Conto de Natal “A rabanada”, de Tiago Salazar

Texto de Tiago Salazar.

O meu pai gosta de chamar-me de sagorro. Diz ser uma faceta do meu outro lado da barricada, isso de ser agarrado à fanfa. Nunca tinha ouvido aquela palavra (tal como fanfa), mas, pelo relato seguinte que sempre faz diante de qualquer pessoa conhecida ou num encontro casual, o facto de ter nascido de punhos cerrados leva-o a concluir pertencer eu à grande tribo dos mãos de vaca.

Intriga-me como sabe o velho deste aspecto simbólico do meu nascimento, afinal, no momento do parto, não estava lá para averiguar das minhas imperfeições. Nessa madrugada, no lugar de acompanhar a minha mãe à clínica, foi às putas, ou talvez ao encontro de uns engates, pois o velho não é homem de gastos escusados.

Um tio hippie e menor de idade fez as vezes do velho e, trajado de bata e no rescaldo de uma moça de ácidos, foi aos berçários escoltado por duas enfermeiras a quem desafiou para uma trip no dia seguinte. Eu dormia no 15E e alguém se lembrou de ser esse um nome adequado. Durante uns dias fiquei Joaquim José até a minha mãe decidir pelo nome do poeta brasileiro Thiago de Mello, mas sem o h e o Amadeo.

A declaração dos Estatutos do Homem estava colada a UHU na parede do quarto da minha avó e, anos mais tarde, quando o pintaram de novo, na véspera de um Natal dos anos 80 do século passado, foi com comoção que vi desaparecerem, raspados à espátula por trolhas a assobiar e de unhas pontiagudas encimadas de priscas, os artigos mais belos que conhecia além dos Dez Mandamentos da Bíblia.

Artigo I.

Fica decretado que agora vale a verdade.
que agora vale a vida,
e que de mãos dadas,
trabalharemos todos pela vida verdadeira.

Mal nasci o meu pai foi logo para a Guerra Colonial como cabo raso, rebaixado na patente de sargento por castigo pela insolência de ir às meninas na academia de aspirante a piloto aviador de Penafiel, e, até aos dois anos, não lhe pus a vista em cima. Quando chegou da Guiné, diz o velho, a primeira coisa que lhe fiz, em vez de lhe chamar papá ou enroscar-me na cama, foi ir apanhá-lo a dormir (sempre gostou de dormir até tarde) e tentar arrancar-lhe os olhos com uma colher de sopa. Devo ter levado uma sapatada ou ouvido uns impropérios e passou a fechar a porta do quarto à chave. Depois de o velho ter saído de casa, o que mais gostava, nas poucas vezes que o visitei, era vê-lo a dormir e ficar a olhar para ele, as farripas de cabelo desgrenhado a saírem da dobra do cobertor, os livros espalhados pelo quarto, a dentadura num copo na mesa-de-cabeceira, os óculos de aros de tartaruga.

Artigo II.

Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

Quando o Natal já não tinha mãe e pai na mesma casa, metia-me no 47 e ia até à Graça. Almoçava à pressa, e saía esbaforido de rabanadas quentes envoltas num guardanapo. Fazia o trajecto de Alvalade até ao Largo de Sapadores a comer as rabanadas com o vagar de quem sobe e descia a Rua do Sol à Graça com o presente do meu pai, quase sempre um livro ou uma carta. Apanhava-o ainda a dormir e deixava-me estar a vê-lo, as farripas desgrenhadas agora grisalhas, a dobra do cobertor a cobri-lo, de cara virada contra o travesseiro, a barba rala, o rosto encovado, a dentadura, os óculos, os livros.

Artigo III.

Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.

Nas traseiras da casa dos meus avós paternos havia uma nespereira da altura de uns três andares que estava plantada no jardim da escola de correcção e os putos da pildra, na hora do recreio, encavalitavam-se nos ramos a tirar nêsperas para as comerem à dentada como se nada os pudesse fazer cativos. Quando voltavam para as celas, ia pelo outro lado do muro e imitava-os, sem que nunca me tivessem visto a abarbatar o fruto da sua felicidade.

Artigo IV.

Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.

A primeira herança que recebi foi uma caixa de fósforos com moedas de ouro. Uma tia chamada Beatriz, de quem recordo apenas ser alta, ossuda e de porte aristocrata, morreu e, sem saber bem porquê, deixou-me aquilo que para mim era uma fortuna. Guardava o meu tesouro num armário junto das redacções da primária e de uma concertina. Punha-me a tocar de cócoras na cama de ferro como um cobói, feliz da vida com as moedas a brilhar. Disse ao meu pai que estava rico e um dia ia comprar um carro descapotável. Por uma razão de força maior precisei de ir às poupanças e dei com a caixa de fósforos vazia. Depois de chorar como só me lembro de ter chorado quando morreu o meu avô, o pai do meu pai, e quando esperava horas a fio que o meu pai me viesse buscar, encostado aos vidros da janela, comecei a investigar o roubo, inspirado no Poirot e no nariz-detective, um cão farejador que era o herói de um livro de aventuras a que sempre voltava, achando ser o faro o dote mais relevante para o caso de ser enganado. Nunca descobri o autor, mas teve que ser alguém lá de casa.

Parágrafo Único:
O homem confiará no homem
como um menino confia em outro menino.

Artigo V.

Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.

