Rui Cardoso Martins

Boas festas arguidas

Ilustração: João Vasco Correia

Um espírito da época deve ter caído sobre o Campus de Justiça quando lá fui há uns dias, mas era um espírito sem grande espírito. Prático, quezilento, um espírito que falava do Natal mas só queria saber dele para adiamentos, descansos, corrupções sem chama. Nem uma lágrima, um drama a sério, uma alma em risco de se perder. Só uma massa de irritações, despachos ditados por vozes cinzentas como a chuva oblíqua que se esmagava nas paredes de vidro do tribunal. E até começou bem, no 5.º piso. À espera da juíza, um advogado contou de um homem que lhe disse:

– “Sabe que fui agora condecorado no final da minha vida. No final da vida é que uma pessoa é condecorada! E sabe porquê? Entreguei a ferramenta conforme a recebi.”

– Ah, ah, ah, ah!

– “Entreguei a ferramenta conforme a recebi”. Mas temos que ouvi-lo a dizer isto… o homem é um cantoneiro do Porto!

E no banco dos réus vi uma coisa nova. Dois réus, na mais estirada das disposições (como riram da ferramenta do cantoneiro…) passaram o julgamento de perna traçada e computador no colo, um deles lendo os jornais digitais e o outro respondendo a e-mails. A testemunha a falar, supostamente contra eles, e eles na esplanada, apeteceu-me perguntar-lhes se queriam um fino e tremoços. Eram irregularidades nos bombeiros sapadores, encomendas de fardas, mangueiras, luvas, que pelos vistos serviram para encher os bolsos deles. A juíza perguntou à testemunha, funcionária da Câmara:

– Sabe porque é que os arguidos estão a ser julgados? Lembra-se por que foi chamada à Judiciária sobre estes arguidos?

– Por irregularidades processuais. Confesso que já não tenho ideia do quê, exactamente.

– Tem alguma coisa contra os arguidos? Jura responder com verdade?

– Juro.

– Actualmente, mantém algum contacto com os arguidos?

– Não.

– Desde estes factos manteve algum contacto com os arguidos?

– Hum… Telefono ali pelo Natal.

E com esta estrela, a procuradora atacou:

– A senhora é amiga do senhor arguido?

– Sou conhecida. Fui funcionária.

– Então porque é que lhe telefona para desejar bom Natal?

– É uma cortesia.

– E faz essa cortesia a toda a gente?

– Não. Mas trabalhou no meu sítio muitos anos.

– Mas trabalhou com muito mais gente e não o faz.

– Não o faço?! Faço!

Passei por lá depois e ainda discutiam procedimentos, notas de encomenda e o pequeno inferno que é a corrupção nos serviços de protecção civil. Desci de piso, onde um juiz adiava a sessão para 30 de Dezembro e uma senhora entrava em choque festivo.

– Senhora M., não podemos fazer a sessão hoje, está bem?

– Não pode?

– Não.

– Porquê?

– Porque a médica não está cá, a médica está de férias.

– Qual médica?

– A médica assistente está de férias, portanto a senhora fica já notificada para cá comparecer.

– Quando?

– No dia 30 de Dezembro, porque a médica vai estar de férias.

– Não pode ser uma semana mais tarde?

– Não.

– Agora é na altura do Natal.

– A médica está de férias. E não é no Natal, é dia 30.

– É 30, sim, mas agora é uma altura… não é possível ser para Janeiro?

– O processo é urgente. Fica designado para dia 30, está bem?

– Não pode ser para dia 3 de Janeiro?

– Ouça, eu já marquei a diligência! 30 de Dezembro às 14 horas, está marcada a data. Um resto de bom dia.

A senhora levantou-se, olhou para mim e sussurrou “o parvo…” para onde desaparecia o juiz. Lá fora, até os óculos suavam:

– Horas à espera. E essa médica é uma bruxa. É horrorosa. Eu vou mudar. Eu queria ir passar o ano ao Algarve!

Já não vai. Quem for, cautela na estrada.