“É uma solidão que se acrescenta à solidão da morte”

Maria José Vasconcelos, 84 anos, aprendeu em vida a cultivar a fé em solidão. Com a idade a avançar e a mobilidade a regredir já pouco saía de casa. Nem para ir à igreja. “Era uma senhora que participava na missa através da televisão”, recorda o padre Amaro Gonçalo, pároco da Senhora da Hora (Matosinhos). Nem por isso Maria José descurava a devoção. No momento do ofertório, punha sempre uma moeda de lado. Ia-as juntando a todas num mealheiro. De ano a ano, pedia ao padre Amaro que as fosse buscar. Mesmo reduzida ao isolamento dos dias, não queria deixar de contribuir.

Há semanas, o estado de saúde de Maria José agravou-se. Deu entrada no hospital com problemas renais. Mas o internamento foi mais sina do que cura. Ficou infetada com Covid-19 e começou a definhar. A notícia fatal chegou no domingo, 5 de abril. Sem direito a visitas nem despedidas. Sem direito ao abraço que ajuda a partir em paz. Sem direito a velório nem à presença no funeral de todos os que a queriam bem. Só com uma fé envolta em solidão.

Solidões. A da mãe que parte de urna fechada e a do filho obrigado a dizer adeus à pressa. José Vasconcelos, 61 anos, coberto de negro, máscara e óculos de sol no rosto, gerberas brancas na mão, detém-se à entrada do cemitério da Senhora da Hora, consternado. É só ele, a esposa, um sobrinho e uma amiga que é como família. À entrada, um grande cartaz recorda as regras estabelecidas pela Câmara de Matosinhos para os funerais.

(Foto: Leonel de Castro/Global Imagens)

O sacerdote chega à hora marcada, máscara colada ao rosto. Faz uma primeira oração junto ao portão, com a urna ainda na carrinha funerária. Já no cemitério, as campas a toda a volta e os familiares cuidadosamente afastados uns dos outros, procede ao rito de última encomendação e despedida. Dirige preces “aos que sofrem no corpo e na alma, sobretudo pelas vítimas da Covid”. José tem a mão pousada na urna da mãe, como quem diz até já. O derradeiro rito dura breves minutos. José, a esposa, o sobrinho e a amiga ainda lá ficam, olhos turvos e poucas falas, o peso do adeus a marcar presença onde moram as ausências.

Sem poder confortá-los em afetos, o pároco disponibiliza-se para ministrar uma cerimónia exequial quando a Covid se for. Para que se amoleçam mágoas. Como a de o corpo de Maria José nem ter sequer passado pela igreja para a qual tão religiosamente guardava as moedas. A prudência a isso impele. “As recomendações que temos são para tentar fazer as cerimónias no local de destino, seja o cemitério ou o tanatório. Desta forma evita-se a deslocação da família de um local para o outro”, justifica Ricardo Barros, da funerária Confiança. Para proteção de todos. Mesmo que não haja proteção possível para o vazio que a pandemia traz.

“É uma solidão que se acrescenta à solidão da morte”, resume o padre Amaro, responsável pela celebração exequial de Maria José. No lugar dos afetos, esse ténue bálsamo quando nos invadem as dores mais profundas da vida, erguem-se barreiras. “É um vírus diabólico, que nos separa e divide. Os funerais sempre foram um acontecimento social. Se lhes tirarmos isso parece uma morte clandestina. É muito violento.” José, filho de Maria José, o pesar cravado no rosto, socorre-se de uma metáfora angustiante. “É como dobrar a esquina e levar uma chapada.”

(Foto: Leonel de Castro/Global Imagens)

Não é tudo pior, mas é uma dor que se cola à pele. “Há menos tempo para doer. Isso de certa forma torna as coisas mais leves. Mas dói muito não nos podermos despedir. Os médicos foram-me avisando que a minha mãe estava mal, mas não pude ir despedir-me dela. O único conforto é terem-me dado a possibilidade de falar com ela por telefone, dias antes de falecer.”

