As eleições presidenciais americanas de 3 de novembro não têm comparação com nada. Pela primeira vez, um candidato (para mais, presidente em funções em busca da reeleição) ameaça não reconhecer os resultados, colocando de parte a aceitação de uma derrota que, a três semanas da eleição, parece ser o cenário mais provável. Joe Biden, favorito à vitória, beneficia da vontade maioritária do eleitorado, vertida em todas as sondagens, de travar um segundo mandato de um presidente que deixou a sociedade americana à imagem do que tem sido a sua Administração: um caos. Mas o candidato democrata tem, até à confirmação do seu triunfo, vários desafios a vencer. Será que o facto de vir a ser, de longe, o presidente mais velho da história americana vai contar no julgamento do eleitorado?
1.ª etapa:
OS DEBATES
Faltam dois debates e podem contar muito. O próximo (15 de outubro, em Miami, Florida) esteve para ser anulado, ou pelo menos adiado, quando se soube, pelo início de outubro, que Donald Trump estava infetado com covid-19. Mas ainda antes dessa notícia já havia teses a defender a sua anulação, tão mau tinha sido o primeiro duelo Trump/Biden, em Cleveland, Ohio. O desrespeito completo pelas regras fez de Donald um perdedor automático dessa primeira peleja: com exceção dos fanáticos, as pessoas não aderem a tamanha agressividade sem razão. Mesmo nesta era trumpiana, que faz do “bully” e do insulto a sua base argumentativa. Biden terá que mostrar-se num plano mais elevado do que o que revelou no debate de estreia. Já sabia que com Trump não podia contar com lealdade – teria que ter evitado deixar-se arrastar pela lama. Por muito difícil que isso seja. Os dados pós primeiro debate revelam que Biden aumentou a vantagem que já tinha. Mas convém não menosprezar a notável capacidade que o atual presidente dos EUA, recandidato republicano, tem de renascer das cinzas. Não é de excluir um Trump mais eficaz, a tentar virar o jogo, nos debates que restam. Já se decretou demasiadas vezes a morte política de Donald Trump para que se tome como certa nova sentença do género. Por muito plausível que ela nos pareça.
2.ª etapa:
A doença de Trump
Os 74 anos e o peso a mais colocaram Donald Trump como o presidente dos EUA em maior risco em várias décadas, no momento em que contraiu o novo coronavírus. Um tratamento médico super VIP, baseado nas terapias mais avançadas e ainda longe de poderem ser massificadas, permitiu uma recuperação rápida e artificialmente eficaz: quem mais poderia ter tido essa sorte? O presidente que ignorou, desdenhou, escondeu e desvalorizou a pandemia foi vítima pessoal dela – numa espécie de confirmação em forma de justiça poética de que quase tudo na gestão da ameaça foi errado por parte do atual presidente dos EUA. Trump ainda tentou reverter a narrativa a seu favor – como faz sempre. Apelou a uma ideia messiânica (“Isto parece um milagre, a sério, parece mesmo.”), fez papel de super-herói que conseguiu vencer o vírus de forma espetacular. Ok, pode passar para os tais 30 e tal por cento que consomem tudo o que seja Trump (nem que fosse dar um tiro a alguém na 5.ª Avenida). Mas…no país com 220 mil mortos por covid, o que a maior parte dos eleitores pensará de ter um presidente que diz que só no hospital ficou a perceber o que era o novo coronavírus e que “não se deve ter medo” dele?
3.ª etapa:
A vitalidade de Biden
A idade de Biden é um tema que não larga o candidato democrata. Mesmo tendo Joe feito uma boa “performance” no Town Hall na CNN com Andersen Cooper (altura em que soube fazer uma distinção forte entre ser um candidato de Scranton, Pensilvânia, coração da América real, e Trump, o candidato de “Park Avenue”, dos privilegiados). Mesmo tendo ganho o debate a um Trump em estilo touro enraivecido e sem respeito pelas regras. Joe não é brilhante. Não exala juventude. Não é eloquente (nunca foi e isso não tem a ver com a idade; poderá, até, vir a ser o primeiro presidente dos EUA que gagueja ligeiramente). Mas a verdade é que, até agora pelo menos, não há evidência alguma que aponte que não esteja em condições físicas ou mentais de ser presidente. Passou pelo duro processo de primárias e ganhou – derrotando candidatos 30 ou 40 anos mais novos e muito articulados, como Beto O’Rourke e Pete Buttigieg. Conseguirá Joe afastar dos eleitores o fantasma da idade avançada? Ah! Já agora: sabem qual é a diferença de idades entre Trump e Biden? Apenas três anos. “No big deal”.
