Carla chorou quando, há quatro anos, percebeu que Trump tinha vencido. Miguel testemunhou recentemente a profunda divisão do país. Maria João diz que preferia votar na mosca do que no atual líder. Marco fala num “cocktail explosivo”. Quatro portugueses nos EUA partilham expectativas e receios em relação às presidenciais de 3 de novembro.
Carla Diogo, 50 anos, nascida em Portugal e residente nos Estados Unidos desde o tempo em que era uma bebé de sete meses, ainda tem bem presente aquele despertar sombrio de há quatro anos. Na noite anterior, tinha estado a acompanhar a cadência dos resultados eleitorais. Depois, foi dormir tranquila, convencida de que Hillary Clinton, em quem tinha votado, seria a nova presidente dos EUA.
Foi só quando acordou, naquele 9 de novembro de 2016, que percebeu, incrédula e perturbada, que Donald Trump tinha sido o eleito. Sentiu-se desabar. “Desatei a chorar. O Obama tinha feito tanto para mudar as coisas. E ninguém conseguia prever o impacto que alguém como ele [Trump] poderia ter.” Carla, que dá formação de líderes na consultora Deloitte, não o chama pelo nome. Muito menos é capaz de o apelidar de presidente.
“Para mim é simplesmente o number 45 [número 45, por se tratar do 45.º presidente da história do país], nada mais. Refiro-me sempre a ele assim.” É que se as lágrimas que verteu naquela manhã penosa de novembro já anunciavam uma relação difícil com o novo líder da nação, os quatro anos seguintes só lhe serviram para extremar o desamor. O desdém sai-lhe vertido numa enxurrada de críticas.
“É egoísta, só pensa nele. Não percebo como há quem não veja isso. É racista, misógino. Claramente tem uma queda para líderes ditadores. E acima de tudo é demasiado mentiroso. Não acredito em nada do que ele diz. Na verdade, não consigo olhar para ele sem ficar agoniada”, acusa, sem papas na língua.
Por isso, não hesita em votar Biden (este ano, ao contrário do que é habitual, faz questão de votar presencialmente).
Mesmo que também não morra de amores pelo candidato democrata – “Não percebo como ao fim de meses acabamos com dois velhotes como candidatos”, desabafa -, agarra-se com firmeza à convicção de que o filme de terror de há quatro anos não conhecerá remake. “Não posso com ele por mais quatro anos. Nem sequer por mais quatro dias.” A repulsa tem também contornos de medo. “O meu marido tem nacionalidade angolana e americana e temos um filho de dez anos que é luso-angolano. Tenho receio que lhe aconteça algo, com todo este ambiente que o número 45 tem criado e com a forma como as pessoas estão a reagir.”
Segundo uma das últimas sondagens, elaborada pela Opinium Research com o jornal inglês “The Guardian” e divulgada na última terça-feira, o candidato democrata Joe Biden reúne 57% das intenções de votos contra apenas 40% atribuídos ao republicano Donald Trump. Mas tudo continua em aberto. Tanto mais quanto, no sufrágio americano, a decisão do colégio eleitoral, composto pelos representantes eleitos em cada estado, se sobrepõe ao voto popular.
Carla, atualmente a viver em Palm Coast, na Florida (um “swing state”, que se adivinha fundamental para o desfecho do sufrágio) conhece demasiado bem os meandros da fação pró-Trump para cair no erro de pensar que a vitória de Biden são favas contadas. “Tenho muitos vizinhos que gostam dele [de Trump]. Mesmo nas redes sociais já tive de deixar de seguir muita gente pelos conteúdos que publicavam a apoiá-lo.
Uns por causa do dinheiro, por ele prometer que vai baixar os impostos e dar mais dinheiro aos pobres. Outros porque são muito nacionalistas. Outros porque sempre foram racistas e agora se sentem mais à vontade para o dizer.” E nem os portugueses que vivem em Palm Coast ficam imunes à estranha forma de sedução de Trump, assegura Carla. “Os mais novos não. Mas entre os mais velhos há muitos que gostam dele. Tenho aqui um café ao pé de casa e volta e meia lá estão os velhotes a dizer bem dele. Nem os posso ouvir.”
Uma bolha chamada Berkeley
Bem diferente tem sido a experiência de Miguel Heleno, 33 anos, em Berkeley, na Califórnia, um estado historicamente democrata e progressista. “Aqui vivo numa espécie de bolha. Não tenho vizinhos que votem Trump e há um discurso público antirracista geral. Quase todas as lojas têm um panfleto do movimento Black Lives Matter”, conta o investigador, a trabalhar no Laboratório Nacional de Berkeley. Formado em engenharia, rumou aos EUA no início de 2016 para fazer um pós-doutoramento e por lá tem ficado, com saldo largamente positivo.
