Azeite: O fio de ouro que enche as mesas de sabor

Apanha da azeitona na Herdade da Urgueira

Das oliveiras para os lagares, o azeite é o que segura dezenas de produtores na Beira Baixa. Um amor que durante anos andou adormecido. Mas nunca deixou de ser rei na mesa de Natal. E ao longo de todo o ano. Em época de campanha, carrega-se no acelerador.

Debaixo da sombra de uma oliveira, que tem espaço de sobra para se mostrar na terra, Carlos Lourenço atira um número: “Isto tem 620 hectares ao todo, três ou quatro mil oliveiras”. Algumas carregam nos troncos mais de mil anos. “Quando comprei a herdade, já as conheci assim.” Em jovem, Carlos não quis o trabalho que o pai lhe arranjou num banco. “Não me faça isso”, pediu-lhe. “Tudo menos fechar-me dentro de um gabinete.” O lugar dele é com as mãos na terra. E sempre foi. É o pai, João Lourenço, de 82 anos, quem conta a história. “Comecei com a minha mulher a comprar uns olivaizinhos, numa altura em que davam muito rendimento. E ele, quando andava a estudar, vinha da escola a correr ter connosco à terra. Já puxava para isto.” Em Vila Velha de Ródão, a família tem um olival tradicional, com árvores espaçadas a perder de vista. Parece cenário de filme. Por esta altura, colhe-se a azeitona para fazer o azeite. Carlos finca os pés no terreno. “Isto agora é dia e noite de trabalho.” Contratou oito homens – indianos que trabalham na agricultura portuguesa – para a época da apanha. Arrancou, como manda a velha tradição, no Dia de Todos os Santos, e já está prestes a acabar. “Aqui há muito pouca mão de obra”, queixa-se. Usam varejadores para fazer tombar a azeitona nas redes estendidas no chão, que depois são arrastadas para encher caixas e caixas.

João e Carlos Lourenço, pai e filho, recuperaram um antigo olival, onde têm algumas árvores milenares

De boina na cabeça e olhos claros, aos 55 anos, Carlos tem as mesmas certezas que tinha quando, no pico da juventude, decidiu fazer vida na terra, debaixo de sol. Não esconde o orgulho em ser “nascido e criado na aldeia do Tostão, rodense de gema”. Herdou a paixão pelos olivais dos pais, mas transformou as pequenas parcelas de terrenos que a família tinha em algo mais. “Quando quis fazer isto a sério, acabei a Escola Agrária em Castelo Branco e adquiri estas propriedades, em 1986. Dedico-me a isto a 101%.” Era um antigo olival, que estava ao abandono, sinal dos tempos em que os olivais intensivos de variedades espanholas apareceram e roubaram rendimento aos antigos produtores que acabaram a desistir. Mas as oliveiras, essas, resistiram até voltarem a ter dono.

A azeitona Galega, a variedade mais comum em Portugal e típica da Beira Baixa, é a menina dos olhos de Carlos. Também tem outras. E criou a própria marca de azeite, o Portas de Ródão. “Vendemos onde nos queiram comprar”, brinca João, que ainda dá uma mãozinha ao filho. “Estou melhor aqui do que no sofá. Mas é preciso ter garra para isto, não é para todos.” As mais de oito décadas de vida permitem-lhe lembrar-se de quando, “há uns 40 ou 50 anos, o azeite de Vila Velha de Ródão foi considerado o melhor do Mundo”. Mas 2020 não foi bom nem para a azeitona. A colheita “está fraquíssima”. “É o ano mais pequeno desde 1989. As árvores são as mesmas. Estão bonitas, mas não deram este ano”, lamenta João.

A azeitona Galega é a variedade mais comum em Portugal e é típica da Beira Baixa. Tem um ligeiro aroma avinhado

Depois de um 2019 em que as terras da família renderam mais de cem toneladas de azeitona, este ano só devem chegar às 30. Carlos faz a conta de dividir num ápice: umas dez vão para conserva e 20 para azeite. Quase nem precisa de parar para pensar. “Isso dá uns 2 500 litros de azeite.” Nem as oliveiras mais jovens, que contam pouco mais de duas décadas, parecem ter rendido. Joaquim Martins, de camisa ao xadrez e boné azul, anda de volta delas. Trabalha nas terras de Carlos desde 1998. “Com 11 anos já eu andava a carregar sacos de azeitona.” Aos 63, ainda não perdeu a força para apanhar o fruto e tem a sabedoria que só a experiência traz. “O calor deste ano apertou muito com a azeitona”, constata.