4.ª etapa:
Apresentar Kamala ao grande palco mundial
Raras vezes na história das corridas presidenciais nos EUA assistimos a uma tão grande importância de uma escolha para vice-presidente como a que Joe Biden teve que fazer. Com 78 anos à data da tomada de posse, Joe teria que sinalizar uma opção segura, de alguém com força e capacidade políticas claramente demonstradas. Kamala Harris é, de modo reconhecido pelos seus pares, um dos mais competentes e qualificados membros do Senado dos EUA. Mas isso, por si só, não chega para a tornar alguém com apelo nacional na hora do voto. Um dos pontos em que a campanha Biden estará a falhar é no da escassa exposição de Kamala para o palco principal da luta com Trump. Joe devia ter a coragem de assumir que conta vir a ser um presidente de um só mandato e que tem a questão da nomeação presidencial democrata para 2024 resolvida, com o apoio à sua número dois. Se não fizer isso nos próximos dias, depois pode ser tarde.
5.ª etapa:
O novo Sul
Antecipar quem pode ganhar a eleição começa por ser não cair na tentação de olhar em demasia para as sondagens nacionais (embora a tendência e a diferença nos possam dar algumas indicações interessantes) e perceber o que pode acontecer nos estados eventualmente decisivos. Neste estranho ano de 2020, o mapa dos “swing states”, até agora cingido a um leque de sete a dez estados, parece ter-se alargado a dois territórios no Sul que, durante décadas, foram bastiões republicanos: o Arizona e a Geórgia. No Arizona, Biden tem mantido vantagens consistentes (é raro ver uma sondagem lá a dar Trump na frente); a Geórgia parecia campo sólido para Trump, mas nos últimos meses as coisas foram mudando – e agora é estado em empate técnico. O próprio Texas mostra contradição curiosa: a totalidade do estado permanece republicana, mas só mesmo pelo enorme avanço nos condados rurais. As grandes cidades do Texas são democratas: foram-no com Hillary Clinton em 2016 (apesar de Trump ter ganho o estado por nove pontos), voltaram a sê-lo com Beto O’Rourke na corrida ao Senado, em 2018 (e, desta vez, o republicano Ted Cruz só ganhou por 1,5%). O novo Sul pode ser a surpresa do mapa eleitoral 2020.
6.ª etapa:
A “Rust belt”
Quem ganhar esta etapa será presidente. Ponto. Não se vê forma de Biden não ganhar o Colégio Eleitoral se vencer no Wisconsin, no Michigan e na Pensilvânia, três estados habitualmente democratas mas que Trump inesperadamente roubou a Hillary em 2016. O “Buy American” de Biden, como mensagem económica direcionada a esse eleitorado “blue-collar”, branco e pouco qualificado, parece estar a resultar. Mas a narrativa Trump conseguiu deixar raízes que podem voltar a brotar no momento decisivo. E se Trump conseguir, à última, conservar a “Rust Belt” fica com a reeleição muito mais facilitada. Não garantida, mas facilitada.
7.ª etapa:
A Florida
O “swing state” dos “swing states”. Porque tem fortes características de ambos os tons partidários. Tem muitos brancos ricos que adoram cortes fiscais – e isso favorece Trump. Mas tem muitos latinos – e isso beneficia Biden. E até nisso é um estado especial: os hispânicos são, geralmente, mais democratas do que republicanos, mas muitos dos que vivem na Florida são cubanos que fugiram há décadas ao “socialismo de Fidel Castro”. São, por isso, tendencialmente mais à Direita: e muito propensos à conversa “fake” da campanha Trump de que Joe Biden está dominado pela Esquerda radical marxista. Não está. É, até, bastante moderado e centrista. Mas quem decide a eleição não é a verdade factual. São as convicções de quem vota.
META:
20 JANEIRO DE 2021
Desengane-se quem acha que esta longa corrida vai terminar na noite de 3 de novembro. Isso era dantes: quando a política americana produzir candidatos presidenciais sensatos e confiáveis. Donald Trump não vai aceitar uma possível derrota.
O que fará?
Pode tentar uma declaração de vitória antecipada, ignorando os votos por correspondência (que deverão dar grande vantagem a Biden) e aproveitando as contagens parciais do voto presencial, que possivelmente indicarão ligeiro avanço a Trump. Pode criar uma narrativa alternativa com histórias mirabolantes de votos fraudulentos – como já fez no primeiro debate.
Mas Donald é só presidente, não é a Comissão Eleitoral, certo? Não é bem assim. Trump sabe que tem o poder da agitação. Se criar na sua base, composta por milhões de fiéis seguidores, a convicção de foi roubada, o carrossel de acontecimentos a partir da noite de 3 de novembro é manifestamente imprevisível. Será o grande teste à resistência do sistema. Os EUA vão ter mesmo que mostrar que as suas instituições (todas: exército, tribunais, Congresso, Supremo) não abalaram com quatro anos de trumpismo – e serão capazes de garantir o essencial: assegurar que quem vier a ganhar a eleição presidencial, depois de todos os votos devidamente contados, tomará posse a 20 de janeiro de 2021.
Pela primeira vez na história da democracia de referência do Mundo ocidental, não dá para sentenciar com total certeza que tudo vai correr exatamente assim.
Escolher um “bully” egocêntrico com devaneios ditatoriais para presidente, como os eleitores americanos entenderam fazer há quatro anos, tem consequências. Muitos acharam que não seria bem assim. Mas está à vista que se enganaram. E muito.
* autor de quatro livros sobre presidências americanas