincidências na minha vida que vão nesse sentido. Não só no futebol. Basta por vezes estarmos atentos a determinados sinais na nossa vida. Eu não os desvalorizo em nada. Acho que tudo tem uma razão de ser.

E quando corre mal?
Faz parte da vida. Isto é para os fortes. Tudo depende do que fizermos para lidar com esses maus momentos. Ainda há pouco tempo um ex-jogador italiano disse que a vida é 10% daquilo que nos acontece e 90% da forma como nós lidamos com aquilo que nos acontece. A forma como olhamos para os problemas, como lidamos, como os ultrapassamos, acho que isso é que é importante. Porque depois há coisas inevitáveis.

E supersticioso é?
Também. Não muito, até porque se acreditamos muito naquilo que é a presença de Deus na nossa vida não podemos ir muito atrás de superstições, mas tenho as minhas superstições. Valorizar muito isso é que é mau.

Tem-se dedicado às corridas, porque gosta muito e porque o ajudam a aliviar o stress. Não o fez então com o intuito de melhorar o visual nem nada que se pareça?
[risos] Não, até porque vou dizer-lhe uma coisa. A apreciação feminina de perder alguns quilos é negativa, portanto não foi por aí, certamente. É quase uma necessidade. Porque me sinto bem a correr.

Conhecemos bem o Sérgio Conceição treinador. O Sérgio Conceição homem é muito diferente?
Não há muita diferença. Acho que a principal característica é ser genuíno. Não há muita diferença porque a essência, o que está cá dentro, vale para a vida como para o que sou como treinador.

Qual foi a primeira extravagância que cometeu?
Comprar um Opel Vectra. [risos] Estava no Leça.

Ainda o tem?
Não, vendi-o. Tive alguns acidentes com ele.

Gosta de conduzir depressa?
Gosto. Pago algumas multas com isso. Agora um bocadinho menos, porque estava a ficar muito caro.

E a extravagância que lhe falta, qual é?
Estou bem assim. Gosto de ter um bom carro, boa comida, bons hotéis. Mas não é isso que me move. Tenho tudo aquilo que quero. Nas férias faço o que quero, a um nível muito alto. Por isso não há nada que tenha assim em mente. Ter um avião privado ou um barco de 50 metros? Não vale a pena ter para depois não usar.

Como é que gostava de ser recordado?
Como um profissional determinado, ambicioso, inconformado, que é rigoroso e que gosta muito de ganhar. E como uma pessoa frontal e genuína. Sou eu que estou aqui a falar convosco, não é ninguém por mim. Às vezes preparamos de tal forma uma personagem diferente daquilo que somos, em função de algum mediatismo, que é só uma capa. Sempre que venho a público falar de alguma coisa, é o Sérgio Conceição que está a falar. Mesmo.

Veja o vídeo da entrevista aqui.