Ciência portuguesa unida contra o vírus

Peças de um puzzle maior que têm colocado Portugal no radar da comunidade científica internacional (Foto: Igor Martins/Global Imagens)

É de espírito de missão que se faz esta história. De abnegação também. A história de como os principais centros de investigação portugueses se mobilizaram e adaptaram na luta contra o vírus que nos mudou a vida. E de como se têm sabido unir por um bem maior. O resultado é um “momento único” ao nível da partilha de conhecimento, que permite à comunidade científica nacional aspirar a ter uma contribuição relevante numa luta que é do Mundo.

São quase dez da manhã de quarta-feira e o grande átrio de entrada do i3S – Instituto de Investigação e Inovação em Saúde está anormalmente vazio. Como se o vírus que parou o país também ali tivesse dado ordem de imobilização. Pura ilusão. Na ciência, como quase sempre na vida, ir além das aparências obriga a olhar de perto. No maior instituto nacional de investigação em ciências de saúde, orgulhosamente instalado no Porto, também é assim. A quimera da passividade desmascara-se na vista de uma pequena janela, cravada numa grossa porta branca que só se abre para quem esteja devidamente equipado. Através dela, vê-se uma espécie de laboratório em ponto minimal, uma sala de pressão negativa que é uma das estações de um circuito improvisado para a realização de testes de diagnóstico à Covid-19. Lá dentro, cinco jovens investigadores, equipados com o rigor que impõe o maldito SARS-CoV-2, seguem imersos no trabalho. Duas estão de olhos num computador portátil. Outros três, cada um no seu posto, vão manejando atentamente pipetas e tubos, numa missão que tem tanto de nova como de relevante. “No espaço de uma semana e meia, pegámos nas pessoas e no material que tínhamos e montámos um circuito de diagnóstico”, contextualiza Claudio Sunkel, diretor do i3S desde dezembro.

A necessidade, o sentido de missão, insinuaram-se quando o responsável pelo instituto começou a ver o número de casos a disparar aqui tão perto, curiosamente durante um período de duas semanas em que o i3S até se viu obrigado a fechar portas, por ter registado casos positivos de Covid-19. “Comecei a perceber que tínhamos de olhar para o futuro e a pensar como poderíamos colaborar.”

No início de abril, as portas foram reabertas. Ainda que, por questões de segurança, apenas uma pequena parte dos investigadores do i3S esteja a laborar presencialmente. E que o foco do trabalho tenha sido reajustado, também com a colaboração do Hospital de São João. “Era preciso fazer mais testes e era óbvio que nós tínhamos as pessoas, as competências e os espaços para o fazer. Portanto, decidi que tínhamos de avançar.” Foi a 31 de março. Claudio fixou o dia. “Nós somos um instituto de investigação e inovação em saúde. Não podíamos ficar de fora. Ponto.”

O i3S, no Porto, fez questão de responder às necessidades que os novos tempos impõem e vive agora rotinas muito distintas das que eram habituais
(Foto: Igor Martins/Global Imagens)

Mesmo que tenha sido preciso reconfigurar quase tudo. Desde procedimentos a adotar a regras de segurança. Parte delas saltam à vista no corredor que dá acesso à tal sala onde só se entra devidamente equipado. Perto da porta, há um grande armário com todo o material necessário. Fatos e luvas, máscaras, calçado próprio. E um papel com as imposições que já se fizeram rotina mas que nem por isso são mais dispensáveis. Ao longo do corredor, do lado direito, há três portas. Em frente a cada uma delas há três grandes retângulos, delineados no chão com fita amarela. Atrás das portas que dão para as escadas, os investigadores que se preparam para entrar na sala de pressão negativa deixam a roupa que trazem de casa e vestem algo mais confortável. Nos retângulos, equipam-se a rigor. O que inclui prender as luvas com fita-cola. Assim se explica o facto de haver vários rolos no chão.

Só depois de cumpridos todos estes passos os investigadores estão autorizados a passar a porta branca. Numa primeira sala, faz-se a inativação do vírus, nas amostras que a Administração Regional de Saúde do Norte (ARS Norte) faz chegar ao i3S. Num segundo momento, o tal que se vislumbra da pequena janela, procede-se ao isolamento do material genético do mesmo. Segue-se a amplificação do material genético, para que seja possível detetar o vírus. O processo, comum na biologia molecular e operado através de uma máquina específica para o efeito, tem o nome pomposo de reação em cadeia da polimerase (PCR).

