Eleições nos EUA
Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.
Anima-me muito que as sondagens apontem para a derrota do pior presidente norte-americano de sempre, mas tenho medo das coisas dadas como certas.
Por mais que tenhamos reservas para com os EUA é inegável que somos marcados por sua cultura profundamente. Guardamos em nossas referências inevitáveis e incomensuráveis maravilhas que ofereceram ao mundo. Sinto que estamos sempre à espera de um verdadeiro esplendor americano como quem quer de uma figura paterna uma redenção. Nada dessa articulação económica, manigante, que julga criar fascínio pela ostentação azeiteira do ouro. Há algo em nós que aguarda pela vitória do bem que tanto nos mostraram nos filmes de domingo à tarde. Essa promessa comovente de salvarem mesmo o mundo das mãos dos maus perante os quais haveremos todos de sucumbir.
Olhamos para os EUA como se, ressentidos, quiséssemos ainda obter prova de que lutarão pela humanidade. Quanto mais sabemos como fizeram guerra em toda a parte pelo petróleo, de todas as vezes mentindo do mesmo modo, jurando que levariam a democracia; quanto mais sabemos como esmagam nosso cinema, nossa televisão, nosso clima, nossos mares; quanto mais os vemos orgulhosos de sua sobranceria; mais nos dói a distância a que ficamos da ternura que lhes queremos ter, que quase naturalmente lhes queremos ter, em troco de tanto sonho, talvez tanto engodo.
Somos todos um pouco norte-americanos. Vimos demasiados episódios do Archie Bunker ou dos Simpsons. Ouvimos demasiadas vezes a Billie Holiday ou o Frank Sinatra e não podemos mais retirar de nosso padrão a confusa coisa que é aquele país, cuja cidadania exercemos numa percentagem mais pequena mas de modo inelutável, à força da cultura.
De algum modo, sem direito a voto, estamos todos em eleições esta semana. Temos nossa preferência e sofremos pelo que haverá de ser a seguir. Impotentes, atónitos, assistimos como se nos mexessem no futuro e no coração sem pedir licença.
Anima-me muito que as sondagens apontem para a derrota do pior presidente norte-americano de sempre, mas tenho medo das coisas dadas como certas, porque a decência está dada como certa há tanto e ainda assim Trump ganhou. Não que Biden vá ser a resposta para todas as nossas mágoas, mas acredito piamente na importância vital que uma derrota expressiva do demencial Trump levará ao mundo, espanando em parte o fantasma da extrema-direita de cima de todos nós. Que Trump perca é a vitória do mundo. Urgente vitória do mundo.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)