As vidas dos universitários estrangeiros

Deixaram os seus países e estão a terminar os estudos em universidades portuguesas. Uns vão regressar, outros ponderam ficar. Um dia, Walter Guimarães voltará a Angola como engenheiro para trabalhar em refinarias. Óscar Borges, cabo-verdiano, tentará o doutoramento. Achilles Nascimento regressará ao Brasil, Analú, do Rio de Janeiro, ficará. Maria Omaña, da Venezuela, promete não desistir de ser atriz.

O dia está marcado na memória: 12 de setembro de 2014. Tinha 18 anos, estava pela primeira vez em Portugal. Aterrou em Lisboa vindo de Luanda, ficou cinco dias na capital, partiu para Aveiro. Quando pisou solo português, pensou com os seus botões: “Existe um mundo fora de Luanda, existe um mundo fora de África”. Como o primeiro dia do resto da sua vida.

Walter Guimarães, 24 anos, finalista da licenciatura com mestrado integrado de Engenharia Química da Universidade de Aveiro (UA), quer ganhar experiência no mercado de trabalho antes de voltar ao seu país. “Gostaria de contribuir para o desenvolvimento de refinarias em Angola.” Partirá como se não tivesse partido. “Irei para Angola, mas não deixo Portugal de vez, Portugal já faz parte de mim.” E não esquece o primeiro dia de aulas. Quando viu tantos trajes negros sentiu-se num filme de Harry Potter. “Todo o mundo de capa preta e ninguém me avisa?” Ri-se ao lembrar aquele momento.

Estudar fora do país fazia parte dos planos com todo o apoio dos pais. “O facto de contactar com outras realidades, outras culturas, outro povo, contribui muito para o desenvolvimento humano. Sempre idealizei uma evolução pessoal muito grande. Desenvolvi as minhas capacidades para depois, no futuro, poder contribuir para o desenvolvimento do meu país.”

Aprendeu francês, a tocar guitarra e piano, gosta de jogar à bola com os amigos. Adora a comida, acha o turismo espetacular, aprecia a proximidade, tudo é perto, Aveiro, Porto, Lisboa, num estalar de dedos. Mora numa residência, a bolsa que ganhou em Angola paga-lhe as propinas. Faz parte da comissão das residências académicas desde que chegou, fez parte de um núcleo da comunidade de língua portuguesa da associação de estudantes. Sempre disponível para ajudar.

“Irei para Angola, mas não deixo Portugal de vez, Portugal já faz parte de mim”, reconhece Walter Guimarães, angolano, finalista da licenciatura com mestrado integrado de Engenharia Química da Universidade de Aveiro
(Foto: Maria João Gala /Global Imagens)

Walter Guimarães está nos 12% de alunos estrangeiros da UA, de mais de 90 nacionalidades. Ganhou uma bolsa, escolheu Portugal, optou por Aveiro, selecionou a engenharia do seu coração. “É uma boa universidade, as opiniões são muito positivas, estou num contexto em que o desenvolvimento técnico é muito vivido, muito sentido.” “A cidade é acolhedora para estudar, tem o seu charme característico, a Veneza de Portugal. Os professores estão sempre disponíveis, sempre prontos a ajudar no que está ao seu alcance. A convivência com os colegas é muito boa.” Os avisos não se confirmaram. “Não tenho sentido na pele aquilo que ouvia: cuidado com o racismo, cuidado com a discriminação. As pessoas receberam-me super bem.”

Mais a norte, está Óscar Borges, cabo-verdiano de 23 anos, finalista do mestrado integrado em Engenharia Mecânica na Universidade do Minho (UM), no polo de Guimarães. Já conhecia Portugal. O pai tirou o mestrado em Estatística e o doutoramento em Engenharia Civil em Coimbra. O irmão mais velho tirou Gestão de Empresas na Lusófona em Lisboa. Durante as férias, habituou-se a andar entre a Cidade da Praia, capital cabo-verdiana, e Portugal.

