
Anabela e Rui foram aos Açores buscar Rafael, o menino que saiu dos seus corações. Rita e Kingongo conheceram-se em Ílhavo e casaram-se três vezes. Janice agarrou-se a Maria José , ao Alfredo e à Matilde para toda a vida. A família Gil é uma mistura bonita e entrou num filme. Nelson e Ai-Lin entrecruzam as suas origens nos seus dias. Relações multiculturais, ligações que não se explicam.
Anabela Pedrosa e Rui Valente esperaram seis anos e meio pelo Rafael, menino nascido nos Açores com raízes cabo-verdianas. No último sábado de março de 2017 aterraram na ilha, esperaram até segunda-feira para se fazerem à estrada e conhecerem o seu filho numa instituição de freiras. Foram dois dias de ansiedades à flor da pele, corações a bater tanto e tão forte. O amor foi imediato, tão instantâneo que não se explica. Como se não pudesse ser de outra forma, como se estivesse escrito em algum lugar. “Vimos uma carinha a espreitar pela porta de vidro e dissemos, está ali o Rafael, e ele correu para a porta e disse, é o meu pai e a minha mãe. Demos um beijinho, um abraço, pegámos nele ao colo, e ele deu logo a mão ao pai”, recorda Anabela, funcionária numa fábrica de confeções. “Foi amor à primeira vista, de parte a parte. É o nosso menino”, acrescenta Rui. Tiveram autorização para passar o dia com o filho e correu tão bem que Rafael já não os queria largar. Houve choro e lágrimas nessa despedida, mas tinha de ser.
No dia seguinte, Anabela e Rui voltaram à instituição e Rafael esperava-os à janela com uma mochila maior do que ele. Não tinha dormido, queria a mãe e o pai. “O maior medo na adaptação era esse encontro, o medo dele nos rejeitar”, diz Anabela. Não aconteceu, bem pelo contrário: Rafael nem olhou para trás. “Foi um amor instantâneo por nós.” Uma semana depois, regresso ao continente com o Rafael pela mão. A viagem foi atribulada, mau tempo nos Açores, voo a partir do Faial, aterragem em Lisboa, percalços no trajeto até ao Norte. Primeiro comboio perdido, um comboio de mercadorias descarrila em Coimbra, mudança de transporte de comboio para autocarro, de autocarro novamente para comboio. E a família à espera na estação de Campanhã, no Porto. “Quando chegámos agarrou-se ao pescoço das tias como se as conhecesse. Não tem explicação.” Rafael chegou e fez quatro anos. Sentia a falta do pai quando ele ia trabalhar para longe, a mãe explicava-lhe que não tinha sido abandonado, que nunca iria ficar só, que aquele amor seria para toda a vida.
“É um amor e uma entrega total. Nunca esperei que fosse tão bom, o Rafael é muito meiguinho, enche a boca quando fala da mãe e do pai”, conta Anabela. A adaptação teve os seus altos e baixos, a educadora de infância Lídia, primeiro, e agora a professora Cecília foram e são incansáveis. “É a única criança de cor e sentia-se deslocada.” Contaram-se histórias, deram-se explicações, as perguntas não ficavam sem respostas. Anabela era abordada pelos colegas da escola de Rafael que viam que alguma coisa não batia certo. E ela lá lhes explicava o que se tinha passado de uma forma tão simples quanto arrebatadora. “O Rafael não saiu da minha barriga, o Rafael saiu do meu coração. O Rafael é meu filho.”

(Foto: André Rolo/Global Imagens)
Anabela e Rui sabiam que a sua hora ia chegar. No processo de adoção, pediram uma criança saudável com três a seis anos de idade. “Não pusemos entraves a nada, uma criança de qualquer cor, não tínhamos esse preconceito, era indiferente.” Estiveram 15 anos casados, sem filhos. Numa tarde de trabalho, quando lhe ligaram da Segurança Social, e quando pensava que seria um telefonema para marcar mais uma reunião, Anabela chorou de felicidade. Do outro lado, disseram-lhe que havia novidades para si, ficou calada, começou a chorar, a irmã a chorar consigo, e a frase saiu-lhe das entranhas: “Eu vou ter um menino”. As colegas choraram com ela. “Cento e tal mulheres, na fábrica, a chorarem, a sentirem a minha felicidade, a minha ansiedade.” Rui estava em Bruxelas a trabalhar, recebeu o telefonema e ficou sem palavras o resto do dia. O chefe perguntou-lhe o que tinha acontecido, se a sua mulher estava grávida. “Não está, mas é como se estivesse”, respondeu-lhe.
