Diz-me o que desejas, dir-te-ei quem vais ser

Foto: Maria João Gala/Global Imagens

Gabriel lutou contra um linfoma de Burkitt. Teve direito a passar um dia com o Corpo de Intervenção da PSP. No arranque do ano, começa o curso de GNR. Luís teve linfoma linfoblástico. Deixaram-no ser piloto por um dia. Hoje, está a estudar para fazer disso carreira. Os desejos da Make-A-Wish que se tornaram projeto de vida.

O céu ali à mão. O horizonte infinito, muitos mil pés acima da terra. A liberdade que lhe fugiu durante meses a voltar-lhe às mãos. Ver tudo. Sentir tudo. “É fantástico, indescritível.” Foi em junho de 2012. Era um dia de sol. Luís Pinto, de Felgueiras, era um catraio de 16 anos. Mas viveu tudo como gente grande. Não é todos os dias que os sonhos se tornam reais.

O dele ganhou vida pela mão da Make-A-Wish, depois de anos de um inferno chamado linfoma linfoblástico. Há muito magicava que haveria de estar no cockpit de um avião. E assim foi. Naquele dia solarengo de junho, entrou na cabina e levantou voo, rumo à Madeira, num prenúncio do que haveria de ser o futuro. Hoje, com 23 anos, está a estudar para ser piloto de avião.

Luís Pinto queria conhecer o cockpit de um avião. Acabou a viajar para a Madeira ao lado de um piloto profissional

Mas o início da história é bem mais enublado. Luís tinha 12, 13 anos, não sabe ao certo. Sabe que se sentia cansado, com frio, tossia, tossia muito, então à noite nem se fala. Também transpirava que se fartava. Sabe que o problema se arrastou uns tempos. Os médicos diziam-lhe que tinha uma laringite, mas os sintomas persistiam, teimosamente. Até que, por fim, lhe fizeram exames e lhe detetaram uma massa.

Ele seguiu de urgência para o Instituto Português de Oncologia, no Porto (IPO), meio perdido, sem tempo sequer para processar. Só se lembra de lá chegar e pensar: “O que é isto?”. Seguiram-se meses de internamento e de quimioterapia. Entre saídas e regressos, foram quase dois anos. Anos em que aprendeu de que se faz o medo. “Felizmente, só mais para o final é que comecei a ter noção de quão sério aquilo era.” Anos em que aprendeu à força a dor da perda. “Vermos os nossos colegas que estão connosco diariamente partir. Isso foi o que mais me custou.” O Mundo como o conhecia deixou de o ser. “Até aí era uma pessoa livre. Andava muito, fazia muita coisa, tinha muitos amigos. De repente, paro e fico agarrado a uma cama de hospital.”

A furar o calvário, um vislumbre de dias risonhos. No IPO, falaram-lhe da Make-A-Wish e anunciaram-lhe que teria direito a pedir um desejo, se assim quisesse. Ele pendeu para os aviões. Culpa do pai, em parte, porque desde cedo habituou a família a ir para o aeroporto observar o vaivém das aeronaves. O desejo foi-lhe concedido, com bónus. Além de entrar no cockpit, Luís teria direito a fazer um voo a sério, ao lado de um piloto profissional. Agendaram-lhe uma travessia Porto-Paris. Mas teria de esperar. Os médicos entenderam que Luís não tinha, naquele momento, condições de saúde para embarcar em semelhante aventura.

Foto: Maria João Gala/Global Imagens

O sonho far-se-ia real ainda assim. Já recuperado, mais forte, com os resultados das análises mais estáveis, Luís embarcou rumo à Madeira, como se de um profissional a sério se tratasse. “Fiz tudo o que os pilotos fazem.” Luís sabe detalhar ao pormenor aquele dia. De manhã, ainda teve uma consulta no IPO. De lá, seguiu para o Aeroporto Francisco Sá Carneiro, no Porto, onde o esperavam uma voluntária da Make-A-Wish e o comandante do voo. Levaram-no para a sala dos pilotos da TAP, onde traçaram o plano de voo. “Fazer a rota do avião, saber a que altitude vai, o combustível que vai ter de levar, ver a meteorologia, os aeroportos de alternância, essas coisas”, detalha Luís, todo ele entusiasmo.

Depois, o cockpit. Aprender os mecanismos e perceber como eles funcionam. E por fim o céu. “A única coisa que eu pedi foi para conhecer o cockpit. E acabei a voar. Foi incrível. Sem dúvida uma das experiências mais marcantes da minha vida.” O dia em que cumpriu um sonho haveria de ser o mesmo que o ajudou a traçar o futuro. “Foi aí que percebi o quão bom aquilo era. E foi por causa daquela experiência que percebi o que queria ser, o que queria fazer da minha vida.”

Entretanto curou-se. Acabou o Secundário (mais tarde do que o previsto, porque a doença lhe trocou as voltas) e começou a trabalhar numa empresa ligada ao paraquedismo – onde ainda hoje está. Ainda esteve em Inglaterra a fazer um curso de inglês. Quando voltou, veio determinado a começar o curso de piloto. Assim fez. Começou em janeiro deste ano. E graças aos saltos de paraquedas, já fez quase quatro centenas de voos. Mas continua a não trocar os voos por nada. “É uma sensação imensa de liberdade. É do que mais gosto. Da liberdade. O que mais aprendi com o que passei foi a aproveitar tudo o que posso. Só penso em continuar a viver o céu de forma intensa.” E medo? É simples. “Depois do que passei, acho que essa palavra já não existe no meu dicionário.”

