Chama-me pelo meu pseudónimo

O direito ao anonimato tem sido muito discutido em áreas diferentes (Foto: Zsolt Szigetvary/EPA)

Enquanto tantos tudo fazem para garantir os seus 15 minutos de fama instantânea, uma rara minoria, com obra feita e reconhecida, não se poupa a esforços para assegurar que ninguém conhece a sua identidade. O que leva autores e artistas como Elena Ferrante e Banksy a preferirem o anonimato nesta era da exposição?

Elena Ferrante assinou entre 2011 e 2014 aquela que ficou conhecida como tetralogia napolitana, (“A amiga genial”, “História do novo nome”, “História de quem vai e de quem fica” e “História da menina perdida”) e vendeu mais de dez milhões de cópias em 40 países, mas ninguém sabe quem ela é. Nunca pôs os pés numa feira do livro, nunca se sentou a uma mesa a dar autógrafos, nunca esteve numa conferência a falar sobre a sua obra, nunca foi receber qualquer prémio ou se deixou fotografar e as poucas entrevistas que concedeu ao longo dos tempos sempre foram feitas por email, mediadas pelos seus editores italianos. Nelas admitiu ser mulher e mãe, ter uma infância passada em Nápoles, ser tradutora e ter formação em estudos clássicos. E é tudo. Apesar de um trabalho de investigação de um jornalista italiano ter avançado o nome de Anita Raja – tradutora na editora que publica os livros de Ferrante, casada com o escritor napolitano Domenico Starnone – como Elena Ferrante, isso nunca foi confirmado.

O uso do pseudónimo entre escritores não é invulgar. É um recurso que tem sido empregue para escapar a preconceitos de género, como fizeram as irmãs Brontë ao usarem nomes masculinos; para evitar a perseguição política, caso de François-Marie Arouet, mais conhecido por Voltaire; para ter um nome mais fácil de memorizar e de dizer, como fez Jozef Teodor Konrad Korzeniowski ao escolher assinar como Joseph Conrad; ou mesmo para fazer uma incursão num género literário diferente do habitual – como fez recentemente J.K. Rowling, famosa autora dos livros de Harry Potter, que escreveu policiais sob o pseudónimo Robert Galbraith. No entanto, a maioria dos autores contemporâneos que usam pseudónimo empreendem poucos ou nenhuns esforços para esconder as suas identidades.

As razões pelas quais a mulher que assina como Elena Ferrante se tem empenhado tanto em permanecer uma ilustre desconhecida têm sido fornecidas pela própria em algumas entrevistas: quer preservar o seu espaço criativo livre de pressões e alega que a paixão por escrever nunca coincidiu com o desejo de se tornar escritora. Por outro lado, vê nessa opção uma forma de tornar a escrita, e não a autora, o elemento central e a única forma, de resto, de o leitor a conhecer. “Quando hoje os leitores pensam que estão a conhecer o autor, na realidade eles estão a encontrar um homem ou uma mulher, ricos ou pobres em humanidade, mas que já deixaram o seu papel como autores. O autor [… ] está presente apenas no seu trabalho”, defendeu numa entrevista ao “Sydney Morning Herald”.

A italiana Elena Ferrante coleciona best-sellers sem abdicar do anonimato
(Foto: Gabriel Bouys/AFP)

“Ferrante argumenta que seus livros estão assinados e, portanto, têm uma identificação de autoria, ainda que seja atribuída a um pseudónimo. Por essa lógica, a opção da autora não seria pelo anonimato e sim pela ausência – um conceito complexo, pois não se trata propriamente de uma falta mas de uma outra forma de presença. Sem a figura e a biografia da autora como ponto de partida, o que fica é o texto literário. Ao retirar-se como pessoa, Ferrante presentifica-se, corporifica-se na escrita”, enfatiza Fabiane Secches, psicanalista, crítica literária e professora de literatura brasileira, autora do livro “Elena Ferrante, uma longa experiência de ausência”, recém-publicado no Brasil.

