Covid: o admirável mundo das vacinas em tempo recorde

Seis vacinas, 22,8 milhões de doses e um calendário de três etapas para vacinar dez milhões de residentes em Portugal contra a covid-19

Chegar rápido, em segurança e não deixar nenhum país de fora é o objetivo da maior operação sanitária de sempre. Mas a cura só acontecerá se a população mundial aderir em massa à vacinação contra a covid-19.

Um ano após o novo coronavírus dar o primeiro sinal de que iria escalar para uma pandemia, a corrida da vacinação contra a covid-19 está a começar. As investigações aconteceram a uma velocidade sem precedentes, mas o que se segue agora é um desafio que a humanidade nunca enfrentou. Mais de dez mil milhões de doses pré-requisitadas terão de chegar depressa e em segurança a todas as partes do planeta, sem esquecer ninguém. Na Europa, o Reino Unido partiu à frente. No início da semana, antes mesmo do sinal verde das autoridades reguladoras dos medicamentos para avançar com a operação em grande escala, os britânicos começaram a ser vacinados, com a distribuição da vacina da aliança EUA-Alemanha Pfizer/BioNTech. A Agência Europeia de Medicamentos decidirá para o espaço comunitário até 29 de dezembro sobre o pedido da Pfizer e até 12 de janeiro sobre o da americana Moderna. Nos Estados Unidos, ambas poderão estar disponíveis nos próximos dias. E, na Rússia, a Sputnik V, a primeira a ser aprovada, já está a ser administrada.

Mais de 150 vacinas estão a ser desenvolvidas – 13 das quais na terceira e última fase. Pfizer/BioNTech, Moderna e AstraZeneca/Oxford destacaram-se ao completar esse circuito com elevadas taxas de eficácia. Houve um suspiro de alívio e, logo depois, o espanto perante mais uma revolução na ciência. A tecnologia do consórcio Pfizer/BioNTech e da Moderna abriu um novo caminho no combate aos vírus. As duas vacinas recorreram, pela primeira vez na História, ao RNA mensageiro (mRNA) para suportar a técnica de imunização.

O ácido ribonucleico mensageiro é a proteína que leva a informação do ADN ao interior do organismo. “Ao ser injetada no corpo, ela diz às células para replicar uma parte do genoma do SARS-CoV-2”, explica Pedro Simas, virologista do Instituto de Medicina Molecular. Só interessa destruir a spike – uma das quatro proteínas do vírus: “É ela que deixa o coronavírus entrar, copiar o nosso material genético e reproduzir-se”. As células imunológicas especializadas, ao absorverem o mRNA, recebem instruções para produzirem a proteína spike, tal como se estivéssemos infetados. Perante a súbita invasão, o sistema imunológico ativa os anticorpos, expulsando-a do organismo e trancando a porta.

Os outros fabricantes usaram adenovírus humanos – vírus que provocam infeções -, retirando-lhes a capacidade de se replicarem. É o caso da americana Johnson & Johnson, da Sputnik V ou da chinesa CanSino. “A AstraZeneca utilizou a cobertura de um adenovírus de chimpanzé”, conta o especialista. No interior foram colocadas informações genéticas do SARS-CoV-2 para que o sistema imunitário o reconheça e convoque o exército de anticorpos: “Qualquer uma destas técnicas revelou altas taxas de sucesso”. A Pfizer assegurou uma eficácia de 95%, o ensaio da Moderna atingiu os 94,4% e a eficiência média da britânica AstraZeneca/Oxford foi de 70%.

O xadrez dos prós e contras

Em qualquer das três, o grau de proteção é “muito elevado”, ressalva o virologista. Ao contrário das vacinas da gripe, as da Pfizer e da Moderna não são cultivadas em ovos, podendo por isso acelerar a produção. Em contrapartida, colocam grandes desafios. O armazenamento a longo prazo da vacina terá de acontecer a -70 °C, exigindo equipamento de refrigeração especializado. A da Moderna pode ser mantida a -20 °C até seis meses e num frigorífico normal durante 30 dias. Ainda assim, implicam mudanças nos protocolos de segurança. A da AstraZeneca conserva-se em ambientes dos -2 °C aos -8 °C.