Da azeitona ao azeite

Mas ela tem chegado na mesma, a conta-gotas, ao lagar da Cooperativa de Azeites de Ródão. Os produtores carregam para ali em tratores a azeitona que colhem. E despejam-na em barricas para ser pesada, de 150 em 150 quilos. Filipe Silva, engenheiro agrícola e responsável pela cooperativa, trata do resto. Tem 40 anos, está ali há cinco a transformar a azeitona no azeite que chega à mesa. Só aceita variedades autóctones. “O azeite foi uma oportunidade que agarrei. A minha família teve experiência em azeitona. E não estou nada arrependido.” Depois de o fruto ser despejado, percorre um tapete para fazer a limpeza de paus, folhas, pedras. A azeitona mais pequena é aproveitada para azeite, a maior é para conserva. “Este ano há pouca, é de contrassafra. Está boa para conserva.”

No olival tradicional, a apanha da azeitona é feita por varejamento. A campanha da colheita está prestes a acabar

De tal forma que o preço já subiu. Em 2019, rondava os 50 cêntimos por quilo. Em 2020, está nos 80 cêntimos. Este ano, são precisos sete a nove quilos para produzir um litro de azeite. De um reservatório gigante onde o verde salta à vista, a azeitona caminha para as máquinas de moagem. É um autêntico moinho, em que as pás, ao longo de 40 minutos, transformam a azeitona numa pasta cor de vinho. Quando se tratam de azeites DOP (Denominação de Origem Protegida), feitos a partir de azeitona selecionada, ela é moída à parte. Na cooperativa, já todo o sistema é automatizado. A partir daqui, as centrífugas separam a polpa e o caroço da parte líquida, o azeite e a água. E só no final, na extração, se separa a água do azeite. “É extraído a frio, abaixo de 30 graus. Desta forma, perdemos muito, mas temos mais qualidade. Quando ultrapassa os 30 graus estamos a cozinhar o azeite e altera muitas características boas.”

Filipe levanta o copo, para o cheirar e beber. “Sente-se o picante, o verde, os amargos”, descreve. Enquanto isso, Luís Ribeiro, que trabalha na cooperativa na época da produção há 12 anos, vai tratando das máquinas. “Venho aqui fazer o meu part-time. São uns dois ou três meses.” Os cabelos brancos denunciam-lhe a idade. Tem 70 anos, já foi mestre lagareiro noutros tempos. “Era tudo à mão, muito mais difícil.” Promete que em 2021 não estará ali, está “cansado”. Diz isso todos os anos, mas ver o azeite a nascer está-lhe nas entranhas. “Gosto disto, gosto deste serviço.”

Filipe Silva prova o azeite e repete o processo a cada produção, no lagar da Cooperativa de Azeites de Ródão

Cerca de 70% do azeite vai para os produtores, o resto a cooperativa vende com a sua marca estampada, Rodoliv. “Vendemos muito para turistas espanhóis, que nos visitam. E o nosso azeite corre o Mundo, à conta dos sócios”, diz Filipe. Uma garrafa pode ir dos dois aos 15 euros.

Num olival intensivo nasce o Fio da Beira

João Domingos anda numa correria, na cabeça traz uma proteção para os ouvidos. Para sobreviver ao barulho que se vive dentro do lagar onde, por esta altura, chega a passar 48 horas sem ir a casa. Está instalado junto ao olival intensivo de 600 hectares. Era um antigo pinhal, em Castelo Branco, que foi transformado e onde agora cabem mais de 200 mil oliveiras. A azeitona já está madura, enche dezenas de barricas por toda a herdade. Pega num molho delas: “Olhe que lindas, esta é Galega. Isto é uma relíquia que temos aqui”.

Ali, de onde se avista a serra da Estrela entre as coroas esverdeadas das oliveiras, nasce o azeite Fio da Beira, projeto que arrancou em 2007. “Só temos variedades portuguesas de azeitona.” A primeira extração de azeite foi há sete anos. “Hoje em dia, o mercado está muito mau. Os preços estão baixos, o nosso olival é moderno mas tradicional ao mesmo tempo, e as quantidades produzidas são diferentes das dos olivais do sul.” É assim que João, diretor de produção, explica por que tem vindo a apostar mais na azeitona para conserva. “Colhemos em fresco e escoamos no próprio dia para unidades conserveiras.” Mas não deixa esmorecer o amor ao fio de ouro que nunca falha presença à mesa dos portugueses. “Já estamos no fim da campanha”, revela.

