Um luso-brasileiro e um californiano conhecem-se. Da troca de pontos de vista saiu uma resolução. Juntos decidiram, há seis anos, assentar, mais as famílias, arraiais no Norte de Portugal. Na bagagem trouxeram fatos e pranchas de surf. O propósito era fundar uma igreja informal para atrair jovens. Resultou. Partilham pão, vinho, fé e mar.
Passa-se junto à chamada Rotunda da Anémona, na fronteira entre o Porto e Matosinhos. Uma bandeira de gota é enterrada na areia. “Surf Church” (Igreja do Surf), está lá escrito. Mesmo ao lado pousaram uma meia tenda onde guardam mochilas e fatos de neoprene. Pranchas empilhadas. À volta, gente deitada em toalhas. Gente de pé. Gente que vai e vem do mar. Crianças. Jovens. Risos. Conversas animadas. Em português e em inglês. Na praia de Matosinhos já ninguém os estranha. Andam por ali há cinco anos e hoje são bem-vindos. Mas, no início, os fundadores desta comunidade sentiram na pele a dificuldade de construir sozinhos um templo de pão, vinho e sal, longe de suas casas, deste lado do Atlântico.
“É, quem diria?, começámos seis pessoas e hoje somos 60”, recorda Samuel Anjos, 31 anos, um dos fundadores do grupo de cristãos surfistas em Portugal. O discurso é leve. Sotaque nortenho misturado com paulista. Despido de informalidades. Aliás, nesta altura da conversa, o pastor de pele queimada até só veste uns calções de banho. E nunca, apesar das muitas vezes que o filho o interrompe para ir buscar água ao mar, perde a paciência ou o foco do que há de importante a dizer. “Nós acreditamos que Deus existe, que influencia as nossas vidas, que é importante para todos nós. Mas pela falta de relevância na maneira de comunicar isto, o pessoal afasta-se.”
Foi precisamente este o pensamento que uniu, há muitos anos, Samuel e o californiano Troy Pitney. A ideia partiu do surfista americano, que agora está de férias com a família nos Estados Unidos. Trabalhava para a Operation Mobilisation, uma organização internacional evangélica destinada a mobilizar jovens para “viver e proclamar Jesus”. No mapa das missões estava o Mediterrâneo. Em 2013, Troy e a companheira, Michelle, já tinham decidido: “Olha, eu vou para Portugal para começar uma coisa com o surf, usar o que eu amo fazer para falar com as pessoas e partilhar a nossa mensagem”. Samuel, acabado de sair do seminário, conversou com a mulher, Cláudia. Juntos aceitaram o desafio. A eles juntaram-se depois Dustin Waters e Mia, da Alemanha. Seis pessoas, seis pilares. Aterraram em 2014 no Porto. E em abril de 2015 fundaram a Surf Church. “Deu certo”, conclui Samuel, sorriso largo.
A filiação faz-se pelo coração
A ideia não é nova. O movimento Christian Surfers surgiu na década de 1970 na Austrália. Pouco a pouco proliferou pelo mundo. “Existem conceitos destes em Inglaterra, na América, na Austrália, mas não havia nada do género em Portugal.” Muito menos com este nível de informalidade.
Alex Leites, agora com 20 anos, foi uma das primeiras ovelhas do rebanho. Antes frequentava uma igreja da Assembleia de Deus, mais por influência do padrasto, João. A mãe, apesar de partilhar a mesma fé, não gostava da doutrina, da forma de culto. Um dia, um amigo desafiou Alex para fazer surf com uns tipos em Matosinhos. “De graça?”, perguntou. “Sim, de graça.” Há convites irrecusáveis. “Sem saber do resto”, aceitou. Acabou na casa do Troy, com os restantes jovens, a ler a Bíblia, a refletir, a partilhar e a receber conceitos de fé, de amor, de esperança.“Gostei muito e passei a aparecer mais vezes.” Arrastou o padrasto e a mãe, que acabou batizada pelos surfistas. “Durante estes três anos em que estive a estudar em Inglaterra, eles não deixaram de aparecer.”
O segredo poderá estar no modo informal de passar a palavra. “A mensagem é relevante. E nós somos pessoas normais, não somos malucos. Não somos fanáticos, não vivemos uma religiosidade cega. Vivemos uma coisa que é real, que experimentamos, o que nos permite sermos surfistas, skatistas, futebolistas, ciclistas ou qualquer coisa. Não precisamos de negar o que somos para conhecer e seguir a Deus. Esta é a brilhante ideia.”
Uma filosofia que não atrai só os mais novos. Susana Moreira, 43 anos, também foi apanhada na rede. Aconteceu num 15 de agosto. Um dia cinzento e chuvoso. Estava na praia com o filho, sem vontade de ir para casa. “Já não era a primeira vez que os via por ali.” O mar estava sem ondas, a malta na areia a conversar. Desafiaram-na. “A mensagem era a que precisava naquela fase da vida. Deus ouviu o meu pedido. Curti e senti-me identificada.” Desde esse dia que repete: “Eles não são como se fossem a minha família. Eles são mesmo a minha família”.
Samuel Anjos volta a sorrir perante a afirmação. E garante que o conceito é levado a sério entre todos. É como família, uns puxam pelos outros. A filiação faz-se pelo coração. “As pessoas unem-se a nós por se sentirem parte da família, uma coisa essencial. Para nós, esse conceito sempre foi muito importante. É muito mais fácil num ambiente familiar eu passar os meus valores.”