Anda à volta da tese, terminará o mestrado em julho de 2021. Quer tirar um doutoramento na mesma área na parte de energia ou em Gestão. Se não conseguir, analisará outras possibilidades. Ficar em Portugal se conseguir um emprego, partir para outro país se receber uma boa oferta. Ou voltar a Cabo Verde. Óscar Borges sonha alto. Ambiciona ter um cargo no Ministério da Energia e Geologia do seu país, ser ministro, quem sabe, ou criar a sua própria empresa, ou até abrir um centro de formação para alunos que não tenham oportunidade de sair de Cabo Verde.

Óscar Borges, cabo-verdiano, é finalista de mestrado na Universidade do Minho. O pai e o irmão mais velho também estudaram em Portugal
(Foto: Miguel Pereira/Global Imagens)

“Aqui é muito mais exigente, muito melhor em termos de ensino e de condições para estudar. O Governo de Cabo Verde, com esta questão da pandemia, não tem condições para colocar internet em todas as casas”, comenta. Chegou à universidade com duas semanas de atraso por causa do visto. Partilha um apartamento com colegas do mesmo curso e do mesmo país, as propinas são pagas pelos pais, um valor que tem vindo a descer, não chega aos 700 euros por ano, fruto de um acordo de cooperação. A adaptação correu bem. “É uma gente muito simpática, muito tranquila, cinco estrelas a receber.” O clima é outra história, falta-lhe aquele calor africano. Só conhecia o verão português. “Para estudar é uma coisa, para passar férias é outra.” Gosta da comida, dos sítios para passear, joga futsal e basquetebol com os amigos. São seis anos de Portugal e vontade de ficar.

Ensino, qualidade de vida, segurança

O número de alunos estrangeiros no Ensino Superior tem aumentado. Eram mais de 58 mil, cerca de 15% do total, no ano letivo de 2018/19. Em 2014/15, eram cerca de 33 mil. Analú Brum faz parte do primeiro número. É brasileira, do Rio de Janeiro, tem 25 anos, finalista de Engenharia Metalúrgica e de Materiais da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP). “Sempre quis fazer engenharia, desde que me entendo como gente, trabalhar com tecnologia.” Está quase.

Chegou ao Porto em agosto de 2017, oito meses depois de ter passado férias com a família em Lisboa e no Alentejo. Adorou Portugal, sempre quis vir estudar para a Europa, encontrou a FEUP numa feira de intercâmbio no Rio. “Adorei a faculdade, vi o que era preciso fazer para vir para cá, e fui avisando a família que me ia mudar.” Na verdade, “foi uma combinação de vários fatores, a qualidade de vida e o ensino em si”, acrescenta. Está nos 13% dos alunos estrangeiros de mais de cem nacionalidades da Universidade do Porto (UP), num universo de cerca de 31 mil universitários.

“A FEUP tem uma infraestrutura muito boa de oferta e de ambiente tecnológico.” Paga cerca de 3 300 euros por ano de propinas, sem bolsa, de vez em quando faz promoções de eventos para aliviar o peso financeiro dos pais. Mora num quarto numa casa alugada a estudantes. Chegou há pouco mais de três anos. Ajudou a criar a InterUp, associação que promove o acolhimento e a integração de alunos internacionais, acaba de criar o canal Pra Geral Saber! no Youtube, para partilhar experiências e simplificar conceitos mais técnicos.

A integração foi natural. “Gosto muito da comida, as pessoas do norte são muito acolhedoras, gosto do clima, apesar de aqui ser um lugar bem mais frio.” Sente-se parte de Portugal e “briga” com quem diz mal do país. Nos próximos cinco anos, Analú não pondera voltar ao Brasil, quer tentar a sorte por cá. Arranjar um trabalho, talvez abrir uma empresa ou fundar alguma coisa na área de tecnologia, inovação e ciência. “Depende muito de como as coisas vão estar, não consigo ver o Brasil a oferecer tantas oportunidades no sentido de qualidade de vida e de segurança.”

