Valter Hugo Mãe

Carta aberta à Fundação Gulbenkian


Entendi sempre mal porque a Gulbenkian nunca quis marcar presença no Porto. Ao menos, no Porto.

O país que não é o da capital lembra certamente com gratidão e ternura uma Gulbenkian que democratizava o acesso ao livro com suas bibliotecas itinerantes a parar nos cantos das praças, junto das povoações onde tantas vezes não havia mais do que uma papelaria e uma banca de jornais. O livro, como esse reduto de meditação e sapiência, existia raro, precioso, agarrado em oportunidades privilegiadas como se apenas pelo toque já se transmitisse cultura, já fosse um jeito de aprender. Era pela avidez. A severa avidez a que tudo se deixava.

O país que não é o da capital, ainda vasto, tinha na Fundação Gulbenkian uma aliada que se presentificava na mais elementar formação, favorecendo sonho e brio, auto-estima e conhecimento. Encarávamos a Gulbenkian como sendo de toda a parte, ocupada de toda a parte e de todas as pessoas cujas portas do mundo se abriam independentemente da lonjura. Como se não houvesse esquecimento. Apenas contingências. Coisas de estrada e mudanças de casario e paisagem.

Depois, a Fundação Gulbenkian desapareceu-nos da porta. Chegou por algumas edições e virou esse jardim de museus que se visita em grandes férias para ver como na capital há tanta coisa que se diz para todos. São para todos as exposições, a magnífica orquestra, os ciclos de debate, tantos eventos. Andei a perguntar por aqui, e uma quantidade grande de gente foi à Gulbenkian uma única vez na vida e muita gente jamais foi. Até desceram a Lisboa a ver o Chiado, e aos pastéis de Belém, toda a gente visitou os Jerónimos. Eu tenho a impressão de que dizem ter ido à Gulbenkian porque lhes parece impossível não o haverem feito, mas muitos lembram mal. Talvez ainda a confundam com uma qualquer carrinha parada ao canto da praça.

A grande fundação de Lisboa parece esperada por aqui como um amigo que foi embora e se julga que volte. Esperamo-la na normalidade dos hábitos, nisso que faz com que algo seja mesmo de todos, na normalidade dos hábitos, quando está um pouco por toda a parte, por onde vivem as pessoas que, afinal, não existem só em férias grandes nem se podem deslocar a 400 ou 500 quilómetros por qualquer delicadeza de alma.

Entendi sempre mal porque a Gulbenkian nunca quis marcar presença no Porto. Ao menos, no Porto. Não sei se a cidade ainda lhe parece o cinzento de outrora, esse granito resistente que sobreviveu industriando mais e mais. Talvez ainda julgue que pelo Porto não há tempo para considerar uma sinfonia, um quadro de Almada Negreiros, uma conversa com Guilherme de Oliveira Martins. Não que todas as fundações tenham de ter intervenção para lá de suas cidades, mas a Gulbenkian tem a ressonância de haver sido de todos e, de certa forma, passar por uma longa fase de abandono do país que não é o da capital.

Julgo importante que se crie um movimento de sensibilização para a instalação da Gulbenkian no Porto. À medida da maravilha que tem sido a sua acção, e à medida da justiça de se reconhecer uma cidade que está há muito preparada para se erguer em todo o seu esplendor.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)