Valeu tanto a pena, superou todas as expectativas, e a casa encheu-se de mais amor. Anabela e Rui estão felizes. “Dissemos sim apenas a uma história de vida de uma criança, não precisámos de pensar, o Rafael já é o Rafael, já é o meu filho. A paixão foi imediata, até antes de vermos uma foto”, lembra Anabela.
A vida deu muitas voltas, muitos quilómetros, várias viagens, e o dedo do destino, se existir. Rita Almeida e Kingongo José, nascido no Congo, com alguns anos de morada em Angola, conheceram-se no antigo Café Charlot, em Ílhavo. Paula, amiga de Rita, tratou das apresentações munida de fortes suspeitas de que a coisa iria correr bem. Rita com ar radical, cabelo pintado de várias cores, destoava na paisagem, era conhecida por gostar do que era diferente e não encaixava no que era habitual. Kingongo estava a trabalhar numa obra, para uma empresa de construção civil do Porto, ficava por ali durante a semana. Conheceram-se, apaixonaram-se, tiveram uma filha, e casaram-se três vezes: no consulado, no registo civil, na igreja. Estão juntos há 25 anos. Há 20 nasceu a filha Inês que estuda Gerontologia Social em Coimbra.

(Foto: Maria João Gala/Global Imagens)
Rita e Kingongo, já com rastas no cabelo, ficaram à conversa nesse primeiro encontro. Algum tempo depois, na festa dos 35 anos dela, ele pagou as bebidas sem ela dar conta. E o amor foi acontecendo. Ela ficou fascinada com a calma dele. Ele gostou dela igual a si própria. “A calma dele veio na altura em que eu estava a precisar de calma.” Rita, auxiliar de ação educativa, e Kingongo, agora funcionário numa empresa de reciclagem de resíduos urbanos, entrelaçam culturas. Rita gosta da comida feita pelo marido com sabores de outro continente, das danças africanas, das músicas, do reggae, dos tecidos coloridos de África, das roupas de padrões quentes e étnicos de várias partes do Mundo. Kingongo também. Chegou a vestir a pele de Bob Marley numa peça apresentada no Teatro Aveirense, foi bailarino de primeira linha de quizomba, adora andar descalço, sentir o chão nos pés. “Sou de lá.” Em casa, come tudo à mão. “Não é fácil limpar este cérebro”, confessa. São 63 anos de vida, 29 desde que chegou a Portugal e nunca mais voltou. Hão de voltar todos, em família. A filha Inês quer muito que isso aconteça.
O que faz uma família?
Janice tem cinco anos, é guineense, olho vivo, brinca com bonecas que, de vez em quando, ata com um pano atrás das costas, anda com potes de água para trás e para a frente e faz papas quando apanha papel higiénico. Gosta de comida consistente e bem apurada e ouve música do seu país. É uma casa cheia, um raio de sol, menina esperta, doce e meiga. Pede colo ao pai, agarra-se ao pescoço da mãe, salta para as cavalitas do pai, cola-se ao corpo da mãe quando a vergonha se instala, mas sempre atenta ao que se passa à sua volta. Sempre sintonizada.