Às regras rigorosas impostas nos hospitais, em nome da prevenção do contágio, vieram juntar-se as limitações aos rituais fúnebres. É assim desde que, em meados de março, foi declarado o estado de emergência em Portugal. “A realização de funerais está condicionada à adoção de medidas organizacionais que garantam a inexistência de aglomerados de pessoas e o controlo das distâncias de segurança, designadamente a fixação de um limite máximo de presenças, a determinar pela autarquia local que exerça os poderes de gestão do respetivo cemitério”, pode ler-se no decreto.

Há outras regras a cumprir. Como a da urna fechada. Ou as das restrições aos velórios. Limitações que apoquentam e indignam. E que não raras vezes deixam as agências funerárias numa posição delicada. “Nós estamos no fim da linha. As pessoas vão querer connosco o que as impediram de fazer até aí. Às vezes até uma fotografia do familiar falecido. E muitas vezes os desejos das pessoas que nos contactam esbarram nas imposições que temos de cumprir. Cabe-nos a nós, num momento daqueles, estar a dizer ‘não, não pode’. É difícil”, lamenta Carlos Almeida, presidente da Direção da Associação Nacional de Empresas Lutuosas (ANEL).

Dono da agência funerária “Alto do Pina”, que já está nas mãos da família há mais de 50 anos, o líder da ANEL cresceu no mundo das exéquias fúnebres. Mas garante que nada do que aprendeu no último meio século o preparou para a realidade com que agora se depara diariamente. “Desde logo o facto de o atendimento ter de ser pouco afetuoso. Não tem nada a ver. Nada substitui o calor humano. Depois o estigma que há quando a pessoa falece em casa. Os familiares veem entrar pela casa pessoas que parecem astronautas.”

E ainda as alterações a nível burocrático, ditadas pelo fecho de serviços e o confinamento obrigatório, que tornam tudo “muito demorado” e fazem com que o sofrimento se arraste. De resto, é o próprio conceito de funeral que se subverte. “Antes, sobretudo no país rural, o normal era distribuir mais de 100 avisos por tudo o que era posto. O que se desejava era que fosse um evento com muita gente, por se tratar de uma pessoa estimada. Agora é o contrário. Mesmo que haja avisos não pomos a hora, para aparecer o mínimo de gente possível. Nos meios urbanos, onde há cerimónias mais íntimas, é mais simples. Nos meios mais pequenos nem tanto.”

“Deixai-me ver o meu pai”

Está uma tarde indecisa em Carrazeda de Ansiães, vila do distrito de Bragança. Ora as nuvens entrevam a tarde, ora o sol brilha forte e quente, a alumiar a terra. O dia é de pesar ainda assim. Faleceu José Manuel Pinto, 86 anos, pai de 12 filhos, já bisavô. Culpa de um acidente vascular cerebral, nada que ver com a Covid. Mas há restrições que são iguais para todos. E que doem aos que só anseiam por um adeus que seja uma nesga de conforto.

Como José Narciso, 24 anos, bisneto de José Manuel Pinto. “Claro que isto é mais difícil assim. Só o simples facto de não podermos ter aquela última visão, de não nos podermos despedir, de vermos o caixão fechado, entristece muito. Sobretudo para os filhos é muito difícil.” José carrega outras angústias. “O meu bisavô era um homem muito conhecido na terra e não vai poder ter a homenagem que devia.”

(Foto: Leonel de Castro/Global Imagens)

Os familiares mais próximos vão chegando, pesarosos, ao largo da igreja. Há lágrimas discretas e ataques de choro. Na ânsia de aconchegar a dor escapam abraços, a angústia da perda a falar mais alto do que a pandemia. À chegada, o padre da terra, Humberto Coelho como o antigo internacional português, reitera os avisos. De que, ao sentarem-se na igreja, devem deixar espaço entre os bancos. Mesmo sabendo da crueldade que enferma tal pedido.

“Não há nenhuma altura agradável para morrer, mas o facto de nem sequer os amigos poderem estar presentes torna tudo mais difícil”, admite, durante a breve exéquia fúnebre. Termina a apelar para que os entes queridos de José acompanhem a missa de sétimo dia pela rádio. E a sugerir que a devida homenagem seja feita mais tarde. Quando tudo passar. Esse horizonte que ainda se desenha tão desfocado.

