Valter Hugo Mãe

Caxinas no Inverno

Foto: Pedro Granadeiro

Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Alguns cães vão à solta, à sorte, porque os donos adoeceram e não os podem passear. Vão pela porta aberta aonde quiserem e talvez voltem.

O nosso mar de inverno é um bicho bruto que se quer levantar. Partido nos ossos, resfolega ao dorso da terra ameaçando em fúria, vociferando até. A umas ruas de distância, posso ainda assim ouvi-lo da minha janela pela noite. Revolvido sobre si mesmo, incansável, promete uma e outra vez sair do seu lugar.

Começaram as chuvas e os temporais. O vento todo do Mundo vem passar às Caxinas. Passeamos os cães oblíquos pelos nicos de jardins, amortalhados em casacos longos como vestidos para flutuar. Somos à pressa por causa do inverno e por causa do vírus. Mas trocamos cumprimentos como no tempo da escola em que respondíamos à chamada dos professores. Estamos presentes. Notamos, contudo, que este e aquele senhor deixaram de sair. Esta e aquela senhora deixaram de sair. Alguns cães vão à solta, à sorte, porque os donos adoeceram e não os podem passear. Vão pela porta aberta aonde quiserem e talvez voltem. Conheço-os um a um, porque afundam o nariz no meu cão e matutam lá os seus interesses, cheios de pequenas alegrias e zangas. Faço com eles conversas sem sentido para que sintam que alguém os conhece, para que sintam que estão em casa e não cedam à tentação de se afastar e de se perderem.

Acabo de passar um ano sem sair do país. Ainda planeei com amigos conduzirmos até Pontevedra para nos gratificarmos de estrangeiro, a brincar às viagens e a comprar livros em outra língua para aumentar sempre o sonho. Mas pareceu-me, depois, que seria falsear algo também fundamental: exercer Portugal. Com escassas saídas de trabalho, passei este ano nas Caxinas, metido em casa a arrumar a cabeça e a assistir à vizinhança. A possibilidade de criar rotinas acabou por ser magnífica. Saber, com alguma precisão, que repito gestos e acompanho certos interesses é, afinal, uma glória. Reduz o cansaço e promete influir na construção do que queremos tanto construir. Tenho a impressão de que o trabalho se deita como mais linear diante de mim, mais disponível, límpido.

Volto a contar os cães na rua e as ausências. O meu Crisóstomo odeia apanhar chuva. Obriga-me a espiar as abertas constantemente, como se acreditasse que eu tenho feitiço contra o temporal. A sua impaciência é carregada de tiques. Torna-se um diálogo complexo de vocabulário profuso. Pergunto-lhe pelos cães: viste o Bolt? É muito sossegado. Caminha um pouco connosco mas não se afasta dos prédios. Eu acho que o Bolt sabe de todos os cães que se perderam, e sabe de todas as ambulâncias que levaram daqui as pessoas.

Talvez não sirva de muito ao Mundo, mas subitamente me parece que, como o Bolt, conhecer das Caxinas mesmo aquilo que não sabemos falar é muito importante. Ficar aqui um ano inteiro foi muito importante. Nem que para suspeitar de tudo. Nem que para olhar desconfiado para quem aparece e desaparece. Por me comprovar que, se houvesse dúvida, gosto de existir pela existência dos outros. Contra o medo e contra o inverno.

O novo ano tem de ser para maior esperança, nem que mais uma vez imóvel, sem estrangeiro. Apenas a maravilha desafiante das Caxinas e de Portugal.