Por questões de segurança, apenas uma pequena parte dos investigadores do i3S está a laborar presencialmente
(Foto: Igor Martins/Global Imagens)

Os resultados são depois produzidos em forma de gráficos, exibidos informaticamente. Há ainda uma última fase, em que uma equipa de duas pessoas, regra geral a trabalhar de casa, analisa os gráficos e verifica se há infeção, devolvendo então os resultados à ARS Norte. Ao longo desse processo, estão para já envolvidos 50 cientistas, que trabalham por turnos, assegurando um total de 150 testes diários. “Mas esperamos poder duplicar este número já na próxima semana”, augura o diretor do i3S.

Sequenciar os genomas para obter respostas

Enquanto isso, o instituto vai dizendo presente noutras áreas. Desde logo na produção dos meios de colheita do vírus – o líquido que está no fundo dos tubos onde são inseridas as zaragatoas (aquelas espécies de cotonetes, através das quais são recolhidas as amostras) e que vai impedir que o vírus se degrade. O i3S está neste momento a produzir 1 500 por dia, que depois faz chegar aos hospitais e à ARS Norte. Está ainda em preparação, em parceria com a Câmara Municipal do Porto, uma iniciativa que visa testar milhares de profissionais da cidade, da área da saúde a funcionários da autarquia, para aferir a eventual imunidade ao vírus.

Nesta multiplicidade de missões, reajustadas à pressa face à voragem da necessidade, sobra ainda espaço para a investigação pura. Num laboratório do piso superior, Ana Magalhães, aluna de doutoramento em Patologia Genética Molecular, no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS), vai manuseando o material. “A Ana está a preparar as amostras para fazer a sequenciação do vírus”, explica Luísa Mesquita Pereira, cientista na área da genética e responsável por esta investigação, que visa essencialmente sequenciar as grandes cadeias de transmissão do vírus – isto é, a forma como um indivíduo infetado foi infetando outros. “O que fazemos é caracterizar o genoma [conjunto de todos os genes de um ser vivo] de várias amostras e tentar construir a sua evolução ao longo do tempo”, simplifica Luísa.

Antes de tudo isto começar, no tempo em que a Covid era ainda uma praga remota, a sua equipa estava dedicada ao estudo do vírus da dengue. “A metodologia teórica acaba por ser comum a qualquer vírus.” Daí que, com a ajuda do Hospital de São João, que lhes tem feito chegar uma multiplicidade de amostras já devidamente situadas no tempo, tenham decidido redefinir o foco dos trabalhos. A rotina atira-a agora a dias que arrancam bem cedo e chegam a prolongar-se pela noite fora. E nem assim tem tanto tempo para a investigação como gostaria. É que Luísa acumula a função de supervisionar o processo dos testes de diagnóstico. A exigência dos tempos a isso obriga. “Foi claro para nós que a nossa primeira resposta teria de ser em termos de diagnóstico, porque é disso que o país precisa neste momento. É preciso mudar o chip todo.”

A realidade vivida no i3S é, por estes dias, um retrato fiel do que tem sido o dia a dia dos principais centros de investigação do país. De como os investigadores se têm sabido colocar ao serviço da ciência. Da capacidade de adaptação, do sentido de missão, do espírito colaborativo e da abnegação que têm marcado o trabalho diário destes profissionais. Muitos deixaram os projetos de investigação próprios em stand by e voluntariaram-se para travar uma luta que é de todos.

O Instituto de Medicina Molecular desenvolveu um protocolo para a realização de testes de diagnóstico que tem sido replicado por outros institutos
(Foto: DR)

O Instituto de Medicina Molecular (IMM) da Universidade de Lisboa é um exemplo perfeito disso mesmo. Face à emergência que o país vive, este centro de investigação rapidamente abraçou a missão de estabelecer um protocolo que permitisse desenvolver testes de diagnóstico com rigor e segurança. O resultado foi um documento de 92 páginas, entretanto disponibilizado à restante comunidade científica e replicado por outras instituições (como o próprio i3S). “Ajudar na questão dos testes de diagnóstico foi a nossa primeira grande urgência, apesar de não ser a nossa missão”, esclarece Bruno Silva-Santos, vice diretor do IMM. “Percebemos que o país tinha uma capacidade frágil de diagnosticar todos os casos e pusemos mãos à obra no sentido de adaptar o teste diagnóstico que estava aprovado a nível internacional e de arranjar uma versão implementável em Portugal, com reagentes portugueses.”

