A sardinha é rainha da costa nacional, o bacalhau vem de outros mares. Uma e outro dominam a gastronomia e trazem consigo muita história que ajuda a explicar quem somos. Qual dos dois representa melhor o sentimento de portugalidade? Chefs e outras figuras públicas dizem de sua justiça. E escolheram um vencedor, claro.
No século XIX, numa carta desabafo ao amigo e também escritor Ramalho Ortigão, Eça de Queiroz descrevia (e descrevia-se): “Sou em quase tudo um francês – exceto num certo fundo sincero de tristeza lírica, que é uma característica portuguesa, num gosto depravado pelo fadinho e no justo amor do bacalhau de cebolada”. Apaixonado por bacalhau, que não podia comer em doses abundantes dada a frágil condição de saúde, Eça deixou expressa tal paixão em páginas de odes ao prazer e à gula em várias das suas obras, como “Os Maias”, “O primo Basílio” ou “Correspondência de Fradique Mendes”. Igualmente no século XIX, Rafael Bordallo Pinheiro, criador do célebre boneco Zé Povinho, concebeu sardinhas em faiança, com várias formas e alusões, numa tentativa de fazer perdurar no tempo a identidade nacional, ainda hoje reproduzidas em massa pela fábrica a que deu nome, nas Caldas da Rainha, agora em modelos de fulgor contemporâneo.
Bacalhau e sardinha estão historicamente atravessados no espírito luso. As diferentes gerações recusaram atrever-se a apagar estas tatuagens cravadas na História; da mesa à literatura, da arte ao sentimento. O bacalhau, porém, triunfa no prémio de melhor representante do que é ser português, assim o decidiu um grupo de “árbitros” contactados pela NM para um embate tão épico. Uma vitória que não chega a ser por KO mas que ameaça a goleada. Sustentam-no chefs com marca registada de prestígio escrito a estrelas Michelin e outras personalidades de diversas áreas a quem desafiámos para juízes desta causa nacional.
“Não há cozinha que consiga dispensar o bacalhau, nem restaurante que se atreva a isso. É impossível, porque o bacalhau é indissociável da nossa cultura”, defende Henrique Sá Pessoa, responsável pelo restaurante Alma, em Lisboa. “No estrangeiro perguntam-nos sempre pelo bacalhau, ligam-no imediatamente a Portugal, a ser português. Além de que é o prato tradicional da noite de Natal”, sustenta. Com efeito, assim é desde a Idade Média, quando o jejum de carnes imposto pela Igreja Católica para a época natalícia levou a que a população procurasse um peixe de preço acessível que pudesse ser conservado em quantidades familiares e com qualidade suficiente. Fácil adivinhar em qual recaiu a escolha, não é? Até hoje.
“Enquanto a sardinha não é capturada o ano inteiro, o bacalhau chega dos mares do Norte em qualquer altura. Como é seco, é facilmente transportável para todos os pontos do país e pode ser cozinhado das mais diversas formas conforme as diferentes tradições regionais. Não é à toa a expressão ‘1001 receitas de bacalhau’”, descreve, por sua vez, Tiago Bonito, do Largo do Paço, restaurante do Hotel Casa da Calçada, em Amarante. “Ao contrário da sardinha, o bacalhau levou a um enraizamento transversal e mais abrangente na nossa cultura gastronómica e não só, daí ser mais português apesar de não o ser, o que é paradoxal e curioso.”
Em Trás-os-Montes, território marcante da interioridade portuguesa, o bacalhau é igualmente indispensável marca de orgulho pátrio. Na Pousada de São Bartolomeu, em Bragança, onde os irmãos António e Óscar Gonçalves transformaram o G Pousada em premiada referência internacional, faz parte de um menu moderno que combina com um passado rico de sabores. “O bacalhau é o mais democrático possível. Por ser acessível, por ser tradicional, por poder ser consumido em todas as épocas, por continuar a ser fonte de inspiração para uma cozinha contemporânea sem que a sua ligação histórica possa ser ignorada”, afirmam os manos Gonçalves. “A sardinha é específica das festividades dos santos. Para mais, continua associada a uma época de má memória, o Estado Novo, em que era muitas vezes o único sustento alimentar das famílias mais pobres.”
António Loureiro, do restaurante A Cozinha, em Guimarães, considera o bacalhau “o mais disponível” dos peixes. “Porque é o que nos leva a ser mais portugueses, dado que pode ser encontrado de norte a sul e cozinhado das formas mais imaginativas e originais.” Mais uma vez a sardinha é relegada para um patamar inferior, o das “escolhas sazonais”, logo “menos apetecível” e, por isso, não tão capaz “em termos de tradição” e insuficiente para poder ser considerada “uma espécie verdadeiramente nacional no seu todo”.
Da saúde à política
A nível de saúde, a inclinação é igualmente clara. O médico Fernando Póvoas não duvida que o bacalhau está no topo dos topos. “Ninguém o seca, o prepara e o cozinha como nós, de forma tão variada e criativa. É do país todo e pode ser consumido de janeiro a dezembro, ao passo que a sardinha é temporária e somente associada às terras costeiras e aos santos populares”, refere o clínico especialista em dietas nutritivas. “Por ser menos gorduroso do que a sardinha, é, também, mais aconselhável”, sustenta.