Às vezes o meu pai aparecia para me levar a um café ou ao cinema. Vinha sempre num carro diferente e já de noite cerrada. Eram poucas as vezes que não trazia uma mulher ou outra, e todas, por algum motivo, punham-se a mexer-me nos caracóis e a dizer que era igual ao meu pai. O velho dizia logo que eu era a tromba chapada da minha mãe e além disso tinha nascido com mãos de vaca, ao contrário dele e dos antepassados. Houve um Natal que o meu pai apareceu com um ZX Spectrum de 48k. Abri o saco e abracei e beijei o velho com todas as forças, ele todo direito e de costas arqueadas, rijo como um cepo. Ganhei então o estatuto de ter a casa cheia de amigos, tal como quando recebi uma bicicleta noutro Natal, e, para a estrear, juntei os maduros da rua e voltei para casa com o garfo na mão. Um dia atropelei o mecânico e como este andava de mau vinho veio atrás de mim e deu-me um par de carolos. Fiquei com a cabeça cheia de galos, nada a que não estivesse habituado das investidas de outro dos meus tios, um avariado que era dado ao sadismo juvenil e se divertia a tamborilar-me o escalpe. Nestas alturas, se chamasse o meu pai para me acudir o mais certo era qualquer um dos abusadores terminar o dia esticado no tapete como os adversários do Jack La Motta. Foi o que aconteceu.

Artigo VI.

Fica estabelecida, durante dez séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

Os meus avós paternos juntos pesavam quase 300 quilos e a cama onde dormiam era de pau-santo para não arrear. Os dois a roncar era um concerto digno de ser registado, mas aquilo a mim deixava-me insone e habituei-me a enfiar uns tampões nos ouvidos até hoje. No dia 25 de Dezembro ficava na Graça e era alimentado como se fosse a última ceia de um condenado. Imaginava-me a engordar como os budas de porcelana do psiché ou a rebentar como o cliente alarve de “O Sentido da Vida”, dos Python. Ir ao cinema com o velho era o melhor ritual e rodávamos pelo Quarteto, o King, o Londres, a Cinemateca, o Nimas, o Monumental e o Condes. Um dia fomos ver “Os Canhões de Navarone” e o meu pai dava saltos quando havia explosões. Dizia que era um acto reflexo como nas picadas, tal como atirar-se para o chão quando passava um helicóptero ou despertar do sono aos gritos apaches. Lembro-me de não estar ninguém na sala do Quarteto, além de mim e do velho, quando estreou “O Touro Enraivecido”, e dele se levantar no intervalo e mostrar-me como se aplicava um uppercut nos queixos para lhes cortar a língua. Eles eram todos os que arreliavam.

Artigo VII.

Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.

O velho nunca acreditou em políticos e quando veio da Guerra dizem que piorou. Na verdade, só o ouvi dizer maravilhas do poder do seu caralho, do efeito respeitoso de uma cabeçada, um tiro nas nalgas ou de um murro nos queixos. O povo nunca lhe colheu simpatias e no dia de Natal a única coisa sensata que lhe passou pela cabeça foi pegar numa espingarda e desatar aos tiros da janela para o povo deixar de andar a dormir e acordar o Menino Jesus. Não é que lhe falte sentido de justiça ou coisa parecida, e ai de alguém que lhe passe a perna ou o faça de parvo. É bem capaz de ficar sem a língua.

Artigo VIII.

Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.

É preciso ver que o meu pai podia não ter nascido, tal como eu podia ter ficado o Quinzé ou Amadeo ou mesmo Tiago com h. Ou mesmo eu ter ido parar a uma pia em forma de ervilha quando era cedo demais para uma mãe dar à luz. Bem, o meu avô paterno ficou viúvo e foi assim que o meu pai veio cá parar, de um segundo casamento. O meu avô andou a bater mal e deve ter casado outra vez para curar as feridas. Era generoso e nunca faltou nada, mas havia qualquer coisa a remoê-lo e ainda hoje as fotografias da primeira mulher estão lado a lado na estante com o resto da família. Todos os natais, enquanto o meu pai dormia, ia com o meu avô comer frangos e lavar o Fiat 600. Nesses dias, sentava-me no cadeirão aninhado na sua barriga insuflada como um balão, e acabava por adormecer embalado no seu ronco a chupar um dedo e com a mão livre agarrada à sua grande orelha.

Artigo IX.

Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha sempre
o quente sabor da ternura.

Artigo X.

Fica permitido a qualquer pessoa,
a qualquer hora da vida,
o uso do traje branco.

Artigo XI.

Fica decretado, por definição,
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo.
muito mais belo que a estrela da manhã.

Artigo XII.

Decreta-se que nada será obrigado nem proibido.
tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begónia na lapela.

Parágrafo único:

Só uma coisa fica proibida:
amar sem amor.

Artigo XIII.

Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.

Artigo Final.

Fica proibido o uso da palavra liberdade.
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.

Santiago do Chile, Abril de 1964

Publicado no livro
“Faz Escuro Mas Eu Canto: Porque a Manhã Vai Chegar” (1965).
O autor escreve de acordo com a anterior ortografia.

Biografia

Tiago Salazar nasceu em Lisboa, em 1972. Formou-se em Relações Internacionais e estudou Guionismo e Dramaturgia em Londres. É doutorando no Instituto de Geografia, com uma tese sobre “A Volta ao Mundo”, de Ferreira de Castro.
Trabalha como jornalista desde 1991, atualmente como freelancer. É formador de Escrita e Literatura de Viagens.
Autor de mais de uma dezena de obras, lista em que se destacam, em 2016, a premiada “A Escada de Istambul”, e, em outubro de 2020, “O Magriço”. Um mês depois, em novembro, conquistou a 20.ª edição do Concurso Textos de Amor Manuel António Pina, organizado pelo Museu Nacional da Imprensa.