Amor, carinho, respeito, servir, cuidar. “Somos uma família de 60. As pessoas conhecem-se umas às outras. Estranham-se umas às outras. Têm os seus momentos ruins, como todas as famílias, e é todos juntos que tentamos resolver os problemas.” E acontece muito, “é normal”, admite Samuel. Horas antes, num momento de oração e partilha, que devido à pandemia deixou de se fazer no Edifício Transparente e passou a acontecer em grupos de dez pessoas, distribuídos por diversas casas, Susana agradecia a Deus o facto de o seu filho Filipe se ter “endireitado”. Samuel recorda uma das peripécias do rapaz que agora tem 13 anos. Desnorteado, apanhou uma lata de spray e pintou todo o espaço de convívio. “Tivemos de lidar com isso. Educar em família. Não só dizer que ele estava errado, mas explicar porquê. Esse é um dos desafios da igreja de hoje. As regras não servem para oprimir as pessoas, mas para as ajudar a melhorar.”
Para a comunidade da Surf Church o tempo de convívio é fundamental para esse crescimento. “Uma família que quer crescer precisa de ganhar tempo junta. Por isso, não pode ser só o tempo de estarmos a estudar, a tocar, a louvar, não pode ser só aquilo que seria a formalidade do nosso encontro, apesar de no nosso caso ser muito informal. Acreditamos que uma família precisa de relax. E o surf é o nosso tempo de relax.” Filipe aprendeu a lição. Dos olhos do adolescente ainda saem raios de traquinice, mas as ideias começam a ser vincadas. “Gosto muito de estar aqui com eles.” E até tem pensado: “Eu já poderia vir sozinho ao domingo. Entrava no metro em Rio Tinto e saía aqui em Matosinhos”.
Passar um bom tempo juntas
É o que vai acontecendo com muitos que ali aparecem. Ouvem falar da Surf Church, procuram nas redes sociais, escrevem a pedir mais informações e aparecem. Em dois tempos estão enturmados. Samuel Anjos: “Temos católicos, evangélicos, protestantes. Há mesmo de tudo. De todas as idades e nacionalidades. Angolanos, alemães, brasileiros, ucranianos, polacos, italianos”. Por isso, há grupos que falam só inglês, grupos que falam inglês e português. “Quando estamos todos juntos temos sempre tradução simultânea.”
No início havia o desejo de se tornarem um grupo 100% nacional. “Estamos em Portugal, fazia sentido.” Depois perceberam: “O Porto não é tradicional, tem pessoas de todo o lado”. Alguns estão só de passagem, vêm de férias ou de Erasmus. Outros chegam para tentar a vida. Não há distinção no trato.“Acolhemos todos.” Até porque se lembram bem da dificuldade que eles próprios tiveram para serem acolhidos nos primeiros tempos. “O português é um povo muito recetivo, muito carinhoso, mas é um povo muito reservado também. É uma característica nossa, que eu hoje sou mais português do que brasileiro. Há esta coisa de termos o pé atrás até perceber o que está do outro lado.” E, por isso, calhou-lhes sofrer no início. “Sou professor de surf e já dei aulas em quase todas estas escolas aqui da praia. Dou-me mesmo bem com eles.” Coisas que o tempo transformou. “Inicialmente ninguém nos aceitava. ‘Mais uma escola de surf para competir, ainda para mais gratuito. Qual é a ideia?’.”
Foi preciso paciência. Explicar o projeto. “O objetivo continua a ser convidar as pessoas a ter uma experiência gratuita. Nós fazemos aquilo que amamos para Aquele a quem amamos. É o nosso lema: seja lá o que tu ames fazer, é o suficiente para convidar outras pessoas a passar um bom tempo juntas. Isso é o mais importante.” Com os anos, a “família” foi percebendo que fora dos momentos de oração interessavam-se por outras coisas. Assim, paralelamente ao surf, há quem goste mais de jogar futebol, cozinhar ou assistir a filmes. “Há lugar para tudo. O importante é aliviar o stresse da semana e ter tempo de qualidade juntos”, salienta Samuel.
A filosofia destes que seguem um Deus que não exige sofrimento, antes pede que se desfrute a vida, tem conquistado território. A Surf Church também já está em Leça da Palmeira e em Viana do Castelo. Até que a pandemia dê tréguas não há convívios alargados, que começavam na praia, ao início da tarde de domingo, e acabavam pelas 17.30 horas com os pés descalços, a tocar e a ouvir música, a cantar e depois a jantar, onde não falta pão e vinho, símbolos da “Santa Ceia”. Tudo isto, antes de se misturarem, em louvor, os versículos da Bíblia e as vivências de cada um.
Samuel termina. “Portugal é um país religioso, mas grande parte dos jovens está afastada da religião. Acham-na demasiado tradicional e antiquada. A mensagem desse Deus não os puxa.” Partilhá-la da forma incomum como estes surfistas fazem leva os jovens a identificarem-se mais com ela. “O surf é só um pretexto para mostrarmos quem Ele é.” Juntos, pretendem ser “o corpo bem vivo de Jesus na Terra”. Os que acreditam em Jesus são igreja. “Nós, todos juntos, formamos essa igreja. E esta é a Igreja do Surf.”