Até em termos políticos o bacalhau vence batalhas à sardinha, nomeadamente nas relações com o maior aliado histórico de Portugal. “Foram os ingleses os primeiros a fazer chegar bacalhau aos portos portugueses, o que levou ao fortalecimento das relações entre Lisboa e Londres. Nós só o passámos a pescar na Terra Nova a partir da segunda metade do século XIX”, menciona o historiador Joel Cleto. “Antes de ser militar, a conexão entre os dois países começou por ser comercial, precisamente por causa do bacalhau”, lembra. “A sardinha é marcadamente do mar português, sim, mas nunca teve tanta aceitação, nem assumiu tanta importância como o bacalhau na nossa dieta.”
Para a jornalista Clara de Sousa, também conhecida pelos dotes culinários, a abrangência territorial do bacalhau, contrariamente à do peixe rival, reforça a ligação umbilical a um país que originalmente não lhe pertence. “A sardinha tem menos presença, logo perde imediatamente destaque. Em termos identitários, culturais e, até, religiosos, o bacalhau está muito mais integrado e marcado em momentos importates da vida dos portugueses.”
No livro “O consumo de pescado e a internacionalização do setor das pescas em Portugal”, do economista António Pinho, ficamos a saber que, em 2017, cada português ingeriu, em média, 22 quilos de bacalhau e apenas 2,4 quilos de sardinha. Médias que ajudam a cimentar os portugueses como os maiores consumidores per capita de bacalhau a nível mundial e como os que mais peixe comem em termos absolutos na União Europeia (UE), qualquer coisa como 61,5 quilos individuais ao ano. Na dianteira a nível global só mesmo a Noruega, com 66,6 quilos, e a Coreia do Sul, com 78,5, conforme lembra a Associação dos Comerciantes de Pescado.
Bacalhau na costa portuguesa, contudo, é fenómeno impossível de descortinar. É-nos trazido desde os mares gelados do norte da Europa, sobretudo das costas da Noruega e da Islândia. Em 2019, dizem os últimos dados das “Estatísticas da Pesca”, publicados em 2019 pelo Instituto Nacional de Estatística e pela Direção-Geral de Recursos Naturais, Segurança e Serviços Marítimos, chegaram a Portugal 28 543 toneladas de bacalhau congelado e 35 883 de bacalhau salgado seco.
A defesa da sardinha (e um empate)
Há exceções à regra dos defensores de que o bacalhau é rei e senhor das mesas e do espírito português. A artista plástica Joana Vasconcelos não tem dúvidas quando a decisão é escolher uma marca identitária que defina o país e os seus. “A sardinha existe nas nossas águas, é mesmo nossa. É verão, é prosperidade, tem raízes ligadas à cultura, à riqueza do mar português. Está ainda ligada aos santos populares, festas únicas de ligação com o exterior”, define. “Não foi por acaso que Bordallo Pinheiro a escolheu como símbolo.”
A fadista Cuca Roseta segue a mesma pauta, a da união inseparável entre a sardinha e os santos que fazem a festa dos portugueses. “Há um lado emocional e típico que o bacalhau não consegue ter”, refere. “Esse facto torna-a um marco maior, próximo daquilo que é a nossa tradição e que são as nossas raízes.”
O chef Rui Paula, mestre responsável pelas cozinhas de espaços como o DOP, no Porto, e a Casa de Chá da Boa Nova, em Leça da Palmeira, é da mesma opinião. “A sardinha é portuguesa, ponto final. É popular e, ao contrário do que muita gente imagina, pode ser comida de diversas formas, não apenas grelhada ou assada”, defende. “Acaba até por ser estranho, quase irritante, que, com uma costa tão variada de peixe como é a costa portuguesa, elejamos como referência uma espécie que vem do norte da Europa.”
E há quem não consiga dividir águas. “Optar por um ou por outro é como querer separar o vermelho e o verde da bandeira de Portugal. A identidade nacional não se quantifica, qualifica-se”, entende Carlos Queiroz, treinador de futebol que, entre outras façanhas, deu ao país os primeiros e, até agora únicos, títulos mundiais de futebol em sub-20, em 1989 e 1991. “Bacalhau e sardinha são tão simbólicos da nossa identidade que isolados perdem o seu valor histórico.”
De novo segundo as “Estatísticas da pesca” atrás referidas, das 188 537 toneladas de pescado capturadas pela frota portuguesa em 2019, 9 700 foram de sardinha. Um ligeiro decréscimo em relação a anos anteriores que, ainda assim, não retira a sardinha da lista das espécies piscícolas mais procuradas pelas embarcações, apenas batida pela cavala (46 314 toneladas), o carapau (17 167), o atum (9 996) e o biqueirão (9 115). Sazonal, é verdade, continua indispensável na dieta portuguesa. No braço de ferro com o bacalhau é que não consegue levar a melhor. Bem tentou Rafael Bordallo Pinheiro que assim não fosse…