Rui Cardoso Martins

Como poupar dinheiro sem perder a cabeça

(Ilustração: João Vasco Correia)

Isso é o que todos fazem, disse Nuno no tribunal, se um polícia se magoa em serviço vai logo ao hospital e mete baixa. Muito magoados ou pouco magoados, é o que eles fazem. Mas com este argumento – tão racional na aparência – Nuno perdeu mais uma oportunidade de estar calado. Foi assim que palavras frias e gestos bruscos lhe custaram muito, muito dinheiro.

Os olhos de Nuno flutuavam acima da máscara. Duas bóias brancas e castanhas sobre a piscina azul de papel cirúrgico e debaixo das sombrinhas de colmo das sobrancelhas. A nossa cara transformada em toldo. É desta maneira que metade do mundo observa agora a outra metade, em ambientes fechados. Que expressão tinha Nuno na sala do tribunal, à hora da sentença que o condenava? Sei lá, faltava ver-lhe a boca, os dentes, a língua, o nariz, o queixo, os sulcos expressivos da pele. Se tirasse a máscara, talvez eu escrevesse aquele clássico de milhares de notícias sobre crimes: o arguido manteve-se inexpressivo e impassível durante a leitura da sentença.

Temos de admitir que o papel da voz aumentou muito na leitura que um magistrado faz de alguém com a cara tapada. Por exemplo, a juíza disse que o ofendido, o guarda da PSP, “na nossa opinião teve um depoimento bastante sincero, bastante credível”, enquanto no essencial Nuno “não nos apresenta muita credibilidade”. Mas não viu a cara verdadeira de nenhum deles, à sua frente, cara integral só a das fotos do processo.

Nuno teve um problema pequeno com um polícia. Nuno teve um problema grande com um polícia. Só não foi um problema gravíssimo porque ambos tiveram sorte. Nesse dia, Nuno parara o carro junto a uma estação de comboios em Lisboa. Em segunda fila, com os piscas acesos, Nuno conduziu um idoso lá acima ao cais. Quando voltou, acabara de ser multado por estacionamento ilegal. A juíza lembrava os pormenores do caso:

“Ficou indignado com isso, porque tinha deixado o carro com os quatro piscas e tinha só ido ajudar alguém, portanto achou injusta aquela autuação. Deu a volta e deparou com o polícia e o polícia disse-lhe que não tinha sido ele a autuar. Ele ficou ainda mais indignado.” Chegou entretanto o polícia da multa, Nuno exigiu-lhe a identificação, o polícia fez o mesmo, mas Nuno enfiou os seus ombros largos no carro e arrancou. “Diz que não bateu com o carro no polícia… admite essa possibilidade, acha que não bateu, mas o polícia pediu-lhe para parar, ele não obedeceu, já estava muito exaltado, admite poder ter batido com o espelho, mas acha que não bateu, assim como acha que não estragou o telemóvel.” A juíza navegava nas dúvidas tácticas de Nuno, até chegar a esta certeza:

“De certeza que o polícia teria ido ao hospital e teria ficado de baixa, porque isso é o que todos fazem… Ora, como sabemos, nem todas as pessoas são iguais, e essa versão não nos pareceu muito credível. Se a pessoa não tiver lesões não vai ao hospital, não é?”

O polícia disse que sofreu dores mas não ficou magoado. Na verdade, o que o transtornou, tanto como quase ter sido atropelado, foi que trazia o telemóvel no bolso da farda. “Insiste na identificação do arguido e está então colocado ao lado, junto à porta do condutor e o arguido arrancou e embateu-lhe com o carro da cintura para baixo, o carro não bateu no braço. E que a farda tem um bolso lateral e que nesse bolso estava o dito telemóvel e que ele até trouxe e mostrou na audiência.”

Nuno, no tribunal, tinha agora as mãos cruzadas atrás das costas, como as asas de um pombo. Cometeu “crime de resistência e coação a funcionário”, que é punido só com pena de prisão, não há opção de multa e a pena pode ir até cinco anos. Nuno está “inserido social e familiarmente, sem antecedentes criminais, trabalha, tem a sua família, é primário, isto terá sido uma situação isolada na vida do arguido. Não houve lesões graves para o agente. Não houve embate frontal, todas estas circunstâncias tornam a situação numa coisa grave, naturalmente, mas tudo isto ponderado opta-se por uma pena de dez meses de prisão.”

A prisão foi substituída por 300 dias de multa a sete euros por dia, num total de 2 100 euros. Mais custas e taxas de justiça. Mais o maldito telemóvel, que valia 387 euros e 98 cêntimos.

– Pronto, senhor Nuno, fica aqui então a sua sentença, está dispensado, bom dia para o senhor.

Mas Nuno saiu dali para um péssimo dia, os olhos lançavam labaredas sem respeitar a distância social.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)