A semente que ajuda a mudar

Abafar o medo, em troca de uns pozinhos de liberdade, é precisamente uma das missões da Make-A-Wish, uma fundação internacional que chegou a Portugal em 2007 e que é, desde 2009, uma Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS). A missão, essa, está bem definida desde o princípio: realizar desejos de crianças e jovens – entre os três e os 17 anos – que sofram de doenças graves, progressivas, degenerativas ou malignas, proporcionando-lhes um momento de alegria. De esperança também. “De que coisas boas se vão passar”, completa Mariana Correia, diretora executiva da Make-A-Wish Portugal.

Entre os desejos mais comuns estão as idas à Disney (“dizem-nos muitas vezes que gostavam de dar um abraço à Minnie ou de conhecer o Pluto”) e os encontros com futebolistas – sem surpresa, Cristiano Ronaldo lidera as preferências. Mas pretende-se que os desejos sejam bem mais do que umas horas bem passadas. “Qualquer desejo da Make-A-Wish pretende ter um efeito transformador. Na criança, no profissional de saúde, no voluntário, nos parceiros que acabam por ajudar. É uma sementinha que colocamos na cabeça e no coração de todas as pessoas que interagem connosco. Uma sementinha que ajuda a mudar.” Desde logo para que a angústia da doença dê lugar à fé em dias melhores. Idealmente, para que seja um efeito transformador a longo prazo. Como aconteceu com Luís. “Para nós, conseguir esse efeito é chegar ao topo.”

Foto: Maria João Gala/Global Imagens

Como aconteceu também com Gabriel Marques (19 anos), de Ovar. Aos 13 anos, chocou de frente com um susto que lhe mudou a vida. Mas também com um “milagre”, como gosta de lhe chamar. Tudo começou com dores insuportáveis na zona abdominal. Ao ponto de se atirar para o chão. E de deixar de conseguir andar com as dores. Até que a mãe fez finca-pé no hospital: “O meu filho não sai daqui enquanto não souberem o que ele tem.” Acabou por ser transferido para o Hospital de São João, onde se descobriria o problema. Gabriel tinha uma invaginação intestinal e foi operado de urgência, com sucesso. Mas o infortúnio teve um rasgo de sorte.

É que foi graças a essa intervenção, relativamente simples, que lhe descobriram (e retiraram) uma massa suspeita. Tratava-se de um linfoma de Burkitt galopante. “Era relativamente fácil de resolver se fosse detetado a tempo. Caso contrário, podia ser fatal. E já estava a passar para a perna.” Quando lhe disseram que ia ter de passar “ali para o lado” para acabar de matar o bichinho, achou, ingenuamente, que era o quarto ao lado. Mas não. Era o IPO. “Quando lá cheguei e vi as crianças carecas, debilitadas é que tive o baque.” Depois, as palavras que ainda recorda como se fosse hoje. “Tens um cancro. Vais ficar aqui pelo menos três meses.”

Gabriel Marques pôde passar um dia com o Corpo de Intervenção da PSP, no Quartel da Bela Vista, no Porto

Gabriel não evitou o choque. Mas não se deixou derrubar. “Ok, desde que fique bem fico aqui o tempo que for preciso”, respondeu. “O apoio que tive de toda a gente ajudou-me muito. E o facto de aquilo ter acontecido na idade da inocência também.” Mas não só. Pelo meio, apareceram as voluntárias da Make-A-Wish a perguntar-lhe que desejo gostava de ver concretizado. Ele começou por pedir um iPhone. Mas as psicólogas haveriam de perceber-lhe a queda para a carreira militar. E foi assim que, em 2015, estava ele na escola, em plena aula, lhe entraram uns quantos polícias pela sala adentro. “Estamos aqui por causa do Gabriel”, anunciou um, com ar grave. “Eu sou uma pessoa que se porta bem, mas assustei-me um bocado”, recorda, divertido. Aos poucos, foi percebendo o que se passava. “Fomos lá para o pavilhão da escola, eu, eles, a minha turma e a minha família e fizeram demonstração de técnicas de defesa pessoal, do que fazem no dia a dia, de como abordam as pessoas na rua.”

Era o primeiro capítulo de uma experiência rica. Emprestaram-lhe uma farda e seguiu, ou seguiram, ele e a mãe, para a base do Destacamento do Corpo de Intervenção da PSP, no Quartel da Bela Vista (Porto). Entre uma simulação de procura de um refém ao lançamento de granadas, passando pela técnica de algemar, Gabriel acabou o dia convencido de que era aquilo que queria fazer para o resto da vida. “Antes já queria ser polícia. Desde sempre me fascinou ver os polícias nas ruas e perceber o que faziam. Depois, com a concretização do desejo, a minha vontade reforçou-se um milhão de vezes. Ali, decidi que era isto que queria fazer para o resto da vida.”

Por isso, assim que teve oportunidade, candidatou-se ao curso de GNR. O processo foi longo, demorado, às vezes desesperante. Mas há duas semanas recebeu a notícia com que sonhou durante anos: a partir do próximo mês, será oficialmente estudante do curso de GNR. “Quando soube fiquei tão feliz que comecei a conduzir super depressa, desnorteado. Liguei para as pessoas que eu amo e quando saí do carro agradeci ao universo. E agradeci a Deus.” Gabriel apressa-se a explicar a fé. “Sou muito grato a Deus por estar sempre comigo. Por tudo o que se passei.” É o discurso de quem se viu obrigado a crescer à pressa. E ainda assim conseguiu dar a volta. “O que mais aprendi foi a não perder tempo com coisas fúteis, porque agora estamos cá mas daqui a dez segundos podemos já não estar.” O propósito da Make-A-Wish também é esse. Mariana Correia sublinha isso mesmo. “Com os desejos que concretizamos, tentamos levar a esperança de que coisas boas se vão passar. De que não há impossíveis. A ideia é que isso possa ser transportado para a cura. E que o efeito transformador dure. De preferência, para o resto da vida.”