Achilles Nascimento também é do outro lado do Atlântico, de Brasília, está em Coimbra e quer voltar ao Brasil. Chegou em agosto de 2017, tinha acabado de fazer 18 anos. Andava insatisfeito com algumas políticas do seu país, estava na Universidade Federal de Brasília, decidiu estudar fora. Ainda pensou nos Estados Unidos, foi demovido pela burocracia. Escolheu Coimbra pela reputação da universidade, voou para a Europa pela primeira vez. Veio sozinho, aprendeu a virar-se sozinho.

Tem 21 anos, estuda Engenharia Informática, licenciatura com mestrado integrado, faltam-lhe dois anos para terminar. Depois volta. “Acho que o Brasil tem mais oportunidades para empreender do que Portugal, ganha-se mais como engenheiro informático lá do que aqui.” Quer trabalhar na área dos equipamentos, serviços e aplicações informáticas.

“A universidade, geralmente, é bem organizada, as coisas estão à disposição”, garante Achilles Nascimento, brasileiro, estuda Engenharia Informática, licenciatura com mestrado integrado, na Universidade de Coimbra
(Foto: Fernando Fontes/Global Imagens)

“O primeiro ano foi difícil, não tinha ninguém para mandar em mim”, recorda. Tentou focar-se no curso, ofereceu-se como voluntário num hospital pediátrico, no ano passado participou numa competição de robótica, ajuda os alunos brasileiros que chegam a Coimbra. “A universidade, geralmente, é bem organizada, as coisas estão à disposição.” As propinas, sete mil euros por ano, são pagas pelos pais. Um valor puxado, na sua opinião, uma quantia que tem aumentado com as oscilações entre reais e euros. “Eu percebo que os nossos pais nunca pagaram os impostos em Portugal, mas trazemos dinheiro para aqui.” Este ano, por causa da pandemia e com aulas à distância, e para poupar, esteve em Brasília entre março e o final de setembro, altura em que regressou a Coimbra para mais uma etapa.

A Universidade de Coimbra (UC) tem a maior comunidade de universitários brasileiros fora do Brasil, são cerca de três mil. Dos cerca de 25 mil alunos, 20% são estrangeiros de 105 nacionalidades. “Temos desenvolvido muitas parcerias bilaterais de acordo com vários critérios de qualidade que vamos impondo”, adianta João Calvão da Silva, vice-reitor para as Relações Externas da UC. A estratégia de internacionalização dá a volta ao Mundo. Projetos de captação ou aprofundamento de relações com países emergentes, da África lusófona, de Timor-Leste. Dois centros de estudos em parceria com instituições chinesas. Campanhas de marketing, presença nas mais importantes feiras do Brasil e da América Latina, visitas a colégios; serviços de relações internacionais nas diversas faculdades. E há ainda a Casa da Lusofonia, que funciona como sede de associações de estudantes de países lusófonos, ponto de encontro, espaço de atendimento com respostas para projetos de mobilidade, palestras, atividades culturais.

Neste ano letivo, a lei impõe que cada universidade não pode exceder 30% das vagas para os concursos destinados aos alunos internacionais. A UP recebe o dobro de candidatos para os lugares que disponibiliza. “Diversificamos as áreas de recrutamento, temos acordos com todos os continentes, contactos com outras universidades e outros países, participamos em feiras, acreditamos sobretudo no passa-palavra”, refere Maria de Lurdes Fernandes, vice-reitora para a Formação, Organização Académica e Cooperação da UP. A internacionalização tem vários mecanismos, um programa de mentoria para ajudar na integração, o InterUp, incentivos para apoio ao pagamento de propinas, gabinetes de relações internacionais disponíveis para ajudar no que for necessário.

O futuro depende das oportunidades

Maria Omaña quer ser atriz, decidiu avançar com o plano B antes do A, tirar um curso para lhe dar segurança, depois tentar entrar num mestrado em Teatro. Tem 21 anos, é venezuelana, de San Cristóbal, na fronteira com a Colômbia, chegou a Portugal em janeiro de 2017 para estudar, mais tarde do que queria por causa de atraso no visto. Está no último ano da licenciatura de Línguas, Literaturas e Culturas Modernas na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (UNL), que lhe surgiu numa lista das 50 melhores faculdades da Europa. Desde pequena que dizia que queria estudar noutros países e conhecer mundo. Está nos 10% dos alunos estrangeiros de cerca de 60 nacionalidades da UNL, num total de 20 mil alunos.