No seu livro, a crítica literária e psicanalista reflete sobre como esta ausência também está espelhada nos livros de Ferrante, tanto do ponto de vista temático como formal. “Desde o primeiro romance, publicado originalmente em 1992, Ferrante está às voltas com essa questão, que parece ter encontrado sua expressão mais importante na tetralogia napolitana, pois o desaparecimento da amiga Lila guia toda a narrativa de Elena Greco. Mas, para mim, a ausência menos óbvia, e talvez por isso a mais interessante, é a da própria narradora, que delega à amiga o protagonismo da sua história.” Algumas teorias avançam que este mistério tem sido alimentado por razões de marketing e como uma forma de potenciar vendas. Fabiane acha pouco provável. “Em tempos de excesso de exposição e de personificação faz sentido que o mistério em torno da identidade da autora tenha despertado curiosidade e interesse. […] Mas é difícil acreditar que, há três décadas, antes de publicar o primeiro livro, Ferrante pudesse antecipar o sucesso editorial que atingiria com a tetralogia napolitana. Estamos diante de um fenómeno de comoção rara. Se é justo argumentar que o uso do pseudônimo contribui para isso, também parece justo dizer que sozinho não se sustentaria”, acrescenta.

Liberdade de expressão e criação

O direito ao anonimato tem sido muito discutido em áreas diferentes. Ele pode ser usado sem escrúpulos para muitos fins ilícitos, dizem uns. Ele é parte integrante da nossa liberdade de expressão, permitindo que se expressem aqueles que não poderiam fazê-lo de outra forma, argumentam outros. Tem vencido sobretudo a segunda visão e muitos têm usado desse direito, do cidadão comum no universo online a Satoshi Nakamoto, o criador da Bitcoin, a moeda eletrónica que permite realizar transações online, que foi um dos indicados para o Prémio Nobel da Economia em 2016 e não se sabe ao certo quem é.

Mais recentemente, esta possibilidade surgiu no meio académico. O recém-criado “The Journal of Controversial Ideas”, que começou a aceitar submissões de artigos em abril deste ano, tem como base precisamente esta hipótese de publicar artigos académicos sob pseudónimo. A ideia surgiu porque uma das impulsionadoras, Francesca Minerva, se viu em maus lençóis em 2012. Publicou no “Journal of Medical Ethics” um artigo intitulado “Aborto pós-natal: por que deve viver o bebé?”, defendendo que, no plano teórico, matar um bebé nos primeiros dias de vida não é muito diferente de fazer um aborto. Alegava que isso pode ser moralmente legítimo, argumentando que os recém-nascidos não podem ser considerados pessoas porque não têm consciência da própria existência. O artigo fez manchetes no Mundo inteiro, houve comoção e ira generalizadas. Apesar de a autora afirmar posteriormente que o artigo foi um “exercício de reflexão teórico e académico, não tendo intenção de defender a prática”, isso não a poupou a uma enchente de ameaças de morte. É por isso que o “Journal of Controversial Ideas” quer oferecer aos académicos a hipótese de apresentarem reflexões controversas sem esse tipo de pressão associada, apesar de esta ideia também não ser aceite por muitos que entendem que a autoria de um artigo académico tem de ser conhecida.

A discussão sobre o direito ao anonimato, no entanto, tem-se mantido mais afastada do campo artístico. Aos artistas sempre foi reconhecido o direito a não divulgarem o seu verdadeiro nome quando produzem arte. E talvez o mais famoso artista anónimo neste momento seja o britânico Banksy. Os seus trabalhos com forte crítica social e política valem milhões, surgem por todo o Mundo, mas sobre a sua identidade apenas se sabe que começou a fazer graffiti durante os anos 1990 em Bristol, a sua cidade natal.

