Crise de meia-idade: inquietação inquietação, é só inquietação

A crise de meia-idade foi pela primeira vez identificada pelo médico canadiano Elliot Jaques (1917-2003), corria o ano de 1965 (Ilustração: MG/Notícias Magazine)

A crise de meia-idade existe e pode ter contornos desesperantes. Um caldo perigoso de expectativas frustradas e receios sobre o futuro. É doença que domina sem se deixar dominar.

São sinais, pequenos sinais que se agigantam. Que atormentam. Que obrigam a olhar para trás e impedem que se olhe em frente. Que bloqueiam. É a culpa a moer e a desgastar. A culpa do que se fez, do que se poderia ter feito, do que se não foi a tempo de fazer, do que se quer fazer e parece impossível que se faça. É a mente a pagar o preço de uma vida de atribulações várias e que chegou a um ponto que parece de não retorno. É o corpo a sofrer os sinais da indefinição, do desgaste, da incerteza, da frustração. É o negro a cobrir de fúrias um futuro que não apetece. É a crise de meia-idade. Não é mito, existe mesmo, está enquadrada clinicamente e afeta homens e mulheres. Em casos extremos pode levar a situações graves, à vontade de não continuar um percurso do qual mais não se vislumbra senão pessimismo.

“Acontece uma ou mais vezes ao longo do ciclo de vida, sensivelmente a partir dos 45 anos, sempre que um indivíduo questiona a sua vida, o seu propósito, o que fez e o que ainda quer fazer”, resume a psicóloga Lúcia Ferreira. Uma crise que não é contínua, que pode ter vários pontos de retorno, que coleciona armadilhas que a espoletam nos momentos em que menos se espera. “Por exemplo, quando uma pessoa conhecida ou amiga falece, quando há um diagnóstico de uma doença grave ou então quando um acidente coloca a vida em causa”, exemplifica a especialista.

Um período de “autoavaliação existencial”, conforme define Catarina Mexia, especialista em Psicologia Clínica e da Saúde e Psicoterapia e membro efetivo da Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar. Período esse que “ocorre na encruzilhada entre a juventude e a velhice” e que pode ter diferentes traduções. “Para alguns, cerca de 10% das pessoas, esse período é uma verdadeira crise, que as leva a comportarem-se de maneira diferente, seja por meio de pequenos ajustes na rotina ou mudanças drásticas na personalidade e crenças.” Não escolhe géneros, homens e mulheres podem tropeçar nela. “Tendencialmente as mulheres são mais penalizadas, pois a sociedade continua a impor-lhes a ditadura da beleza eternamente jovem, por oposição ao charme do homem em processo de envelhecimento”, sublinha. “Além de que quando os filhos crescem e saem de casa a mulher desenvolve a chamada Síndrome do Ninho Vazio, com as suas consequências inerentes”, lembra, por seu lado, Lúcia Ferreira.

O surgimento deste conjunto complexo de dilemas ocorre numa fase em que tudo está dividido entre o que foi e o que poderia ter sido, e quando o futuro é mais feito de dúvidas do que de certezas. “Geralmente quando a carreira profissional está mais estável e se começa a antecipar a reforma, quando os filhos cresceram e saíram de casa ou vão sair, quando do ponto de vista da aparência física começam a observar-se mudanças associadas ao envelhecimento”, enuncia Rute Agulhas, psicóloga, psicoterapeuta e professora no ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa.

Surgem então, ou ressurgem, os dilemas de sempre, os tais dilemas que inquietam. A sensação de que a infinitude é utópica, contrariando o ideal de uma vida que se gostaria eterna e perfeita, seja lá o que for isso da perfeição. Que a juventude é mais passado distante do que presente palpável e que prolongá-la pode tornar-se agonizante. Que o tempo escasseia e, provavelmente, não será mais razoável realizar o que nunca antes se concretizou. E vêm os momentos que confundem melancolia com doença.

(Ilustração: MG/Notícias Magazine)

“A depressão mostra ao indivíduo que tudo é finito. Que, apesar de tentarmos manter-nos jovens cada vez mais tempo, esse tempo pode começar a escassear”, explica Lúcia Ferreira. Aí, a ajuda médica torna-se essencial, sob pena de prolongar um estado de agonia que parece não ter limite à vista e se agudiza à medida que o calendário avança e o otimismo não regressa. Quadros clínicos de “difícil diagnóstico” que merecem atenção o mais rapidamente possível.

