Correr grávida? Por que não?

Tuxa Negri foi mãe em setembro e juntou a nova paixão à que a move há anos: a corrida. Correu até ao fim da gestação, participou em provas e chegou à final da Taça de Portugal de Trail, na Ilha Graciosa, Açores.

A luz que faz sobressair o vermelho das pás do moinho contra aquele azul a acordar que só existe nos Açores é a que vem do espelho de mar emoldurado pelo portinho da Praia. É cedo, muito cedo, pouco menos de nove da manhã num sábado que é domingo, porque estamos na segunda ilha mais pequena do arquipélago e os sábados são tão indolentes quanto os domingos e nove de uma manhã dominical é terrivelmente cedo. O bruaá das gentes sobrepõe-se ao da música e nenhum deles parece incomodar Noah. Porque a hora é nobre. Tem dois meses e meio de vida na Terra que a mãe, Tuxa, lhe mostra como gosta de vê-la. Por montes e vales, com lama se for caso, e com suor a escorrer. Agora, vê-a no enquadramento do colo dela.

Faltam minutos, poucos, para aquele povo que ali está em frente ao moinho celebrizado por um concurso televisivo arrancar para o desafio dos desafios, a disputa da Taça de Portugal de Trail, os melhores entre os melhores de um ano de quilómetros pelo relevo deste nosso jardim. A hora é nobre porque Noah tem fome. Sem qualquer sombra de embaraço, Tuxa sobe a camisola do equipamento e presenteia-o com um farto pequeno-almoço, no mais perfeito retrato de simplicidade. Ela de saia de treino e camisola de equipa, ele de fato outonal e gorro, sedento. Até faltarem 30 segundos, até estarem todos já na boxe de partida, atrás do inconfundível insuflável da Azores Trail Run, azul como aquele do céu açoriano, azul como os olhos de ambos, mãe e filho. Num ápice, Tuxa passa Noah para os braços de João, encosta os lábios à testa do menino, uma vez e depois outra, e mais uma, e arranca para alinhar na partida quando já todos partiram. Vai correr 40 quilómetros e uns pós.

Tuxa acarinha Noah, num abastecimento da Taça de Trail na freguesia da Luz, Ilha Graciosa.

Tuxa é Tuxa Negri, 29 anos, atleta conhecida dos circuitos de corrida de montanha e do triatlo nacional, treinadora de profissão, vegan e novel mãe. E Noah nisto tudo? “Está ótimo, está grande, pesa bastante até”, sorri calmamente Tuxa, na véspera da prova, no afã do levantamento do kit de atleta. E está, como ela, a disputar este campeonato, porque andou nele desde cedo, até ao fim do estágio no ventre dela. Porque ajudou-a a conquistar o direito de estar ali. “Para estar na final participei em três provas, já grávida, ao longo de 2019”, escreveu no seu perfil de Instagram, depois de recolher a merecida medalha. Conseguiu o 19.º posto da geral feminina, ao cabo de 5.41 horas de trilhos e de paragens para satisfazer Noah, no segundo e no terceiro abastecimento. Uma vitória maior do que o primeiro lugar no Trilho dos Dinossauros, na Lourinhã, do que o segundo nos Trilhos de Bellas, em Sintra, ou no Trail do Texugo, no Redondo. Ou do que o 11.º, já Noah era, no Trilho dos Arneiros, na Azambuja. Porque o Windmills Trail com que a Azores Trail Run acolheu a taça foi maior do que todas elas, quase uma maratona quando se tem um petiz que “mama em livre demanda”. Que é como quem diz, quando rói o bicho.

Faltam minutos para o arranque da Taça de Portugal de Trail, na Praia da Graciosa. Noah mamou até 30 segundos antes do tiro da partida

Correr grávida? Por que não? “Gosto de correr, faz-me sentir bem e sabia que o exercício só ia fazer bem a mim e a ele.”

Mas Tuxa não arrancou sozinha para este desafio. “Não tinha medo”, nunca teve. Porque tinha um anjo da guarda, a obstetra Mariana Torres. Sabia que podia continuar a fazer a vida normal. E isso implicava não só treinar, ainda que menos, como alimentar-se como decidiu fazê-lo aos 25 anos, quando entendeu que “não fazia sentido comer animais”.

Como todas as grávidas, Tuxa fez suplementação e teve que ter os cuidados inerentes à toxoplasmose. Como reduziu o treino, chegou mesmo a emagrecer, porque perdeu a fome. No final, pode dizer-se que teve a gravidez ideal, com sete quilos engordados e logo perdidos no parto, sem problemas a assinalar.

A atleta em Cerveira, numa das várias provas que cumpriu ao longo da gravidez. Tuxa reduziu a distância dos desafios, mas ainda conseguiu alguns pódios

Quanto ao exercício, Mariana Torres é taxativa: “Na gravidez tem inúmeras vantagens, quer para quem já o fazia anteriormente, quer para quem tinha uma vida sedentária”. Ainda que não se refira concretamente ao caso de Tuxa, a obstetra adianta que o desporto tem que ser, obviamente, adaptado – até porque a barriga a crescer altera o centro de gravidade do corpo, cujas articulações ficam “mais móveis”, e “diminui a capacidade pulmonar” -, mas “pode e deve acontecer com regularidade durante a gravidez toda, mesmo nas últimas semanas”. E, recorda, não é ela quem o diz, mas todas as sociedades profissionais e, até, a Direção-Geral da Saúde, no seu Programa para a Vigilância da Gravidez de Baixo Risco. “São poucas as situações que impedem a prática de exercício físico durante a gravidez”, garante a médica, enunciando doenças prévias, pulmonares ou cardíacas, por exemplo.

