Valter Hugo Mãe

Cristina Ferreira

Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens

Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

O livro que Cristina Ferreira publica agora não é protesto de desespero, é pedagogia. Que se coloque como elemento de estudo para o grotesco exercício do ódio que grassa por aí é de valor inestimável.

Apenas Cristiano Ronaldo será, de entre os portugueses, mais seguido nas redes sociais do que Cristina Ferreira. Contudo, quero crer que de entre os portugueses ninguém como Cristina Ferreira estará sujeito a um maior e mais vil escrutínio. O mundo sabe muito pouco aceitar que uma mulher possa deter o poder, algum poder, e que se coloque como inevitável num jogo onde são esperados os homens e desculpadas apenas as mulheres que parecem pagar caro. O insulto constante, a agressão covarde nas redes é a tentativa de cobrar esse preço que radica na frustração íntima dos que já não sabem mais do que o ódio, manifesto puro do descontrolo.

Julgo importante que se discuta o novíssimo livro de Cristina Ferreira com solenidade. Habituados que estamos a vê-la no ofício do entretenimento, talvez não esperemos que interfira em assuntos mais fracturantes e urgentes que não se coloquem enquanto modos de divertir ou de informar com ligeireza. A questão da agressão impune nas redes é fulcral para a maturação da sociedade, apanhada em pruridos pelo desafio de manter a internet livre e esperar que os seus utilizadores, só por bondade, a saibam erguer com ética e cuidado. Não vai acontecer. A internet, como em todas as dimensões do humano, terá de se submeter à conquista gloriosa do Direito, validada apenas pela essencial legalidade.

Tem existido um pudor inexplicável para com a necessidade de fazer operar no foro da internet os princípios de legalidade perfeitamente assumidos nas demais dimensões sociais. Como se o insulto fosse inequivocamente um crime quando proferido num jornal mas se tornasse liberdade de expressão no Facebook ou no Instagram. Não há um sentido concreto num pensamento assim. A ânsia para que em algum reduto estejamos como sem polícia não pode resultar na circunscrição de espaços de impunidade. O crime pode ter gradação mas jamais pode deixar de o ser depois de consumado.

O livro que Cristina Ferreira publica agora não é protesto de desespero, é pedagogia. Que se coloque como elemento de estudo para o grotesco exercício do ódio que grassa por aí é de valor inestimável, porque estamos todos aquém da robustez que a apresentadora precisa de ter para seguir focada em seu trabalho, seus objectivos, seu bem-estar, sua já tão parca intimidade.

Importa-nos a todos, porque estamos expostos, porque vemos expostos nossos filhos e sobrinhos, aqui e ali atacados por assumirem alguma vulnerabilidade, alguma hesitação perante os pensamentos maioritários, alguma diferença que os possa fazer menos inteligíveis ou semelhantes. O esforço para que se crie uma consciência para o uso ético das redes e de todo o potencial da internet é fundamental para o futuro. Dependeremos cada vez mais do retorno que recebemos deste modo e não há como estruturar cidadãos equilibrados em sua auto-estima se não houvermos de lhes garantir que, sob pretexto algum, se normalizará e aceitará que o crime da agressão psicológica, da ofensa e da difamação perdure.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)