“Tentamos fazer uma coisa mais simples, mais breve. Aconselhamos as pessoas a vir menos. Não distribuímos comunhão, não vamos ao cemitério. Mas é difícil. Nas cidades não se notará tanto, mas nas aldeias isto de as pessoas não terem direito à despedida aumenta muito a solidão e a tristeza.”

O pároco fica-se pela igreja, mas, para os entes queridos de José, a dor amplifica-se já no cemitério, com os breves minutos que passam entre a chegada do carro funerário e a descida do caixão a fazerem-se eternidade. Há choros desesperados, afetos vários e um grito arrepiante, angustiante, que se repete sem cessar e fica a ecoar, como que a lembrar repetidamente a desumanidade a que obriga o tempo em que vivemos. “Deixai-me ver o meu pai.”

(Foto: Leonel de Castro/Global Imagens)

Esta ausência da última imagem, quase como quando um corpo não é encontrado, pode abrir caminho à negação, alerta José Carlos Rocha, diretor clínico do Centro de Psicologia do Trauma e do Luto. “Face a esta não confrontação com a morte há uma grande tendência para evitar pensar, há um terreno mais fértil para a negação, o que dificulta um processo de luto saudável.”

Sobretudo quando à ausência da última imagem se juntam outras agruras. A da falta do conforto social. A da culpa de não acompanhar a fase final de alguém que amamos. Eventualmente a culpa do contágio. Até o próprio confinamento. “Estando nós em isolamento temos tendência a sentir-nos mais fragilizados. Acresce ainda a sensação de impotência perante a própria epidemia.”

No fundo, um luto que são vários, uma angústia multiplicada, como descreve o treinador de futebol Francisco Chaló. Perdeu o pai, que há anos se debatia com problemas cardíacos e diabetes, a 3 de abril. Não teve Covid, mas a Covid também teve que ver com isto, acredita o técnico. É que, para evitar ser vítima do maldito vírus, Júlio Gomes Chaló, 81 anos, começou a evitar as consultas. E o filho não consegue deixar de associar esse zelo ao suspiro fatal. “É uma mágoa que o vírus me deixa.”

Para piorar, por estar fora em trabalho, Francisco não via o pai desde dezembro. Um lamento que o corrói, a par com um sufoco que se triplica. “Dentro desta dor toda, acho que tive três dores: a dor da morte do meu pai, a dor de não poder abraçar a minha mãe e a minha irmã, a dor do funeral.”

Porque Francisco viu o pai ser sepultado como nunca achou que fosse possível. “A ida para o cemitério é dantesca. A distância que temos de manter, os fatos das pessoas que lá estavam. É surreal. Parece um filme de ficção em que nós somos os atores.”

Na lista de agravantes deste luto há ainda que incluir o facto de, em tempo de pandemia, nos habituarmos a ver a morte amplificada e generalizada nos meios de comunicação social. “É uma questão interessante, que tem a ver com o papel dos media junto de pessoas que estão a passar por processos de luto e estão sempre a ser confrontadas com isso. Um parceiro nosso, norueguês, fez um estudo sobre o atentado de Utoya, em que concluiu que quanto mais as crianças estivessem expostas ao acontecimento, através da televisão, pior seria”, alerta o psicólogo José Carlos Rocha, que também integra a equipa de supervisores do centro de acompanhamento psicológico da linha SNS24.

Tudo razões que tornam este luto da Covid “diferente de tudo o que já vivemos nos últimos 40, 50 anos”. Sendo que o risco de se alimentarem lutos prolongados é real. “Temos um fator de risco, até porque temos uma catástrofe em curso, que pode provocar reações traumáticas a médio e longo prazo. A maneira como vemos o Mundo mudou. Estamos a questionar tudo. Não é por acaso que a Ordem dos Psicólogos está a fazer um esforço enorme para pôr em prática a linha de apoio. É fundamental que a população esteja alerta e que a ela recorra sempre que necessário.”

Um guia para o luto

Foi precisamente por entender que, face à pandemia, o luto ganha “contornos singulares e relevantes”, devendo ser devidamente apoiado, que a Unidade de Cuidados Paliativos e Continuados do Hospital da Luz desenvolveu um documento, inspirado nas recomendações da organização britânica Cruse Bereavment Care, que pretende ser um guia para os tempos difíceis que se vivem.