Tuxa reduziu a intensidade e a ousadia dos desafios. “Provas até 20 quilómetros, umas duas horas”, diz-nos. Evitando “desportos com contacto, com risco significativo de traumatismo, de hipotermia e de desidratação”, o perigo de um aborto ou de um parto prematuro “é um mito que infelizmente ainda perpetua na nossa sociedade”, completa Mariana Torres. É claro que um problema inesperado, como uma hemorragia, deve fazer parar. Mas o facto de uma grávida ser atleta de alta competição “tranquiliza” a médica, porque a probabilidade de surgirem complicações diminui.

Vantagens? As óbvias do exercício para toda a gente, e para a grávida a redução do risco de diabetes gestacional e o melhor controlo do ganho de peso, além da manutenção da “mobilidade, equilíbrio e agilidade” e a consequente diminuição das tradicionais dores musculoesqueléticas.

19.º lugar da geral e a melhor medalha: o filho

Noah nasceu de parto normal e, dez dias volvidos, Tuxa estava de volta ao suor. A corrida, essa, só arrancou três semanas depois. A recuperação, admite, tem sido dura, pelo esforço que o exercício, outrora normal, agora exige. E é natural. Mas aí, mais uma vez, avisa a médica, o exercício é o melhor remédio, porque até nos sintomas de depressão pós-parto influi, reduzindo os riscos. Além de ajudar a emagrecer. Mas sempre com a ressalva do acompanhamento especializado, sobretudo em atletas de alta competição.

Ao lado dela, João Martinho, pai babado e babá (“Faz parte!”), atleta de triatlo como ela, garante que nunca receou dramas, “de maneira nenhuma”, porque “foi sempre tudo saudável, sempre tudo aprovado pela obstetra” e as análises não podiam ser melhores.

Luz. Agora, é o nome de freguesia, o sol já está alto, ainda é de manhã. João, de marsúpio ao peito, espreita Noah no sono dos justos através da janela do carro. Diz que dormiu desde que largou a mama da mãe, vai para umas duas horas e tal. Ali são os 22 quilómetros de prova, o limite mínimo que Tuxa tinha estabelecido. Não sabia se ia conseguir fazer a prova toda, porque seria como se Noah mandasse. E meia prova era meia Graciosa debaixo dos pés e a mais bela parte dela engolida com a voracidade de quem olha à volta. Meia prova era a originalidade de descer a uma cratera vulcânica, penetrar numa paisagem verdejante e húmida, e descer ainda mais, às entranhas da terra, ao sítio onde o enxofre nos diz, borbulhando, de que fibra se fazem os Açores. Tuxa olhou a imensidão da gruta, estarreceu-se, espreitou o poço a ferver, lá em baixo. E subiu. E contornou a depressão terrestre, por trilhos feitos túneis verdes, na enormidade de corrermos no ventre da vegetação.

Até que surge no cimo da rua, pernas manchadas de lama, suor a moldar-lhe o rosto em finos fios da palha dourada, escapados da trança rebelde. João já acordou Noah, ela senta-se na fria sala de abastecimento, ergue a camisola e abastece o menino. Ela virá depois. Ele anui, solícito. “Vais continuar?” Sim, vai. No final, resumirá: o caminho era demasiado belo para cortá-lo a meio. E ele estava ótimo, mais cheio de sono que de outra coisa, na verdade, viajar até às ilhas, mormente as mais pequenas, é um esticão para qualquer um, quanto mais para três tostões de gente. E o terceiro abastecimento era já ali, a dez quilómetros. E o fim a seguir.

Noah mamaria mais uma vez, com a tranquilidade estudada de que nada daquilo que o corpo produz durante o esforço intenso vai alterar a qualidade do leite que Tuxa lhe quer continuar a oferecer, suada, feliz. “A minha ideia era ir devagarinho e ver até onde conseguia seguir.” Foi até ao fim, depois de subir 1 800 metros e descer outros tantos, depois de uma maratona de montanha como só os Açores sabem oferecer, até ao outro lado da Praia, ter com a luz matizada de uma tarde açoriana enfiada numa curta praça com igreja. E com o filho. A medalha de Tuxa.

O que dizem os especialistas


Seguem conselhos do Colégio Americano de Obstetras e Ginecologistas.

É seguro?
Se a grávida é saudável e a gravidez normal, é seguro começar ou continuar a atividade física, que não aumenta o risco de aborto, parto prematuro ou nascimento de baixo peso. Mas tudo tem de ser avaliado com o médico e parado ao mínimo sinal (hemorragia, corrimento, contrações, tontura, falta de ar, dor no peito e de cabeça, fadiga muscular…).

Contraindicações
Alguns tipos de doença cardíaca ou pulmonar; insuficiência cervical, gravidez gemelar; placenta prévia; trabalho de parto prematuro ou rebentamento das águas durante o exercício; pré-eclampsia ou tensão alta decorrente da gravidez; anemia aguda.

Benefícios
Reduz as dores lombares, as obstipações e os riscos de diabetes gestacional, pré-eclampsia e parto por cesariana; ajuda a que o ganho de peso seja saudável; melhora as condições físicas e fortalece coração e veias; ajuda a perder peso após o parto.

Precauções
Manter uma atividade de intensidade moderada; beber muita água; usar roupa folgada; evitar desportos com contacto, propícios a quedas e em altitude.