João Domingos trabalha no mundo do azeite há 15 anos. Este ano, a colheita deu 1 500 toneladas de azeitona

João tem 45 anos, anda nesta vida há 15. Foi ele quem desenhou o lagar onde põe mãos à obra. Tem duas linhas de extração, azeites maduros e verdes, e capacidade para moer sete mil quilos de azeitona por hora. As máquinas são gigantes, o cheiro é intenso. João é despachado, inconformista, apaixonado pelo que faz. Acompanha o processo de produção desde a oliveira até à garrafa de azeite. “Este ano, temos 1 500 toneladas de azeitona. 80% da produção vai para conserva, 20% para azeite.” Azeite que já várias vezes foi premiado pela sua qualidade. E ele leva isso muito a sério. “Na região e a nível nacional há poucas pessoas novas a trabalhar nesta área. Os que há competem por prémios, como no futebol. Mas todos nos conhecemos, todos somos amigos.”

O orgulho que sente é por si e pela Beira Baixa que, durante muito tempo, apesar dos bons azeites, foi parente pobre no reconhecimento. Mas só até os produtores se rejuvenescerem e ganharem fôlego para se mostrarem ao Mundo. “A região tinha bons azeites, mas não existia reconhecimento. Os produtores mais jovens começaram a meter-se no meio dos grandes.” Em boa hora. “Ver o nosso nome ganhar um prémio, ao qual chegam a concorrer mil azeites, é bom.”

Mas gosta do que faz? “Que remédio tenho eu. É preciso gostar para fazer isto. Ontem saí daqui à meia-noite e às 7.30 horas já tinha as máquinas a trabalhar. Vir para esta profissão e fazer um horário de oito horas? Isso não existe.”

Uma mulher num mundo de homens

Num mundo de produtores homens, está uma mulher que, aos 20 anos, teve de batalhar para se encaixar. “Agora já é um bocadinho diferente. Há 17 anos, quando comecei, era a única mulher”, recorda Ana Sofia Domingos, engenheira e técnica da Associação de Produtores de Azeite da Beira Interior. Perdeu a conta às vezes que ouviu o mesmo discurso: “Menina, quem sabe fazer azeite sou eu”. Acompanha 45 lagares, sejam cooperativas ou privados, 120 olivicultores, nos distritos de Castelo Branco, Guarda e no concelho de Mação.

Ana Sofia não se deixou intimidar. “A minha dificuldade foi normal. A maior parte dos lagares da Beira Baixa são de homens de idade, que seguem técnicas já muito enraizadas.” Hoje, começam a surgir produtores mais jovens e algumas mulheres na apanha da azeitona.

A engenheira Ana Sofia Domingos acompanha 120 olivicultores. Começou aos 20 anos e hoje é respeitada no meio

“As pessoas já começam a olhar para o lagar como indústria alimentar. E a pôr gente mais nova a integrar a produção. Só que ainda é um setor difícil. Muita gente deixa azeitona na árvore por não ter mão de obra. Porque é um trabalho sazonal, que funciona no inverno, e porque nem toda a gente gosta de trabalhar dentro dos lagares.”

Ainda assim, na Beira Baixa, as plantações de olivais têm vindo a aumentar, algumas antigas estão a renascer. Em 2021, vão apostar mais na produção de azeite biológico e também se preparam para certificar a azeitona Galega. Há três produtores nesse processo, depois de um 2020 fraco. “Este ano, há pelo menos 35% de quebra de produção. Na altura da floração, tivemos muitas chuvas. E, agora, a Galega amadureceu muito rápido”, resume a engenheira. E as quebras estendem-se a todo o país.

No lagar, mede-se a temperatura do azeite. A extração não deve ser feita acima dos 30 graus, para não perder sabores

“A nível nacional temos azeites muitos bons, o que os distingue são as variedades que existem nas diferentes regiões.” Da Galega, presente sobretudo na Beira Interior, à Cobrançosa, de Trás-os-Montes, Cordovil, da zona de Moura, ou Verdeal, que se encontra no Alentejo. O país é o oitavo maior produtor de azeite do Mundo. Em 2019, segundo o INE, Portugal produziu 145 mil toneladas, o recorde de produção dos últimos 80 anos. Um número diferente do de há duas décadas, quando há registo de 22 mil toneladas.

O azeite tornou-se num ativo que vale a pena promover, até através do turismo. E nisso a Comunidade Intermunicipal da Beira Baixa (CIMBB) tem feito trabalho. Criou, há um ano, a Rota do Azeite da Beira Baixa, com o mote “3 Dias. 3 Experiências”. Hélder Henriques, da CIMBB, diz que a ideia “é chamar pessoas à Beira Baixa”. Pode visitar-se um lagar, um olival e até experimentar a apanha de azeitona nesta época. A Beira Baixa foi a segunda sub-região do Centro mais visitada por turistas em agosto. E a Rota do Azeite está no Top 10 do Prémio Nacional de Turismo na categoria de Turismo em Rede.

