A resposta é complexa, mas é certo que a inteligência emocional tem tudo que ver com o assunto. O inconsciente e as entranhas também.
Eduarda Silva, 36 anos, de Braga, não sabe dizer exatamente em que momento da vida a intuição que a move se exponenciou. Lembra-se, isso sim, que em adolescente já a tinha. Que às vezes os amigos combinavam coisas e ela começava a ser invadida por uma sensação incapaz de se desvanecer: “Vai dar asneira”. Então não ia. E dava. Lembra-se de estar numa discoteca e de querer ir embora num repente porque começou a achar o ambiente “meio estranho”. E de depois saber que tinha havido um episódio de esfaqueamento. A intuição ficou-lhe com o tempo. Particularmente acentuada no caso das pessoas de que mais gosta. Se a irmã não está bem ela pressente-o à légua. Mesmo que as separem milhares de quilómetros. E uma vez, num Natal, enquanto aguardavam que o irmão mais novo chegasse, deu por ela uma pilha de nervos, a sentir que algo tinha acontecido. Mesmo que o caçula não estivesse nem um bocadinho atrasado. Não sossegou nem quando o mano respondeu a dizer que estava tudo bem. Quando ele chegou percebeu porquê. Trazia o carro espatifado por causa de um acidente na estrada. O sexto sentido também lhe serve noutros contextos. Como daquela vez no trabalho em que, contrariando a opinião geral, pressentiu que a nova colega não era o que parecia. Confirmou-se, pois. Ou até para adivinhar as prendas que todos os anos vai receber. “Sei sempre. Claro que depois tento mostrar-me surpreendida. Mas no fundo sei sempre.” Admite que é cuidadosa por natureza, particularmente atenta ao que a rodeia também. Mas pode jurar que o que sente é maior do que isso. “É uma sensação muito forte. Não é bem ter um dejá-vu, é como se de repente tivesse assim uma certeza grande em relação a determinadas coisas.”
O testemunho de Eduarda serve de ponto de partida para umas quantas questões. Afinal, o sexto sentido existe? O que é exatamente? Podemos ter premonições? Porque é que há quem tenha uma intuição particularmente apurada? As respostas podem ser tão diversas quanto as sensibilidades que lhes ditam a proveniência. José Barros, professor catedrático de Semiologia Neurológica do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, da Universidade do Porto, e diretor do serviço de Neurologia do Centro Hospitalar Universitário do Porto, refere que o sexto sentido associado à intuição, à atenção plena, à tomada de decisão “seria vagamente a nossa capacidade de estar cientes de nós, dos outros e do meio, recrutando vivências e experiências e desenvolvendo competências de controlo, monitorização e antecipação dos acontecimentos, tomando as boas decisões, mesmo em contextos adversos”. Sublinha no entanto que se trata de uma matéria que “não vem nos tratados de Neurologia, nem tem bases anatomofisiológicas muito claras”, e que “tem sido estudada na psicologia comportamental, na neuropsicologia, na enfermagem, na gestão de organizações, em terapias complementares e até na teologia”.
O papel das emoções
Sara Cavaco, neuropsicóloga e doutorada em neurociências, relaciona o assunto com a questão do papel das emoções na tomada de decisão, que tem sido muito estudado pelo neurocientista português António Damásio, com quem trabalhou durante vários anos na Universidade de Iowa. “Nomeadamente a capacidade que temos de processar as nossas emoções no sentido de tomar uma decisão mais vantajosa.” E especifica: “Sabemos que doentes que têm uma lesão ventromedial pré-frontal, e que por isso têm dificuldade em processar emoções, acabam por ter mais dificuldade em tomar decisões”.
Voltando à questão: o sexto sentido existe? “Nessa perspetiva sim.” Sara Cavaco aponta como exemplo um estudo conduzido por António Damásio, denominado “Iowa Gambling Task”, em que vários indivíduos tinham de escolher cartas de quatro baralhos, revelando-se umas mais vantajosas do que outras. “As pessoas normais acabavam por ajustar o seu comportamento no sentido de respostas menos arriscadas e mais vantajosas mesmo sem terem consciência sobre qual a melhor estratégia, enquanto doentes com lesão pré-frontal (envolvendo a área ventromedial) continuam a gerar respostas mais arriscadas e menos vantajosas mesmo depois de saberem qual a estratégia correta”, recorda a especialista. O mesmo estudo concluía que, no caso das pessoas sem qualquer tipo de lesão, “se geravam respostas fisiológicas de antecipação a escolhas que se viriam a revelar arriscadas”, sugerindo que “há vieses não conscientes que guiam o comportamento antes que o conhecimento consciente o faça”.