Janice chegou a Portugal no calor de agosto de 2018 para ser operada ao coração, sofre de cardiopatia, no Hospital de São João, no Porto, ao abrigo de evacuação médica, um dos projetos da Missão Saúde para a Humanidade, Organização Não Governamental para o Desenvolvimento (ONGD), com sede na Universidade de Aveiro, criada em 2009. Janice precisou de uma nova cirurgia em janeiro de 2019. Maria José Ferreira é presidente da ONGD que tem vários projetos de ajuda humanitária, cooperação em saúde, apadrinhamentos, apoios a orfanatos e escolas, e evacuações médicas de crianças e jovens, em parceria com várias instituições de lá, da Guiné-Bissau, e de cá. Passaram muitos miúdos africanos pelas suas mãos, pela sua casa, antes e depois dos tratamentos médicos, antes de regressarem ao seu país. Janice ficou. Foi mais do que uma feliz coincidência, é um amor que não se explica. Em maio do ano passado, Maria José e o marido Alfredo Sousa, arquiteto e elemento da ONGD, partiram para a Guiné em missão humanitária e levaram Janice para casa. “Regressou, entregámos à família, conhecemos a família que nos pediu para ficarmos com a criança”, recorda Maria José. É um pedido muito comum. Janice tem problemas cardíacos, a família falava que iria mandá-la para casa da avó no mato porque não tinha condições de cuidar dela. O casal tinha de tomar uma decisão, a data de regresso aproximava-se, foram noites mal dormidas. Falaram com Matilde, a única filha. “Vamos assumir? É uma responsabilidade. Assumimos. Conseguimos a documentação horas antes de entrarmos no avião”, recorda Maria José. Ficaram com a regulação das responsabilidades parentais. Voo, chegada a Aveiro pela manhã. “A Janice não se apercebeu da viagem e quando acordou disse-nos: ‘Chegámos a casa’.”

(Foto: Maria João Gala/Global Imagens)
Matilde Sousa, aluna do último ano de Direito, filha única durante 20 anos, habituada ao seu espaço, habituou-se rapidamente à irmã. “Afeiçoei-me a ela e a transição foi natural pelo afeto”, conta. Janice continua a saltar de colo em colo num jardim junto ao Museu de Aveiro. “É uma família alargada e animada”, descreve Alfredo Sousa. Janice entrou na pré-escola e não tardou a apanhar os colegas, recuperou o que havia para recuperar. “É muito doce, muito afável, muito meiga. E está sempre sintonizada”, diz a mãe. E lá vai saindo, de vez em quando, um papá e mamã lá em casa. As ligações às origens jamais serão suspensas. “Dizemos algumas palavras em crioulo, ouvimos música da Guiné, é uma coisa natural e fluída. Não queremos cortar com as suas raízes, de forma alguma. São as suas origens, é a sua história.” Este é um amor que não se traduz em palavras. “É um amor que não sei explicar”, garante Maria José.
“Não é a biologia que constrói o amor”, diz Maria Gil, cigana, atriz, feminista, ativista, num banco do Jardim da Cordoaria, no Porto. Maria mora nesta cidade e tem quatro filhos. António Pedro tem 23 anos e estuda Gestão Hoteleira; Salvador e Vicente são gémeos, têm 19 anos, o primeiro estuda Interpretação em Lisboa, o segundo Cenografia, Figurinos e Adereços no Porto; Mariana tem 14 anos. Já ouviu, por várias vezes, chamarem-lhe família Benetton. Maria sorri. “Para nós, nunca foi uma questão. Não é um assunto para nós”. Para outros, não é bem assim. Maria relembra algumas situações que a memória foi guardando. Certo dia, numa paragem de autocarro, com a Mariana bebé ao colo, os outros filhos ao pé, uma mulher olhava e rondava com a pergunta na ponta da língua. Rondava, olhava, e acabou por abordar o pequeno Salvador, lourinho de olhos azuis. A curiosidade saiu-lhe pela boca. “Quem é a bebé que está no colo da mamã?” Salvador respondeu-lhe, “é a mana, a minha mãe ficou com uma barriga muito grande e a mana saiu”. A conversa continuou. “Não, não é, é tua meia-irmã”, disse-lhe a senhora. Salvador, então com cinco anos, olhou para a irmã e corrigiu o que tinha acabado de ouvir. “Meia-irmã? Ela tem pernas, é uma irmã inteira”. Salvador tem uma vaga ideia dessa passagem. Mariana também se recorda de um momento na escola primária que a mãe partilha. Depois de ouvir uma coleguinha chamar-lhe preta sem se calar, Mariana perguntou-lhe se era boa a Matemática. A colega disse-lhe que sim, Mariana contrapôs com um “olha que não”, seguindo com a explicação de que ela era uma soma e não uma subtração. Uma soma de culturas.