Manter o contacto regular com outras pessoas, recorrendo ao telefone ou à Internet, apanhar ar fresco e luz solar, fazer exercício em casa, manter a rotina, conversar abertamente sobre eventuais sentimentos de raiva ou de culpa, permitir-se viver o luto, evitar fazer promessas de “vai ficar tudo bem”, sobretudo no caso de crianças e jovens, ter o cuidado de não viver o luto de forma demasiado invasiva – criando pausas no consumo de informação, por exemplo – e até criar um momento de despedida em casa, recorrendo a fotografias antigas ou às músicas preferidas de quem parte, são algumas das dicas que constam de um guia de várias páginas.

“Ainda hoje falava com uma pessoa que me dizia que o funeral da mãe parecia um filme de ficção científica. É muito difícil despedirmo-nos assim”, partilha Isabel Galriça Neto, coordenadora da Unidade de Cuidados Paliativos e Continuados do Hospital da Luz, como que a atestar a necessidade de lançar o guia. “Nestas circunstâncias o processo de luto está comprometido. Desde logo porque nos vemos privados de rituais que são muito importantes para as tarefas de encerramento, que começam antes da morte. O obrigada, o perdão, o adeus. Esta questão do ‘gosto de ti, perdoa-me’, das tarefas cumpridas de parte a parte. Quando não se participa, não se está presente, torna-se mais difícil iniciar e encerrar o luto.”

(Foto: Leonel de Castro/Global Imagens)

É precisamente o facto de vivermos hoje situações atípicas que pode potenciar o aumento dos sentimentos de raiva e de culpa. E é também por isso que é preciso agir a montante, sob pena de os danos serem irreversíveis. “É preciso falar disto porque nunca tivemos um número de mortes deste género. Neste momento, já há mais de 300 famílias enlutadas em Portugal. Essas pessoas contam. Enquanto nação, devemos validar que têm razão para estar tristes. Se não falarmos disto agora, os riscos são muito maiores. É preciso manter o apoio a estas pessoas.”

Dentro do que pode ser feito para atenuar a dor, as novas tecnologias também têm uma palavra a dizer. Seja por permitirem videochamadas entre doentes internados e os familiares que não os podem visitar – que nalguns casos acabam por ser a despedida possível – ou por permitirem acompanhar as exéquias fúnebres.

“Há uns tempos uma senhora pediu-me para transmitir o funeral em direto, para fazer chegar as imagens à irmã que estava no estrangeiro. As pessoas acabam por encontrar outras formas de se ligar”, salienta o padre Amaro Gonçalo, da Senhora da Hora. A Associação Nacional de Empresas Lutuosas não está a recomendar a prática, aconselhando antes a realização de uma cerimónia a posteriori, mas as horas de angústia podem ter contornos difíceis de entender.

Jean-Martin Rabot, professor de Sociologia na Universidade do Minho e membro do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, defende precisamente que as novas tecnologias, usadas nestes contextos, mais não são do que “o prolongamento dessa natural sociabilidade do homem”.

“Somos seres sociais, com rituais para tudo, rituais que correspondem a uma exteriorização de sentimentos, de forma coletiva. A morte implica forçosamente um ato coletivo. O funeral é um momento de convivência com os outros. Com o confinamento, estes rituais desaparecem e são substituídos pelas novas tecnologias, que permitem que eles possam ocorrer de outra forma. O largo da igreja, onde as pessoas se costumam juntar, já não é físico. É materializado no espaço virtual proporcionado pelas novas tecnologias.”

Jorge Vilaça, padre e coordenador do Centro de Escuta e Acompanhamento Espiritual da Arquidiocese de Braga (serviço que em tempos de Covid se faz exclusivamente por telefone), chama ainda a atenção para o facto de estes tempos trazerem à tona lutos antigos. “Situações que estavam mascaradas com o ritmo de trabalho e que agora emergem. Voltam as memórias não resolvidas.” Tanto mais quanto agora há tempo de sobra. “Normalmente, mesmo quando perdemos alguém, a vida exige-nos uma funcionalidade, que continuemos a trabalhar. Agora não. Isto implica um confronto mais direto com a temática da morte. Estamos muito mais expostos, sem subterfúgios.” São novas solidões a somar à solidão dos dias de uma pandemia impiedosa. Até na hora do luto.