Como é que o pâncreas fica doente? Os sinais são vagos

Estima-se que dois terços dos principais fatores de risco associados ao cancro do pâncreas sejam potencialmente modificáveis (Foto: Freepik)

O cancro do pâncreas tem a menor taxa de sobrevivência de todos os cancros na Europa. Os sintomas podem ser difíceis de identificar, geralmente são inespecíficos. 19 de novembro é o Dia Mundial do Cancro do Pâncreas.

O pâncreas tem uma localização muito profunda, está situado atrás do estômago, no abdómen superior. Pesa entre 70 e 90 gramas e mede cerca de 15 a 20 centímetros. É a maior glândula do corpo humano. Quando não está bem, é um grave problema. O cancro do pâncreas é o tumor maligno do sistema digestivo com pior prognóstico. Ana Caldeira, presidente do Clube Português do Pâncreas da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia, explica tudo. “O cancro do pâncreas ocorre quando as células malignas se formam e se multiplicam no tecido pancreático.” Há vários tipos de tumores, mas o adenocarcinoma é o cancro do pâncreas mais frequente, 95% dos casos.

Os sintomas nem sempre são fáceis de identificar, dependem da sua localização, e geralmente são vagos e inespecíficos, o que dificulta o diagnóstico precoce da doença. Pode manifestar-se através de uma dor na região superior do abdómen com irradiação para as costas, que se agrava depois das refeições e quando se está deitado de costas. “A cor amarelada da pele e urina turva são sintomas mais frequentes nos tumores do pâncreas. Outros sintomas menos frequentes são a comichão, indigestão, alteração dos hábitos intestinais, perda de peso inexplicável, depressão, perda de apetite, fenómenos de trombose vascular ou diabetes de diagnóstico recente.” “Estes sintomas podem estar associados a outras condições, pelo que não são específicos desta patologia”, sublinha.

O que se sabe sobre os fatores de risco? Estima-se que dois terços dos principais fatores de risco associados ao cancro do pâncreas sejam potencialmente modificáveis, o que abre oportunidades para a prevenção da doença. Ana Caldeira adianta que “o tabagismo está relacionado com 20% de todos os cancros do pâncreas e causa um aumento de 75% em comparação com os não fumadores. O risco aumenta com o número de cigarros fumados e o tempo de exposição.”

É a terceira causa de morte por cancro na Europa, a terceira neoplasia do sistema digestivo mais frequente em Portugal, logo a seguir ao cancro do cólon e do estômago

A obesidade contribui para um pior prognóstico e taxas de sobrevida. O risco é 47% maior nos indivíduos obesos, comparativamente aos com um índice de massa corporal normal. A diabetes também interfere. “Embora exista um risco aumentado de cancro do pâncreas em doentes com diabetes de longa data, a diabetes de início recente está frequentemente associada a malignidade pancreática. Os indivíduos que foram diagnosticados com diabetes há menos de quatro anos têm um risco 50% maior de desenvolver cancro do pâncreas, em comparação com indivíduos que têm diabetes há mais de cinco anos”, refere a presidente do Clube Português do Pâncreas da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia.

O consumo excessivo de álcool, quatro ou mais bebidas por dia, está também associado ao cancro do pâncreas. Os doentes com pancreatite crónica, especialmente os que têm pancreatite hereditária, têm um risco aumentado. Aproximadamente 4% dos pacientes com pancreatite crónica desenvolverão este cancro.

“O risco de cancro pancreático está aumentado em doentes com história familiar de alto risco (dois familiares de primeiro grau afetados ou três familiares com a doença, sendo pelo menos um de primeiro grau) ou com síndromes genéticos hereditários (pancreatite hereditária, Síndrome de Peutz-Jeghers). Pensa-se que até 10% dos casos de cancro do pâncreas estejam relacionados com condições genéticas”, adianta Ana Caldeira.

O cancro do pâncreas tem uma maior prevalência no sexo masculino, a mortalidade global mais elevada anda entre os 75 e os 79 anos de vida. No entanto, regista-se uma tendência para um número crescente de mortes em idades cada vez mais precoces. Os indicadores não são animadores. “Atualmente, a taxa média de sobrevida aos cinco anos é de 3% a 9%. A expectativa de vida no momento do diagnóstico é de apenas 4,6 meses e o número de mortes por cancro do pâncreas quase dobrou nas últimas três décadas.”

