Daqui ninguém sai vivo
Os filmes são os filmes e as circunstâncias de quem os vê, quando e como. E quem diz filmes diz discos ou livros ou quadros ou outros apetrechos de arte. Logo, aqueles que agora assistirem a “O Anjo Exterminador”, obra-prima surrealista de Luis Buñuel, terão uma relação com a noção de confinamento, que atravessa a sua hora e meia, diferente de quem encontrou a película em 1962, ano da estreia em Cannes.
A fita, um tratado de alucinação e sufoco, de suor crescente e luz em dissipação, da inquietação ao desespero, acompanha um jantar formal de exemplares das classes endinheiradas. Um jantar do qual os empregados vão desaparecendo até que nada mais reste do que uma sala, numa mansão, da qual nenhum dos convidados é capaz de sair. Jamais se percebe que força os retém ali, dias a fio. A sombra da insanidade e da fome delapida a compostura social.
A ameaça sem corpo evoca as narrativas sobressaltadas de “The Twilight Zone”, a série televisiva de Rod Sterling que, em 1962, atravessava uma era dourada. O surrealismo, no código genético de Buñuel (a sua estreia, “Un Chien Andalou, em 29, fez-se em parceria com Salvador Dalí, cúmplice de adolescência), manifesta-se ao virar de cada esquina, rasteirando o enredo. Quase tão omnipresente é a religião, do anjo titular, referência a uma figura do Velho Testamento; aos cordeiros que irrompem em cena, prontos para o sacrifício.
Com a covid-19 a pairar, laços entre um mal invisível e a perturbação decorrente da reclusão serão inevitavelmente notados. Uma camada de simbolismo a juntar-se ao patamar político: aqueles convivas prósperos e fechados sobre si foram equiparados ao regime franquista que levou o realizador a exílios vários, o mais longo e definitivo no México, onde rodou esta e outras obras. O regresso de “O Anjo Exterminador” a salas de Lisboa e Porto a partir de quinta-feira 18, a bordo de uma extensa retrospetiva do perplexo mundo de Luis Buñuel, é motivo mais do que justificável para desconfinar.