Perante a desvantagem, a Pfizer e a Moderna apresentaram as suas caixas-fortes revestidas em alumínio e reabastecidas regularmente com gelo seco. Vigiadas por sensores, estes são os recipientes que prometem viagens e estadias sem sobressaltos para os frasquinhos ou seringas que saem das fábricas para os postos de vacinação. Tudo isso tem custos. A da AstraZeneca é a mais barata, entre três e quatro euros/dose. O preço da Moderna varia entre 27 e 31 euros. A meio do caminho está a Pfizer – entre 15,50 e 19,50 euros.

Saber qual a mais eficaz, neste momento, é impossível. “Acredito que elas serão complementares”, diz Pedro Simas. A vacina da Pfizer demonstrou, por exemplo, que os voluntários com diabetes, cancro, HIV, hepatite B e C responderam tão bem como os outros grupos. O teste, no entanto, excluiu quem tinha mais de 85 anos. Os ensaios da AstraZeneca mostraram a mesma eficácia para qualquer faixa etária. No caso da Moderna, há indícios de que protege a população idosa, mas o estudo carece de dados completos para conclusões seguras. Não há, portanto, respostas definitivas.

As grandes dúvidas

O que há, sim, são muitas interrogações. A começar pela eficácia a longo prazo. Existem “bons indícios” de que a proteção possa durar três a cinco meses, frisa Manuel Carmo Gomes, professor de Epidemiologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa: “Mais do que isso não se sabe, mas apostaria o meu dinheiro de que chegará a um ano”. Descobrir se funcionam na população mais idosa é outra pergunta que os reguladores estão a avaliar: “Os resultados detalhados são determinantes para conhecer a eficácia não só nas diferentes faixas etárias, como nos vários grupos de risco”.

E mesmo que os testes não tenham revelado consequências graves – além de cansaço, dores de cabeça ou musculares -, é preciso saber o que acontecerá após a vacinação à escala planetária. Essa é a razão por que as reguladoras exigem que os resultados sejam apresentados dois meses após o início dos ensaios: “É nas primeiras seis semanas que surgem os efeitos colaterais fracos, moderados e fortes”. Ninguém garante que não apareçam depois sequelas “raras ou muito raras” quando as vacinas já estiverem no mercado: “Mas isso é o que acontece com todos os medicamentos”.

As dúvidas sobre segurança e eficácia das vacinas ficarão ultrapassadas assim que o licenciamento for aprovado, asseguram os especialistas. “A única incógnita é a adesão da população para que ela possa ser administrada em larga escala”, adverte Filipe Froes, coordenador do gabinete de crise covid-19 da Ordem dos Médicos. A resposta determinará o sucesso da maior operação sanitária de sempre prestes a arrancar em todo o planeta. lm

Plano nacional de vacinação põe SNS à prova

Quatro semanas é o tempo previsto para montar a máquina. E o primeiro alívio poderá chegar na primavera.

Seis vacinas, 22,8 milhões de doses e um calendário de três etapas para vacinar dez milhões de residentes em Portugal contra a covid-19. A empreitada começa em janeiro e acabará em dezembro. Mas o plano nacional de vacinação pode mudar a todo o momento. A meio desta semana, aliás, a “task force” criada pelo Governo reúne-se para rever a estratégia. A única certeza é que as vacinas vão chegar a conta-gotas. O que, no início, até pode ser uma vantagem. Desde logo dá tempo para montar a operação.

“Temos, em teoria, quatro semanas para preparar a logística”, defende Rui Nogueira, presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar. Não é “muito difícil”, tendo em conta que o maior grupo de risco da primeira fase representa 400 mil pessoas. “Não são mais do que 40 inoculações em cerca de 1 200 postos.” Em dez dias a tarefa estará concluída. O que se segue é o que irá por à prova o SNS.