A família Gil é monoparental e todos, mãe e filhos, assumem-se como ciganos. Cidadãos portugueses e ciganos de corpo inteiro. A multiculturalidade visível ao olhar é natural. “Não temos necessidade dessa desconstrução.” E Maria Gil deixou de contar as vezes que se sentiu incomodada, insultada e amargurada por ter de se desdobrar em explicações. “Somos uma família e o que faz uma família é a lealdade, o respeito, e o amor.” A biologia não é para aqui chamada.
Domingo passado, estavam todos na estreia nacional do último filme de Leonor Teles, no Cinema Trindade, na Invicta. Vicente é o protagonista, a restante família entra na história. “Cães que ladram aos pássaros”, que se estreou mundialmente no Festival de Veneza no ano passado e entretanto foi exibido em vários certames internacionais de cinema, é o resultado de um verão na cidade do Porto com a câmara de Leonor Teles sempre por perto. “Fazemos de nós mesmos, temos os nossos nomes.” Tem alguma ficção e alguns factos que os cinco foram passando à realizadora, o despejo do centro do Porto por causa do turismo, a gentrificação, o machismo, e outras histórias que fazem os dias de tanta gente.
Unidos por dois continentes
Nelson Silva e Ai-Lin Chow conheceram-se num evento para a comunidade chinesa organizado pela Fundação para o Desenvolvimento Social do Porto. Ele foi tratar do som, ela e uma amiga apresentaram-se como responsáveis pela organização, pela logística. Depois disso, cruzaram-se noutras iniciativas promovidas para diferentes comunidades. “A amizade cresceu, foi-se construindo”, recorda Ai-Lin. Apaixonaram-se, namoraram cerca de dois anos, casaram-se em 2007. Nelson é técnico de som e é transmontano. Ai-Lin é engenheira do ambiente, nasceu em Portugal, já viajou pela China para conhecer as raízes e a terra natal do pai. Moram no Porto e têm duas filhas de dez e seis anos, e os seus primeiros e últimos nomes são portugueses, os dois do meio chineses.

(Foto: DR)
As duas culturas entrelaçam-se naturalmente. “É tudo muito misturado, já não ligamos nada a isso, não é nada rígido”, refere Nelson. Comida chinesa à mesa, as filhas estão a aprender mandarim, Nelson sabe dizer algumas palavras chinesas, sabe que dependendo da acentuação a mesma palavra tem significados diferentes, vai apanhando conversas. “A minha família é chinesa, mantemos hábitos e sempre mantivemos a língua materna e, de certa forma, estamos integrados na cultura portuguesa”, refere Ai-Lin. Aprendeu a cozinhar com a mãe, cozinha muito a vapor, pratos chineses, com mão para os condimentos que um transmontano aprecia. “É uma adaptação e tudo se ajusta”, acrescenta. Nelson também tem jeito para a cozinha. E os dois continentes vão-se encontrando na culinária, muitos salteados, molho de soja como ingrediente habitual. “Tudo muito prático”, garante Ai-Lin.
Em outubro de 2007 casaram-se pela igreja e a cerimónia respeitou as tradições chinesas. Convites entregues em mão pelo noivo, e pelo pai e avô da noiva por várias partes do país. Comida oriental na boda para mais de 200 convidados, decoração a condizer, carateres chineses a desejar felicidade ao recém-casal, louça chinesa, muitos bonsais, lembranças de rebuçados e chocolates para os mais pequenos, tabaco e um jogo chinês para os adultos.
Nelson foi bem recebido pela nova família e desmonta a ideia de que a comunidade chinesa é muito fechada. A seu ver, o que transparece para o exterior desse viver para dentro talvez seja por causa da língua. E para um chinês, como explica, um amigo para ser amigo demora o seu tempo, não é em poucas horas que passa de conhecido a amigo. “Vivem muito em comunidade.”
A viagem à China sempre fez parte dos planos do casal, agora com mais consistência porque as filhas estão mais crescidas. “Mantemos a ligação chinesa para que a cultura não morra na geração delas”, sublinha Ai-Lin, que quer ir a Taiwan, à terra da mãe. As origens são sempre as origens, mesmo quando as culturas se entrelaçam. E o amor é aquele fogo que arde sem se ver e que não se explica.