Com o coração apertado

(Ilustração: MG/Notícias Magazine)

Itamar Vieira Junior acaba de ser distinguido com o Prémio Jabuti, o galardão literário mais importante do Brasil, pelo romance Torto Arado. Esta semana, o escritor brasileiro foi também incluído entre os cinco finalistas do Prémio Oceanos. Recorde o conto de Natal que o autor escreveu para a Notícias Magazine, no ano em que venceu o Prémio LeYa, em 2018.

Enquanto esperava a exata hora que haviam combinado, não pôde evitar de recordar um poema de Wislawa Szym-borska, com seu narrador oculto observando o terrorista e as vítimas nos minutos que antecediam a explosão de um artefacto. Sentiu-se assim ao ver o casal que entrava de mãos dadas, a jovem que saía um tanto apressada, o carro bem polido guiado pelo manobrista. Para tentar driblar a ansiedade olhava a vida apressada, por vezes distraída, dos que entravam e saíam do restaurante. E carregava sentimentos tão contraditórios que chegou a temer que eles explodissem, como uma bomba, a qualquer instante.

Foi quando sentiu uma mão tocar seu ombro e, de súbito, voltou-se para trás. Há pouco mais de duas semanas tinha sido vítima de um assalto na rua, levaram sua bolsa e telefone depois de sair da escola onde ministrava aulas. Mas desta vez era Francisco: conservava o mesmo rosto, os mesmos olhos, talvez um pouco opacos, amaciados pelo tempo. O cabelo e o vigor da juventude haviam rareado.

Era um idoso, teve que admitir, quando percebeu que ele segurava uma bengala com a mão direita. Ela estava um pouco constrangida, tentando controlar as emoções, que não poderiam ser menos antagónicas por tudo que já havia vivido. Então, ele passou a bengala para a mão esquerda, para poder erguer a direita convidando-a para entrar no recinto. Enquanto se dirigiam à entrada a passos lentos, ele disse que ela mudou pouco, quase nada. Que conservava o rosto infantil e o semblante sério, agora contornados pelo corpo de mulher.

Por falta de assunto, ou por querer encontrá-lo, ela perguntou por Emília e Catarina. Perguntou por Dulce, a mulher forte que admirava, como se não soubesse que ela estava morta. Perguntou por toda a família, como se não se tivesse informado antes sobre as coisas essenciais, para não ter nenhuma surpresa. Para que o arrependimento não fosse maior ao encontrá-lo. Só aceitou o convite depois de saber que ele vivia só, as filhas moravam longe, e que o outono de sua vida parecia ser melancólico.

Não se envergonhou por falar de sua vida modesta; disse que era professora e morava num pequeno apartamento. Que casou e descasou, mas não contou que foi sem nenhuma paixão. Incomodava-a falar de si, as palavras quase não saíam, mas era necessário que ele soubesse dos seus sucessos e fracassos, que tivesse a medida aproximada de toda a vida que lhe havia sido negada.

E quando chegou o momento de pedir a sobremesa, ele perguntou se havia rabanada. Bom, não é Natal, ela pensou. Mas a memória era um terreno movediço e, de súbito, voltou-se não para trás, como havia feito ao sentir a mão do velho em seu ombro, mas para o que não poderia ser apagado.

Você é uma menina que cresceu pela cozinha e quintal da casa. Quase nunca atravessava a linha imaginária que sua mãe havia estabelecido entre os fundos e a sala de estar. Mas foi à espreita, no corredor, que viu nos primeiros anos de sua vida o grande pinheiro de plástico com chumaços de algodão a imitar a neve.

Passado tanto tempo, a palavra neve para você ainda significa algodão.

Quando era próxima a Emília e brincava subalterna aos seus caprichos, quando se sujeitava a perder a desejada boneca de cabelos loiros, foi que recebeu o convite para avançar até à árvore e ajudá-la a colocar a neve com suas próprias mãos. Ao redor de vocês, sob o inquieto zumbido das moscas, o calor do verão consumia a terra. Era assim, limpando o suor do rosto, do cabelo que grudava à pele no mormaço das tardes de dezembro, que riam, discordavam, e esgarçavam os chumaços de algodão para que cobrissem de forma generosa a parte superior dos galhos do pinheiro. Mas a estrela, sempre a estrela, o coração da árvore, seria erguida e colocada no topo do pinheiro por Emília ou Catarina. Você deveria conhecer o seu lugar, era o que sua mãe dizia enquanto empanava e fritava no tacho quente as fatias de rabanada.