À data do diagnóstico apenas 20% são candidatos cirúrgicos. mesmo nestes, a sobrevivência aos cinco anos é de apenas 30%

Ana Caldeira adianta que, num estudo realizado recentemente em Portugal, em que se analisou o número de mortes por cancro do pâncreas, ao longo dos últimos 25 anos, concluiu-se que esse número duplicou, tendo ultrapassado as 1500 mortes por ano em 2017. No mesmo estudo, verifica-se que, no nosso país, há diferenças geográficas significativas na incidência deste tipo de cancro. Maiores taxas de mortalidade nas regiões dos Açores e do Alentejo e em menor grau na Madeira. “A elevada prevalência de fatores de risco como o tabagismo ativo e excesso de peso nessas regiões pode, em parte, justificar as assimetrias registadas”, sustenta.

O diagnóstico é frequentemente tardio. Quase sempre a realização de uma ecografia abdominal é suficiente. A realização de tomografia computorizada, ressonância magnética ou ecoendoscopia é habitualmente necessária na confirmação do diagnóstico e para perceber em que ponto está o tumor. O tratamento exige uma abordagem multidisciplinar.

O tratamento envolve, quase sempre, a realização de quimioterapia de forma isolada ou em associação com a radioterapia nos doentes que não são candidatos cirúrgicos. Segundo Ana Caldeira, “a terapia neoadjuvante – tratamento de quimioterapia realizado inicialmente com objetivo de reduzir o tamanho dos tumores antes da cirurgia – é atualmente a opção de eleição nos casos potencialmente operáveis. Desta forma pode controlar a progressão da doença ao mesmo tempo que reduz o tamanho de tumores grandes, permitindo ressecção mais eficaz e com melhores taxas de sobrevivência.”

O cancro do pâncreas continua a matar depressa e muito. Como inverter essa tendência? Como alterar o futuro? Novas estratégias para ajudar no diagnóstico precoce são uma urgência. “Os estudos indicaram que a doença pode estar presente no pâncreas por muitos anos antes que os doentes adoeçam, proporcionando uma oportunidade crítica para a deteção precoce”, sublinha a especialista.

Nos próximos anos, são esperados progressos significativos na área da investigação molecular, com a identificação de biomarcadores que possam ser detetados no sangue e que permitam reconhecer a doença numa fase cada vez mais precoce. “O impacto destes biomarcadores no diagnóstico precoce na população em geral ou em grupos de risco identificados pode ser determinante na mudança do paradigma.”

A investigação sobre o impacto do microbioma no cancro do pâncreas tem sido uma nova área de interesse, já que o pâncreas era anteriormente considerado um órgão estéril

Ana Caldeira revela o que tem sido estudado. Verificou-se que a população microbiana do pâncreas cancerígeno é aproximadamente mil vezes superior à de um pâncreas não cancerígeno. A remoção de bactérias do intestino e do pâncreas retarda o crescimento do cancro e reprograma as células imunológicas para reagir contra as células cancerígenas. “Esses achados são significativos e podem mudar a prática, pois a remoção de certas espécies bacterianas poderia aumentar a eficácia da quimioterapia ou imunoterapia, e assim retardar o crescimento do tumor ou diminuir o risco de cancro do pâncreas. Estes dados podem conduzir ao desenvolvimento de tratamentos que podem inibir o crescimento do tumor, alterar o comportamento metastático e, finalmente, alterar a progressão da doença”, refere.

Há consciência do que se passa neste tipo de cancro? Nem por isso. Ana Caldeira faz alguns reparos. “A consciencialização pública e política sobre esta doença está muito aquém do desejável e parece ter sido negligenciada durante décadas. Os planos nacionais de cancro raramente mencionam o cancro do pâncreas e o financiamento da investigação nesta área é incrivelmente baixo para um cancro tão mortal.” A especialista defende um investimento urgente nesta área. “Com o aumento da investigação, podemos melhorar a nossa compreensão sobre este cancro tão complexo, identificar ferramentas corretas para alcançar um diagnóstico mais precoce e, finalmente, salvar mais vidas”, conclui.