O britânico Banksy invade paredes públicas e galerias, mas prefere que ninguém saiba quem é
(Foto: Thomas Samson/AFP)

Se há uma manifestação artística na qual o pseudónimo é vulgar é na arte urbana, particularmente no graffiti. Ilegal nas suas raízes, forma de rebelião, crítica e sinónimo de resistência à autoridade, o graffiti foi desde cedo marcado pelo uso da tag – o pseudónimo com que o artista assina as criações no espaço público. “Na arte urbana, desde as suas origens, o anonimato é uma questão central. Está associado a um caráter mais ilegal e subcultural da prática, porque aquilo que marca o graffiti enquanto expressão estética urbana é ser uma prática não autorizada nas suas origens”, explica Ricardo Campos, investigador na área de arte urbana que fez a sua tese de doutoramento precisamente sobre a comunidade do graffiti em Lisboa.

Mas isso não quer dizer que o que faz Banksy seja vulgar ou fácil, pelo menos a esta escala. “Nas últimas décadas, a gradual institucionalização do graffiti, ou seja, a passagem ao mundo da arte, dos museus e galerias, determinou uma certa legitimação desta expressão artística. Quando o trabalho se torna conhecido, muitos destes jovens dão o salto para uma carreira artística legitimada e oficializada, deixando de atuar na sombra e na ilegalidade.” Esta transição faz com que a maioria revele a sua identidade porque, diz, “é complicado não o fazerem se querem profissionalizar-se e pertencer a uma comunidade artística. Poucos são aqueles que conseguem manter-se perfeitamente na sombra, como Banksy”.

Heather E. Dunn, professora e investigadora de artes visuais em várias universidades americanas e autora do artigo “Subversão da vigilância: arte de rua anónima, ‘artivismo’ e uso das redes sociais”, vai mais longe. Para ela o uso de pseudónimo não permite apenas ao artista explorar o espaço urbano para veicular mensagens políticas escapando a eventuais multas ou penas de prisão: é um ato de resistência porque lhe permite escapar também à constante vigilância eletrónica. “Numa época em que os metadados são recolhidos sempre que usamos um passaporte, um cartão de crédito ou postamos um tweet, a subversão desses dados pode ser vista como um ato de resistência. Estes artistas usam as redes sociais para promover a sua identidade artística secundária, mantendo secreta a verdadeira identidade”, sustenta a autora à NM. Para que a vida privada se mantenha o mais privada possível e para que a obra possa ser autossuficiente.

O outro lado da fama

“Interesse público” é hoje frequentemente confundido com “curiosidade do público”. Quem é conhecido pelo seu trabalho artístico vê-se a braços com um interesse que abrange a vida pessoal, das amizades aos divórcios, do nascimento de filhos ao restaurante onde almoça. David Giles, professor e investigador em Psicologia dos Media na Universidade de Winchester, no Reino Unido, estudou este tema em 2009, antes da era das redes sociais. Em coautoria com a investigadora americana Donna Rockwell, foram entrevistadas 15 celebridades americanas (cujos nomes não foram revelados no trabalho) e, apesar de nenhuma delas se ter “arrependido” de ser ter tornado famosa, um dos pontos negativos mais apontado por todos, diz-nos David Giles, foi “a dificuldade em manter a sua vida privada fora das notícias, sobretudo por causa do efeito que isso tinha nas suas famílias”.

Apesar de um trabalho de investigação de um jornalista italiano ter avançado o nome de Anita Raja como Elena Ferrante, isso nunca foi confirmado

Hoje, com a explosão das redes sociais, esta relação com as figuras públicas mudou, em certa medida para pior. “Dantes os media tinham de se esforçar bastante para obter este tipo de conteúdos privados: os repórteres ‘acampavam’ à porta de casa das celebridades e os paparazzi usavam teleobjetivas de longo alcance. Hoje é muito mais fácil descobrir coisas sobre a vida privada das pessoas apenas com uma ligação à internet”, lembra o autor. Há uma outra forma pela qual este relacionamento mudou: a verdade é que o público tem acesso direto às figuras públicas. “Posso twittar diretamente para quem quiser e dizer as coisas mais horríveis, dentro do que é legalmente aceitável. As celebridades têm de ter uma carapaça para lidar com isto. E, claramente, nem todas a têm.”