“Vim para um laboratório muito maior, com muito mais recursos e projeção. Tem correspondido às minhas expectativas e está a ser uma experiência enriquecedora. Além disso, Berkeley é uma cidade estudantil junto a São Francisco. Tem um ambiente internacional e uma vida social fantástica, que facilita muito a integração.” Há cinco anos, quando aterrou nos Estados Unidos, Barack Obama liderava os destinos do país. Meses depois, tudo mudou.
Miguel lembra-se da surpresa e da indignação geral. “No início foi chocante. É sempre estranho ser imigrante num país em que se sente alguma hostilidade em relação aos imigrantes.” Não se pode queixar, ainda assim. “Não tenho problemas. Por trabalhar onde trabalho acabo por ter proteções que outros não têm. Notam-se cortes no financiamento da investigação na área do clima, por exemplo, mas na Califórnia, tratando-se de um estado progressista, há sempre formas de contrabalançar isso. Se há cortes nos financiamentos federais, o Governo local injeta mais dinheiro. Não posso dizer que o meu dia a dia tenha mudado muito.”
As mudanças, contudo, vão-se denunciando, aqui e ali. “A Universidade de Berkeley tem uma história progressista, muito marcada pela luta antissistema, e tem sido palco de um grande ativismo contra as políticas do Trump. Mas a prova da força que ele tem dado a movimentos supremacistas é que nos últimos tempos organizaram várias manifestações aqui na cidade. Numa cidade tão progressista como esta, é um marco.” Um marco angustiante, pois.
A angústia cresce se olhar mais além. Habituado a viajar com frequência dentro dos EUA, ora em trabalho ora em lazer, o investigador tem perfeita noção do país profundamente dividido que se prepara para ir às urnas. Desde logo pelas placas às portas das casas, indicando a intenção de voto, tão típicas deste país. “No mês passado estive no Ohio e é impressionante porque se em cidades como Cleveland e Columbus ainda se vê a coisa muito repartida, assim que se entra no meio rural só se vê Trump.”
Por isso, mesmo estando confiante na vitória de Biden (Miguel não pode votar porque não tem nacionalidade americana), há certos receios que teimam em incomodá-lo. “O mais imediato é mesmo o Trump ganhar. Depois, o clima de reação que quatro anos de Trump deixaram. É preciso não esquecer que vivemos num país com armas. Uma vez fui com uns amigos ao Arizona e no sítio onde estávamos a tomar o pequeno-almoço havia outro grupo de jovens da nossa idade em que dois deles tinham armas à cintura. Um país dividido, com um clima político a puxar ao antagonismo e pessoas com armas não é uma boa combinação.”
O colega com quem se dormiu na faculdade
Também Maria João Lobo Antunes, professora catedrática de Criminologia na Towson University (estado de Maryland), teme as consequências das múltiplas tensões que quatro anos de Trump ajudaram a exacerbar. “Há quem acredite que mesmo que ele não ganhe podemos mergulhar numa guerra civil”, salienta a filha do neurocirurgião João Lobo Antunes, 46 anos, a maior parte deles passados nos EUA.
“Nasci em Nova Iorque, mas fui para Portugal muito pequena, no princípio dos anos 1980. Depois, em 2002, voltei para fazer o doutoramento e acabei por ficar.” Por lá casou, teve quatro filhos e construiu uma carreira que é motivo de orgulho. Razões de sobra para defender que os EUA são mesmo um país de infinitas possibilidades. A prova mais cabal disso, sublinha, é o sucesso profissional do marido na terra do Tio Sam. “Também é emigrante português e formou aqui a sua própria empresa.”
Mais difícil é manter o mesmo otimismo em relação às convulsões que vão agitando o país que a apaixona e apoquenta. “Mesmo que o Biden ganhe, o mal já está feito, não vamos recuperar tão facilmente.” A docente universitária dá como exemplo a progressiva “invasão” do sistema federal por juízes conservadores. O próprio Supremo Tribunal dos EUA.
“Acho que nunca chorei tanto com a morte de uma personalidade como com a de Ruth Ginsberg [a mais antiga juíza do Supremo e um rosto incontornável do feminismo].” Agora, com a progressiva tomada de poder dos conservadores, teme que os direitos das mulheres estejam definitivamente comprometidos. Desde logo em relação à liberdade de reprodução.
Democrata desde sempre, avançou até com a criação de uma cadeira, na universidade em que leciona, sobre a imigração e o crime, também para ajudar a desmontar alguns dos estereótipos impulsionados por Donald Trump. “Desde logo a ideia de que os imigrantes cometem mais crimes. E mesmo a questão da fronteira com o México. Tem insistido tanto nisso quando está provado que 70% dos nossos imigrantes chegam de avião, com visto temporário.”
