Valter Hugo Mãe

Cuidar dos cães


Um ser que nos aceita e retribui o carinho não é vulgar. É especial.

Sei bem que todos os animais precisam de ser respeitados e a fome humana não pode destituir um bicho de uma mínima dignidade. É minha opção de consciência disciplinar a alimentação para que seja o menos violenta possível, ainda que seja torpe, porque sou torpe, mas atenta, esforçada o suficiente para não me envergonhar. Dito isto, comovem-me particularmente os cães, sobretudo os que são mais naturalmente inclinados à gentileza e à companhia.

Passámos uma semana a ver imagens horrendas de cães debilitados, magoados e mortos. Bichos assustados num mundo que muita gente julga que não lhes pertence e que não lhes deu o direito simples de fuga diante do perigo e da iminência da morte. O mundo está cheio de atrocidades, tantas piores, desde logo cometidas contra pessoas, mas isso não diminui a vilania inaceitável de quem permitiu que o direito à propriedade privada se sobrepusesse ao direito de sobrevivência de animais dos quais se devia cuidar.

Os cães foram inventados pela humanidade. Eles não são imediata decisão da natureza. São uma maturação milenar levada a cabo pelas pessoas que começaram a amansar lobos. A ciência de amansar os lobos, esses, sim, fruto do discernimento livre da natureza, inventou o melhor amigo da humanidade. Não é acaso que os cães se afeiçoem de modo profundo aos seus cuidadores, como se estruturam segundo os hábitos dos seus cuidadores e padecem terrivelmente com a sua ausência. Os cães não são, por isso, quaisquer animais considerados na relação com o ser humano. Eles são seu produto e, dentro das óbvias limitações, desenvolveram-se à imagem e ao interesse das pessoas. Prestam os mais valiosos serviços, cumprem a mais meritória fidelidade e, mesmo sem grande retribuição, sentem um amor deslumbrante que nos pode ensinar a todos o que é amar de verdade.

Juro que não entendo como alguém pode abandonar, ferir ou apenas preterir um cão. Sinto que é como abdicar de uma escola superior de afecto e, assim mesmo, uma escola superior de humanidade. Os cães, destinados à companhia das pessoas, são concretamente uma devolução de uma potencial humanidade. De entre toda a vastidão de bichos, serão aqueles que mais se abeiram do que nós somos, aqueles que mais se abeiram de ser gente ao tamanho irracional que lhes é imposto.

Penso, sim, que nos compete a todos honrar os cães. Compete-nos honrá-los por nos mirarem desde suas vulnerabilidades afectivas e desejarem, acima de todas as coisas, o nosso carinho. Um ser que nos aceita e retribui o carinho não é vulgar. É especial. É um cidadão de um universo de decência que nos comunica pela ininterrupta entrega de confiança. Considero isso enorme. Enorme e para sempre belo.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)