As luzes se acenderam.

Francisco, o pai, ria com os homens da família enquanto embebedavam o peru que seria servido na ceia. Um animal condenado, como um criminoso, aguardando apenas o cumprimento de sua pena capital. Você olhava o peru a cambalear, cada vez mais trôpego, enquanto imaginava qual seria o momento exato do abate. Eles entornavam, um por vez, na goela da ave, copos de cachaça para amaciar-lhe a carne e aliviar-lhe a morte.

O peru foi abatido longe dos olhos de Emília e Catarina, mas esqueceram de proteger os seus. Como tudo numa casa, sua mãe, a empregada Juliana, dizia, o serviço sujo se faz nos fundos. Na época, você pensou que ela se referia aos restos de alimentos jogados no quintal ou à matança de porcos e aves para a ceia. Depois, quando descobriu sobre seu pai, entendeu o que a sentença de sua mãe queria dizer.

Agora, à sua frente, batia um velho coração que certamente não demoraria a parar. Viúvo, sem a atenção das filhas por quem havia zelado, restava-se, talvez, um corpo lento, um homem arrependido de sua vida passada. E se ele se engasgasse com a rabanada que comia avidamente? E se ao levantar tropeçasse e desse com a cara no chão? E se os funcionários do restaurante a olhassem e perguntassem se não era melhor ligar para a família para prestar socorro? E se “olhassem” para sua cor, descobrissem ser ela a filha da empregada, e lhe negassem a possibilidade dos laços de parentesco?

Não era só ela que guardava a bomba do poema revolvendo-se em seu peito. Aquele homem também deixava transparecer, nos seus pequenos gestos nervosos, as inquietações do seu remorso. Eles permaneceram impávidos, um diante do outro; ele talvez sem encontrar maneira de dizer algo que o redimisse do passado; ela sem coragem para falar da mágoa que a consumia desde a descoberta. Não adiantava esperar mais que ele expressasse “minha filha”. Havia prometido a si que mesma que se ouvisse o que sempre esperou, não diria, em retorno, “meu pai”.

Um bebé na mesa ao lado começou a chorar alto e não havia gesto da mãe que o consolasse. Era a senha de que ela precisava para encerrar o encontro. Então, ela fez questão de pagar a conta, num último gesto de orgulho, ao que ele resistiu. Mas seu corpo frágil não permitiu o desgaste do embate sobre quem deveria pagar. Aceitou com o coração aberto aquela gentileza. Quando começaram a descer a escada, o velho se desequilibrou um pouco e tentou se apoiar melhor com a bengala. Ela, num impulso, amparou-o com sua mão, apoiando-o em seu corpo. E sentiu um misterioso afeto brotar de seu ato.

Ao vê-lo se afastar, caminhando com o vagar próprio do seu tempo, ela sentiu um aperto no peito, como se pudesse sentir toda a vida que poderia ter tido ao seu lado.

Poderia telefonar dali a alguns dias para sugerir que se encontrassem de novo no Natal.

Biografia

Itamar Vieira Junior nasceu há 39 anos em Salvador da Bahia, Brasil. É autor da coletânea de contos “A oração do carrasco” (2017), finalista do Prémio Jabuti de Literatura 2018, além de vencedor do Prémio Humberto de Campos, da União Brasileira de Escritores (secção Rio de Janeiro) biénio 2016-2017. Tem contos traduzidos e publicados em revistas especializadas em França e nos Estados Unidos da América. O seu último trabalho, “Torto Arado”, é um romance inédito, galardoado com o Prémio Leya 2018, e que foi publicado em Portugal em 2019.

Itamar Junior
(Foto: Filipe Amorim/Global Imagens)

[artigo publicado originalmente na revista do dia 23 de dezembro de 2018]