O número aumenta subitamente para quatro vezes mais. A partir de março ou abril, a máquina terá de estar afinada com reforço de médicos, enfermeiros, auxiliares e administrativos para assegurar a marcação, o acompanhamento e a administração das vacinas aos 2,8 milhões convocados a seguir: “Talvez seja útil, nessa fase, alargar a rede não só às farmácias, como às misericórdias e aos bombeiros com capacidade para concentrar os recursos em grandes áreas”.

Para já, o objetivo é aproveitar “o que existe, o que está rotinizado e o que funciona”, explica Francisco Ramos, coordenador da “task force” do plano nacional, admitindo que as farmácias possam entrar na engrenagem na segunda fase. O que ainda não foi equacionado é alargar a rede a outras entidades. “As vacinas aguentam uma semana no frigorífico, o que está dentro das capacidades dos centros de saúde”, considera o especialista, ressalvando, no entanto, que a estratégia está “em constante alteração”.

Os primeiros efeitos poderão sentir-se a partir da primavera. “Quando os grupos de risco estiverem protegidos, tornar-se-á tudo mais fácil”, acredita o virologista Pedro Simas. Com as taxas de eficácia a rondar os 90%, a proteção entre os doentes graves ficará “de imediato” refletida na redução “drástica” dos internamentos: “Se no final de junho acrescentarmos os quase três milhões, os principais problemas desaparecem”.

As previsões estão, naturalmente, dependentes da chegada atempada das doses, mas isso não significa baixar a guarda. A imunidade de grupo só chegará com a terceira fase, quando 60 a 70% da população estiver vacinada, adverte Carlos Carmo Gomes, um dos epidemiologistas ouvidos pelo Governo no combate à pandemia: “A proteção generalizada é o que vai impedir o vírus de circular”.

Embora as taxas de eficiência das vacinas sejam altas, é preciso não esquecer a franja da população que não responde ao tratamento. Uma eficácia de 95%, aliás, significa que 5% está fora dessa equação: “Se a maioria estiver vacinada, o risco de a minoria ser infetada é muito mais baixo”. Proteger os vulneráveis sempre foi, afinal, o único trunfo para vencer o coronavírus.

Reino Unido
É o primeiro país ocidental a avançar com o processo de imunização. A vacinação arrancou no dia 8, envolvendo, na primeira fase, a administração de 800 mil doses de um total de 40 milhões encomendadas ao consórcio Pfizer/BioNTech. O transporte dos lotes é assegurado por aviões militares a fim de evitar congestionamentos nos portos afetados pelo Brexit. Ao contrário de outros países, os profissionais de saúde ficaram de fora nesta etapa. A prioridade são funcionários e utentes dos centros de dia e os idosos com mais de 80 anos.

Alemanha
Encomendou 300 milhões de doses de diferentes fornecedores, das quais uma centena de milhão à Pfizer/BioNTech. Os lotes, à medida que chegarem, serão distribuídos pelos 60 centros espalhados pelo país, incluindo armazéns, pistas de patinagem ou ainda os aeroportos Tempelhof e Tegel, que, em Berlim, estão inativos devido à quebra no setor da aviação. Idosos, doentes crónicos, pessoal de saúde e trabalhadores considerados essenciais são os grupos prioritários do programa de vacinação que deverá arrancar em janeiro.

Espanha
O plano espanhol terá capacidade para 80 milhões de imunizações, correspondente a 140 milhões de doses, ultrapassando largamente a população do país, de pouco mais de 47 milhões. A vacinação será feita em 13 mil ambulatórios e centros de saúde. Na primeira fase, entre janeiro e março, privilegiar-se-á um grupo de 2,5 milhões de pessoas, composto por idosos em lares e quem lá trabalha, pessoal da saúde e portadores de deficiência.

Estados Unidos
Assim que cada uma das vacinas em desenvolvimento receba luz verde da FDA (Food and Drug Administration), o seu uso pode começar em 24 horas. Os governadores de cada estado deverão decidir, nos próximos dias, quais os grupos prioritários. Tal decisão deverá ser feita com base nas recomendações do Center for Desease Control, que, no dia 1 de dezembro, elegeu os profissionais de saúde (21 milhões) e os residentes em lares e unidades de cuidados continuados (dois milhões).