Quanto ao próximo 3 de novembro, até já votou, por correspondência. Em Biden pois. Garante que, há quatro anos, estava convencida de que Trump ia ganhar. “Só que as pessoas não queriam assumir. Eu costumo comparar o voto nele àquela pessoa com quem se dormiu na faculdade, mas se tem uma vergonha tal por isso ter acontecido que nunca se conta ninguém”, aponta, com sentido de humor. “Votaria na mosca antes de votar no Trump [numa alusão à mosca que durante o debate entre candidatos a vice-presidentes dos EUA pousou na cabeça de Mike Pence e deu que falar nas redes].”
Desta vez, está confiante na vitória de Joe Biden e na viragem do Senado à esquerda. “Acho que o Trump denegriu tanto a imagem do país e ignorou tanta gente que agora as pessoas vão querer contrariar isso. Além de que o facto de eu pagar mais impostos do que ele é inconcebível”, critica Maria João, numa referência a uma investigação recentemente publicada pelo jornal americano “The New York Times”, dando conta de que o líder americano não tinha pago impostos em dez dos últimos 15 anos. Em jeito de brincadeira, admite até que devia fazer uma promessa, para o caso de, como espera, Biden vencer. “Acho que seria uma boa altura para ir a Fátima a pé outra vez.”
“A ideia de que quem vota Trump é só parvo é uma falácia”
Marco Bravo, 44 anos, residente em Austin, no Texas, há dez anos, lamenta que ainda não lhe seja permitido ir às urnas. “Terei muito brevemente dupla nacionalidade mas para já ainda não posso votar. Gostava de o poder fazer, sem dúvida. Isto já é quase um cliché, mas estas serão umas eleições decisivas para a história dos EUA e do Mundo, porque o que se passa aqui tem reflexos em todo o Planeta.”
A votar, votaria em Biden. Não que seja seguidor devoto desta ou daquela ideologia. “Não é que seja democrata ou republicano”, esclarece o empreendedor, ligado à área das startups e da comercialização da tecnologia. “Gosto da ideia do mercado livre e de o Estado não se intrometer na economia. Acho que faz todo o sentido. Por outro lado, há coisas de que gosto mais nos democratas. Como o investimento na ciência e na educação.”
Filosofias partidárias à parte, tem claro que não poderia nunca votar em Trump. “Por um lado, pela personalidade dele. As mentiras constantes e a falta de ética. Está tudo errado com a forma de pensar e o caráter daquela pessoa. Por outro lado, pelas políticas dele. E em particular por não aceitar a ciência. Tem-se visto isso em relação à covid e em relação às alterações climáticas, por exemplo. Negar que isto está a acontecer, tratando-se de algo que pode pôr em causa a sobrevivência da humanidade, é altamente nocivo.”
Mas as críticas declaradas ao trumpismo não o levam a perder-se de amores por Biden. “Acho que não foi um bom candidato. Era preciso alguém mais jovem, alguém diferente. É contra esta continuidade do status quo que muita gente acaba por votar. A ideia de que quem vota Trump é só parvo e estúpido é uma falácia, uma simplificação ignorante. Há muita gente bem formada e inteligente a votar no Partido Republicano.”
A preferência pelo partido de Donald Trump sente-se de sobremaneira nos estados sulistas e com particular fôlego no Texas, onde Marco Bravo reside. “No meio em que me movo, um meio mais intelectual, liberal, de pessoas que acreditam na ciência, isso não se sente. É um meio mais democrata. É preciso ver que, há quatro anos, nas quatro grandes cidades do Texas, a Hillary teve mais votos. Mas depois há um fosso enorme para os meios mais rurais, mais tradicionais, em que ainda resiste aquela cultura de cowboy. Aí a tendência é claramente republicana.”
A dicotomia que por estes dias rasga a América é a mesma com que olha para o país que lhe abriu as portas do sucesso. Gaba-lhe a facilidade que proporciona para fazer negócios e a escala que permite (“Sobretudo na minha área é o centro do Mundo”), um “país de oportunidades” que está longe de ser uma promessa vã. “Quem tiver talento e se esforçar consegue os seus intentos”, vinca. Mas não esconde certas preocupações em relação ao que está para vir.
“Desde logo tenho o receio de que a diferença nos resultados eleitorais seja mínima, que haja irregularidades ou erros comprovados no voto por correspondência e que entremos num impasse. Se não houver um resultado claro e a questão chegar ao Supremo Tribunal, onde a maior parte dos juízes são republicanos, podemos entrar num terreno pantanoso.
Depois, o facto de as emoções estarem muito extremadas. Há uma amálgama de tensões sociais e raciais que pode levantar muitos problemas. Junte-se isso às desigualdades, ainda para mais num ano de pandemia. Podemos estar perante um cocktail explosivo.” Também por isso o próximo 3 de novembro se anuncia como o primeiro dia do resto da vida dos Estados Unidos.