A pasta de azeitona moída a martelo cai sobre os capachos, que depois são encaixados numa prensa tradicional

Carlos Lourenço, o produtor de Vila Velha de Ródão que se mantém fiel ao olival tradicional, apostou nisso. Na Herdade da Urgueira, possui um alojamento que é um hino ao olivoturismo. Recuperou uma propriedade em ruínas e criou sete apartamentos, uma suíte e quatro quartos no lugar onde pernoitavam, antigamente, os trabalhadores agrícolas. Todos decorados com temas ligados à olivicultura. No restaurante, serve o seu queijo – tem duas mil ovelhas – e, claro, o seu azeite.

Mestres lagareiros resistem

Enquanto os lagares se modernizam, em Oleiros, ainda há quem acredite mais na tradição do que na tecnologia. “Isto aqui é tudo à antiga.” É Eduardo Santos, mestre lagareiro, quem o sublinha no lagar onde o azeite ainda se faz com a força do corpo. “Isto é muito trabalhoso. Tem que ser feito com gosto. Agora as máquinas fazem tudo. Mas o azeite aqui ainda tem um bocadinho de borra no fundo, porque não sou uma máquina.”

De bigode farfalhudo e touca na cabeça, Eduardo conta 55 anos. Tem outros dois homens a trabalhar consigo. “Trabalhamos das sete às sete.” A pasta de azeitona moída cai sobre uns capachos, que encaixam uns nos outros numa prensa. “O que escorre é o azeite. Depois bato com um pau e deixo a repousar sobre os canos de água quente. Ao fim de 24 horas, está amarelinho”, pormenoriza. No final, decanta o azeite. “Ele vem ao de cima da água. Este é para vender amanhã.”

Eduardo Santos, mestre lagareiro em Oleiros, ainda decanta o azeite como se fazia antigamente

O mestre trabalha para João Marques, que, com 38 anos, é dos mais jovens produtores na região. Era professor de Educação Física, mas herdou o olival, o lagar e a paixão do sogro. E dedicou-se a ele. Preservou a marca Casa Fernandes. “Quero que este azeite se diferencie. Ainda utilizamos a moagem a martelo, prensas, decantação, porque acredito muito no modo artesanal.” Nem o fogo de 2017 que lhe incendiou parte do lagar e o olival o fez baixar os braços. Plantou 15 hectares de olival semi-intensivo, tem 30 no total. Só de azeitona Galega.

No lagar, produz o próprio azeite e o de outros 200 a 300 produtores que carregam para ali sacos e sacos de azeitonas. “Tento sensibilizar para trazerem logo a azeitona, não pode passar muito tempo desde a apanha à produção.” João gosta de a colher mais madura, para criar um azeite suave e doce.

João Marques, um dos mais jovens produtores, é fiel ao método artesanal e valoriza a figura do mestre lagareiro

“Temos que mostrar o que se faz no Interior. Espero daqui a dois anos apostar na internacionalização.” O único segredo de João é o mesmo que o de todos os produtores da Beira Baixa: o amor ao ouro da cozinha. Um amor que pode ainda não ser capaz de competir com a tecnologia do Alentejo ou com a fama de Trás-os-Montes. Mas que não querem largar.

À lupa

Qual o melhor para cozinhar e para temperar?
O Virgem é ideal para cozinhados, o Virgem Extra para temperar. Mas, para quem quer ir mais longe, as variedades da azeitona e a zona onde são produzidos têm dedo no sabor. Azeites maduros têm sabores mais suaves e doces. Azeites verdes são mais amargos e picantes.

Quais as diferenças entre os azeites?
O azeite Lampante é o de menor qualidade, tem sempre um grau de acidez superior a 2% e tem defeitos no paladar e no olfato. O Virgem, apesar de ser de qualidade, tem um grau de acidez entre os 0,8% e os 2%. E o Virgem Extra tem as melhores propriedades, a acidez não ultrapassa os 0,8% e os defeitos são inexistentes.

O que é um azeite DOP?
Um azeite DOP (Denominação Origem Protegida) só usa variedades de azeitona regionais. Portugal tem seis zonas de produção de azeite DOP: Trás-os-Montes, Beira Interior, Ribatejo, Norte Alentejano, Alentejano Interior, Moura.