João Carlos Major, psicólogo clínico e professor universitário na área da Psicologia, chama precisamente a atenção para a questão dos processos inconscientes. “Uma discussão sobre a questão da intuição (vulgo sexto sentido ou premonição) sem levar em conta o conceito de inconsciente, seria incompleta, porque são precisamente os processos inconscientes que instanciam aquilo que podemos denominar de intuição (do latim ‘inter-legere’ ou ‘intus-legere’, ‘ler nas entrelinhas’ ou ‘ler dentro’).” O especialista diz tratar-se de um processamento da informação – a informação que nos chega mormente por via dos sentidos – que “ultrapassa o mero processamento consciente”.
E se há alguma tendência para relacionar o sexto sentido com o campo do esoterismo, o psicólogo ressalva que o inconsciente, em particular, “não é nem pode ser encarado como algo de metafísico. Referimo-nos a circuitos neuronais que processam a informação de modos emocionais, ou mais precisamente afetivos, e dada a sua base filogeneticamente muito antiga conseguem computar ângulos do real que o processamento consciente, muito mais recente e preparado para um escrutínio muito circunscrito da realidade, não consegue”.
E voltamos à questão das emoções. “Na linha desse vulto maior da Psicologia, o médico neurologista William James, ou de neo-jamesianos como o neurocientista português António Damásio, por inconsciente podemos entender os circuitos neuronais em grande medida subcorticais e ligados aos mecanismos que processam a afetividade.” João Carlos Major defende, por isso, que os seres humanos sabem mais do que aquilo que julgam saber por via consciente, sendo que por vezes esse conhecimento “assoma à consciência de uma forma inusitada, quase misteriosa”. E remata afirmando que o “sexto sentido” deve ser encarado pela ciência como algo de “profundamente natural”, visto que os mecanismos que o explicam “são simples e bem conhecidos”. “O cérebro, mormente o ‘pré-frontal’ – a zona que se encontra por detrás da nossa testa – está permanentemente a procurar antecipar no tempo o resultado das nossas ações.”
O “gut feeling” e a inteligência emocional
É também neste contexto que a neuropsicóloga Sara Cavaco chama a atenção para uma outra nuance. “Há informação que é processada pelas vísceras e só depois temos consciência dela.” Aliás, há uma expressão em inglês que remete para isso mesmo. O “gut feeling”, que significa, à letra, sensação nas entranhas, mais não é do que a intuição. A especialista pormenoriza. “As emoções são processadas primeiro fisiologicamente. Já deve ter estado na autoestrada a conduzir e feito uma guinada à direita ou à esquerda por causa de um obstáculo imprevisto. Trata-se de um gesto rápido, automático, em grande parte não consciente. Sente-se aquele friozinho na barriga e só se dá conta do que está a acontecer depois. Tem a ver com isso. As nossas vísceras ajudam-nos a tomar decisões.” O mesmo se pode aplicar ao momento em que conhecemos alguém novo, à sensação de a pessoa nos inspirar ou não confiança. “Tem a ver com as nossas vísceras”, reforça Sara Cavaco, alertando, no entanto, para a possibilidade de estas sensações poderem, por vezes, ser alimentadas por preconceitos.
E afinal, porque é que há pessoas que têm um sexto sentido mais apurado do que outras? “Por causa da inteligência emocional, um tipo de inteligência que permite ler e aceder às emoções para a pessoa se regular a si própria e aos outros e que ajuda a saber lidar com situações emocionais complexas”, esclarece a neuropsicóloga. Ora, é precisamente essa inteligência emocional, a capacidade de perceber as nossas emoções e as dos outros, que acaba por servir de base intuitiva da tomada de decisão.
A falácia dos cinco sentidos
É uma daquelas aprendizagens obrigatórias nos primeiros tempos do universo escolar. O ser humano tem cinco sentidos: visão, audição, paladar, olfato e tato. No entanto, este conceito é falacioso. Quem o garante é José Barros, diretor do Serviço de Neurologia do Centro Hospitalar Universitário do Porto. “A noção de cinco sentidos identifica-os com os órgãos do corpo que sofrem o estímulo ambiental: olho, ouvido, língua, nariz e pele. O conceito neurológico é bem mais vasto e complexo e designa-se por perceção. As perceções não são garantidas por órgãos dos sentidos, mas por redes neuronais complexas, a diferentes níveis do sistema nervoso central e periférico.” Ou seja: sons, imagens, formas, texturas, cheiros, odores complexos “exigem a ativação de conjuntos alargados de recetores, em ação síncrona, captando diferentes atributos dos estímulos, processando-os e transmitindo-os à espinal medula, ao tronco cerebral, ao tálamo e a diferentes áreas dos lobos cerebrais, diretamente ou em sequências”.