“A vergonha associada ao fracasso percecionado é, na maioria das vezes, exacerbada; corresponde muito pouco à realidade”, complementa Lúcia Ferreira. Essa falsa sensação de vergonha leva, na maior parte dos casos, a que os pacientes demorem a aceitar que necessitam de ajuda. E regressa o remoinho, com o agravar dos sintomas, a queda num poço cada vez mais profundo. Quando chegam ao consultório, apresentam características que coincidem. “Quadros clínicos que podem passar pela ansiedade e mesmo ataques de pânico, quando existe a perceção, distorcida na maioria das vezes, de que o tempo está a passar e não se fez nada da vida e provavelmente já não se terá tempo de fazer”, detalha. A já falada depressão, o mais grave dos quadros, é também comum. Acontece quando é assumido que “já não vale a pena lutar pelos sonhos porque se acordou tarde demais para a vida”.

A crise de meia-idade foi pela primeira vez identificada pelo médico canadiano Elliot Jaques (1917-2003), corria o ano de 1965. Com estudos avançados no campo da psicanálise, Jaques analisou milhares de casos de indivíduos na casa dos 40 anos e respetivos padrões comportamentais. Detetou coincidências que não o eram apenas por si só isso mesmo, antes linhas de orientação de vida que apontavam regras idênticas de conduta, independentemente do género e da proveniência dos indivíduos. Crises depressivas, sinais de exasperação, situações de indefinição pessoal traduzidas em desespero. Uma das mais surpreendentes descobertas foi perceber que as crises de meia-idade eram, então, já comuns não apenas em sociedades ocidentais, como nos Estados Unidos ou na Europa, mas também em países com modelos de vida distintos, exemplos do Japão ou da Índia.

Especialistas que seguiram a linha de Elliot Jaques estabeleceram que estas crises são sentidas, em média, a partir dos 45 anos, e podem prolongar-se até aos 65. “Do ponto de vista fisiológico, a menopausa e a andropausa continuam a ser os marcos. Contudo, a pressão social em termos laborais (aos 40 anos é-se velho) e a ditadura da imagem (a publicidade valoriza o corpo jovem, bonito e sem rugas) contribuem para uma consciência muito presente da noção do envelhecimento”, menciona Catarina Mexia. “Manifesta-se cada vez mais tarde porque também cada vez mais tarde se envelhece e cada vez mais tarde somos confrontados com a finitude da vida”, defende Lúcia Ferreira.

Sexo, tristeza e novidade

Além de situações depressivas, as crises de meia-idade são motores potenciais de casos de alcoolismo, tendem a alterar o corpo através do aumento substancial de peso, da perda súbita de cabelo, do acentuar do surgimento de rugas. “Outros sinais típicos evidentes são a exaustão, o tédio, a tristeza, a irritabilidade, a diminuição ou aumento significativo do desejo sexual, a energia desmedida, a procura constante da novidade”, assinala Catarina Mexia.

(Ilustração: MG/Notícias Magazine)

Grande parte destas evidências podem ser encontradas na personagem encarnada pelo ator Kevin Spacey no filme “American beauty” (“Beleza americana”), de 1999, que lhe valeu o Oscar de melhor ator. Com uma vida familiar instável e a passar por graves problemas no trabalho, Lester Burnham, o papel vivido por Spacey, é um homem que coloca em causa o seu passado e envereda por caminhos que fogem ao autocontrolo, designadamente quando passa a abusar do consumo de drogas e de álcool e se envolve com uma vizinha adolescente. Tudo isto enquanto relativiza o passado, o diminui e quase o achincalha. O tal período de autoavaliação existencial com potencial para conduzir a alterações significativas no processo vivencial, como defende Catarina Mexia. “Podem surgir comportamentos associados à procura de poder, de riqueza, de estatuto ou de popularidade, como a aquisição de determinados bens, a procura de relacionamentos amorosos, sexuais ou apenas de amizade com pessoas muito mais novas”, acrescenta, por sua vez, Rute Agulhas.

A religião, e a procura dela, essa, não é de certeza absoluta fonte de escape para quem sente este período agudo. O caminho espiritual acaba por ser substituído por outras fontes de compensação de perdas emocionais e físicas e é colocado de lado como solução para um percurso que só se vê de pedras. “A crença e a prática religiosa têm vindo a descer consideravelmente, sobretudo na Europa. E a idade também tem as suas implicações”, considera Joaquim Costa, investigador da Universidade do Minho com diversos trabalhos publicados na área da sociologia das religiões. “Não se pode dizer que as pessoas olham para a religião quando atravessam uma crise existencial, assim como também não se pode afirmar que se afastam dela quando tal situação pessoal se verifica”, adianta o professor. Uma espécie de teia contraditória, como tão contraditórias são as sensações inquietas da metade da vida transformada em pesadelo. De inquietação em inquietação, rumo a um destino desconhecido. Percurso intermédio de vida feito de dor emocional, sofrimento e descompensação. Porque o passado foi duro de deixar para trás e o futuro é pedra rija de encarar.