Cortaste-me o pescoço mas, já agora, porquê?
Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.
Levantou-se e avançou para mostrar ao juiz o sítio da facada. Pôs a cabeça de lado e apresentou o pescoço como peça de talho.
– É essa aí?
– É esta cicatriz aqui, confirmou o jovem.
Na linha do corte, a pele rósea pulsava aos solavancos. Lá dentro, golfões de sangue venoso, vermelho escuro, desciam do cérebro rumo ao oxigénio dos pulmões, à musculosa bomba do coração.
Cortaram a jugular a Hugo. Os latinos antigos chamavam jugulator ao degolador, ao matador, ao assassino. Hugo sobreviveu. Nunca mais viu Raul. Aliás, também quase não o viu quando este quase o matou, na cozinha da casa, com uma faca de cozinha. Ao menino e ao borracho põe Deus a mão por baixo.
– Estivemos a beber, a beber, a beber.
Discutiram sobre o quê? Zangaram-se com quê? Não consta. Meses depois, Hugo foi preso por drogas e álcool, a vida dele toda feita num sarilho. Veio da prisão contar a madrugada em que foi degolado como um porco.
– Quando foi à polícia e disse o que é que se passou, identificou a pessoa?
– Sim, sim, identifiquei a pessoa.
– Chegou à fala mais alguma vez com esta pessoa depois desta situação?
– Não.
A advogada de defesa de Raul achava-lhe a memória muito fraca.
– Senhor Hugo, ao descrever o que se passou naquela noite, o senhor disse que beberam, beberam, beberam… Estavam sozinhos os dois, ou havia mais pessoas lá em casa?
– Não, estávamos sozinhos.
– E a discussão que os senhores tiveram, houve alguma agressão também da sua parte ao senhor Raul?
– Não. Não houve.
– ‘Tá bem… Beberam muito, discutiram, e só um de vocês é que tomou a iniciativa… na sua versão… o senhor Raul, que lhe deu uma facada. E o senhor não reagiu…
– Ele já disse que não, sotora, cortou o juiz.
– Está bem.
– Vi sangue, explicou Hugo, como se falasse do pescoço de outra pessoa, não do seu.
– E foi pelo seu próprio pé para a esquadra?
– Sim, sim. Também a esquadra não é muito longe.
O juiz olhava o processo.
– Diga-me só uma coisa. O senhor sabe se depois… como é que foi apreendida a faca, não sabe?
– Não. Como nunca mais tive contacto com esse senhor…
– O senhor tem ideia de que foi à esquadra, queixou-se na altura, a polícia chamou a assistência médica, que o levou ao hospital de Santa Maria. E não voltou a casa do senhor?
– Não.
– Já disse que era uma faca de cozinha, não é isso?
– Sim, sim.
– Pronto, está tudo. Pode então ir embora.
Hugo pôs as mãos atrás das costas, como se fosse passear ao jardim, e os dois guardas prisionais fecharam-lhe as algemas nos pulsos, em estalidos de roda dentada. A procuradora disse nas alegações:
– Os factos constantes da acusação ficaram demonstrados. O sr. Raul cometeu o crime de que vem acusado, o crime de ofensa à integridade física qualificada. Na data e hora indicada, atingiu o sr. Hugo, desferiu-lhe uma facada no pescoço. Essa facada atingiu-o na zona cervical, e dos elementos clínicos retira-se ainda que atingiu a veia jugular externa e interna. Houve uma hemorragia abundante. O senhor, tal como explicou, de imediato saiu do sítio em que se encontrava para ir à PSP, de onde foram chamados os meios de socorros. E só precisamente com a intervenção dos médicos é que este senhor não perdeu a vida, os médicos que rapidamente o socorreram, dado que o local em que foi atingido… Houve perigo para a vida. Porque foi rapidamente atendido, não faleceu.
A beber, a beber, a beber. Se tivesse morrido, nem saberia explicar porquê.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)