O consórcio que alumia o futuro

Outro desafio importante prende-se com o desenvolvimento de testes de imunidade, para perceber, a dado ponto, que percentagem da população portuguesa já desenvolveu anticorpos contra o vírus – percentagem essa que será determinante para ditar a cadência do regresso à normalidade. É a pensar nisso que o IMM, o Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC) e o Instituto de Biologia Experimental e Tecnológica (iBET) estão a desenvolver em conjunto testes serológicos (ao sangue), que permitam avaliar a imunidade. Do consórcio “Serology4COVID”, criado para esse efeito depois do repto lançado pelo IGC, fazem ainda parte o Centro de Estudo de Doenças Crónicas (CEDOC) e o Instituto de Tecnologia Química e Biológica António Xavier (ITQB). “O objetivo deste consórcio é desenvolver um kit que seja barato o suficiente para poder ser aplicado em larga escala, em coordenação com o Governo e o Ministério da Saúde”, resume Bruno Silva-Santos. O protótipo final desses testes deverá estar pronto ainda este mês, tendo depois de ser sujeito a validação por parte do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA).

Ao INSA cabe o papel de validar parte do que é feito por outros institutos. Mas também uma fatia considerável da investigação de vanguarda
(Foto: DR)

Mas o trabalho do IMM não se fica por aqui. Até porque o instituto não descura a investigação pura e dura. Por um lado, a chamada investigação fundamental, tanto na perspetiva do próprio vírus (como evolui, que mutações sofre ou não…) como na perspetiva do hospedeiro – que resposta imunitária é dada por cada doente, variáveis que justificam a disparidade entre a gravidade das infeções, etc. O terceiro pilar foca-se na chamada investigação aplicada, que no caso está mais direcionada para o desenvolvimento de terapêuticas que possam proteger da versão mais severa do vírus. Bruno Silva-Santos dá um exemplo concreto. “Estamos a trabalhar com uma empresa do Porto e uma empresa inglesa num projeto que visa usar anticorpos de pessoas que foram infetadas mas recuperaram bem para ajudar a proteger pessoas que tenham infeções mais graves. Claro que isso não resolve o problema da pandemia em si. Para isso estamos todos à espera de uma vacina.”

Também o Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC) tem concentrado inúmeros esforços na investigação relacionada com a Covid-19. “No instituto temos experiência que nos permite ver alguns dos problemas da Covid de outra maneira e que nos ajuda a perceber a evolução da doença e possíveis soluções para tratamento”, antecipa Mónica Bettencourt-Dias, diretora do IGC. Esta investigação revela-se tanto mais decisiva quanto falamos de uma doença altamente heterogénea, que tão depressa se traduz em infetados assintomáticos como conduz à morte. “Isto não depende só da carga viral. Depende da pessoa que contrai o vírus, das doenças que possa ter e de outros fatores que ainda não conhecemos. É isso que queremos perceber.”

O IGC tem, neste momento, cerca de 100 investigadores envolvidos no trabalho relacionado com a Covid. “Acho que nunca se trabalhou tanto”, assume a diretora
(Foto: DR)

Para escrutinar a questão da heterogeneidade genética, e perceber de que forma determinadas “subtilezas” podem fazer a diferença em termos de resposta ao vírus, o IGC está neste momento a trabalhar com um consórcio internacional, que inclui mais de 20 países e abre portas para o estudo de um variadíssimo leque de doentes. O trabalho de investigação inclui ainda o estudo do fenómeno da tolerância à doença (“o nosso corpo também tem de conseguir gerir a doença para que não morra da cura”, resume a responsável) e do próprio vírus, com a sequenciação dos genomas.

De resto, mesmo tratando-se de um instituto na área da biologia e da biomedicina, o IGC fez também questão de ajudar a suprir as necessidades mais prementes. Tanto através da doação de material e equipamento como da cedência de voluntários para ajudar a fazer os diagnósticos nos hospitais, passando pela produção de vários testes de diagnóstico (neste momento, têm dez mil prontos para serem usados). E, claro, pela participação no tal consórcio que visa testar a imunidade da população portuguesa ao vírus – e que partiu da iniciativa deste instituto. “Esta questão da imunidade é um instrumento essencial para o futuro e achámos que faria sentido reunir as valências de vários institutos para levar a cabo estes testes.”

O iBET, com vasta experiência na produção de proteínas, tem um papel essencial no consórcio “Serology4Covid”, que visa desenvolver testes de imunidade
(Foto: DR)

Neste processo, o Instituto de Biologia Experimental e Tecnológica assume um papel decisivo. É o iBET quem produz a proteína que vai permitir aferir a existência de anticorpos. Como? “Colocamos uma proteína do vírus agarrada à placa e depois o soro dos doentes. Se eles tiverem anticorpos contra o vírus vai gerar-se uma reação”, sintetiza Paula Alves, CEO do iBET. Daí que seja crítico ter este reagente, que é no fundo a proteína que se vai agarrar à placa. É aqui que a “expertise” do iBET na produção de proteínas se revela fundamental. “Há aqui duas componentes essenciais, que nos levaram a aceitar o desafio de imediato. A primeira é a questão da independência, de conseguirmos produzir em Portugal e de não estarmos dependentes do material que vem de fora. Depois, a questão da qualidade. Nós estamos a produzir proteínas em células humanas. Há muitos kits que estão no mercado em que as proteínas são produzidas noutras células e isso pode impactar a qualidade do teste.”

Um “ambiente único”

Na investigação clínica que tem vindo a ser feita em Portugal em matéria de Covid, o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA) assume um papel fundamental. Por um lado, porque é a este organismo que compete validar grande parte do que é feito pelos investigadores em todo o país (foi o INSA que validou o protocolo desenvolvido pelo IMM para a realização de testes de diagnóstico, por exemplo; é ao INSA que competirá também a validação do protótipo dos testes serológicos que estão a ser preparados pelos centros de investigação já mencionados). Por outro lado, pelo trabalho próprio, que está na vanguarda do que se faz em Portugal em termos de investigação clínica. Isto a somar ao trabalho de diagnóstico, assumido desde a primeira hora por este instituto e que continua a ser feito quase 24 horas por dia. Quanto à investigação propriamente dita, João Paulo Gomes, responsável pela Unidade de Investigação e Desenvolvimento do Departamento de Doenças Infeciosas do INSA, destaca três grandes linhas.

Por um lado, o inquérito serológico à população que vai arrancar com um estudo-piloto e que depois será repetido várias vezes com uma amostra populacional mais alargada (“é um inquérito que permite perceber o nível de imunidade da população portuguesa e que pode ter imensas aplicações, desde logo a de perceber o quão gradualmente poderemos baixar a fasquia das restrições”, salienta). Por outro, a já mencionada sequenciação do genoma, que pode ajudar a perceber tanto as mutações sofridas pelo vírus, como o grau de variabilidade do mesmo, passando pela “caracterização do cenário”. “Podemos criar uma base de dados fortíssima, tão forte que consigamos dizer as cadeias de transmissão que se foram estabelecendo, a sua dimensão e a transmissão na comunidade que fugiu ao controlo das autoridades da saúde. Vamos começar a perceber que, se calhar, nos primeiros dias não tínhamos apenas duas ou três cadeias, já tínhamos muito mais. Ou que a transmissão aleatória até começou a ser feita muito mais cedo do que aquilo que achávamos.”

João Paulo Gomes destaca ainda uma terceira linha de investigação em que o INSA está envolvido numa espécie de consórcio onde se incluem vários parceiros (como o i3S e o IGC) e que se centra no estudo do hospedeiro (a pessoa portadora do vírus). De resto, o espírito colaborativo entre os vários cientistas e instituições tem sido o traço distintivo da investigação em Portugal nas últimas semanas. “É um momento único ao nível da partilha de conhecimento”, garante Catarina Oliveira, presidente da Agência para a Investigação Clínica e Inovação Biomédica (AICIB). “Um momento que tem mostrado uma certa generosidade da comunidade científica, de empenhamento na resolução de um problema. Um sentido de missão e uma vontade de pôr ao serviço da comunidade todas as competências.” A própria AICIB, em colaboração com o Ministério da Ciência e Tecnologia (através da Fundação para a Ciência e Tecnologia), tem procurado ajudar na coordenação de todos os esforços que têm vindo a ser desenvolvidos pelos vários centros. O lançamento do portal “Science4COVID-19”, uma plataforma de diálogo entre os vários agentes envolvidos, e a criação de um programa específico de bolsas de doutoramento (“Doctorare4COVID”) são exemplos disso mesmo.

Tudo peças de um puzzle maior que têm colocado Portugal no radar da comunidade científica internacional. Bruno Silva-Santos, do IMM, dá conta de um cenário que dá razões para estarmos otimistas. “Sabendo que não somos líderes mundiais em termos de investigação – esses são a China, os Estados Unidos, o próprio Reino Unido -, mas somos um país que evoluiu imenso na última década e que tem um papel ativo na melhor ciência que é feita a nível internacional. Diria que esta congregação de esforços que tem havido em Portugal vai ajudar a que o país tenha uma contribuição importante nesta luta.”