Mora num quarto numa casa com mais estudantes, trabalha numa loja do aeroporto, com horários flexíveis para moldar às aulas, para pagar contas e parte dos 3 500 euros da propina anual. A mãe assegura-lhe a outra metade. “A situação ainda é pior na Venezuela e lá um euro é muito dinheiro.” Desde que chegou que não voltou. “É muito caro.”

Adora Portugal, apaixonou-se por Lisboa. “Gosto imenso das pessoas, da cidade, da energia que Lisboa me dá.” O futuro dependerá das oportunidades. Ser atriz é um sonho que não abandona, mas sabia que chegar a um país sem saber a língua não seria fácil. No próximo ano, quando acabar o curso, é tempo de decisões.

A internacionalização é um objetivo estratégico das universidades portuguesas. Participam em feiras internacionais, valorizam o testemunho de ex-alunos, apostam no marketing digital, nos sites e redes sociais, têm gabinetes de apoio.

“Gosto imenso das pessoas, da cidade, da energia que Lisboa me dá”, afirma Maria Omaña, venezuelana, finalista da licenciatura de Línguas, Literaturas e Culturas Modernas na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa
(Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens)

Em 2014, os alunos estrangeiros da UM tinham um peso de 8%, hoje são 14,5% de mais de 80 nacionalidades, cerca de 2 900 do total de 19 600 universitários. A UM quer alunos estrangeiros nas suas faculdades por várias razões. “Confere à universidade um fator de desenvolvimento institucional”, revela Carla Martins, pró-reitora para a internacionalização da UM. O ensino é de qualidade e aprender a língua portuguesa abre portas em outros mercados internacionais. “Um ambiente multicultural e mais cosmopolita beneficia toda a gente.”

Sandra Soares, pró-reitora para a Inovação Curricular e Internacionalização da Formação da UA, diz que construir uma universidade “como espaço de talento global e ecossistema intercultural” é o motor que tudo move. Todas as ferramentas são usadas, do marketing digital às parcerias com colégios internacionais. O caminho passa por, sublinha, “atrair talento, como medida de promoção da diversidade no campus e da sustentabilidade da universidade, e dinamizar a rede alumni global enquanto instrumento de projeção internacional.” O UA Intercultural é um espaço destinado à interculturalidade e o Centro Local de Apoio à Integração de Migrantes, o primeiro CLAIM a surgir numa universidade portuguesa, dá apoio e ajuda em questões burocráticas. “Apostamos no que pode ser diferenciador, no acolhimento, na integração, em programas de multiculturalidade.”

A internacionalização para João Amaro de Matos, vice-reitor para essa área na UNL, não é uma questão simplista. Não basta atrair alunos de fora do país e ter muitos acordos internacionais. Há a flexibilidade social e de trabalho, adaptações constantes. “Vemos a internacionalização como uma estratégia transformadora da instituição à medida certa para ajustar à dinâmica da realidade.” A estratégia tem dois pilares: a identidade da universidade e o pensamento geoestratégico, como uma universidade europeia, no Atlântico Sul e que quer explorar a zona do Mediterrâneo. “Somos uma universidade jovem, focada na investigação, temos todas as áreas de conhecimento.” O reforço da marca Nova e o desenvolvimento de uma política de talento não restrita ao plano nacional são dois pontos fundamentais da UNL.

No Ensino Superior, um aluno estrangeiro custa, em média, cerca de sete mil euros/ano. É esse o valor farol, superior aos 697 euros anuais dos alunos nacionais, beneficiados por óbvias razões, desde logo pela nacionalidade e pagamento de impostos. Coimbra aplica os sete mil euros. No Porto, a média anda pelos cinco mil. Em Braga, as propinas de licenciaturas com mestrados integrados andam entre os 4 500 e os 6 500 euros. Em Aveiro, pode chegar aos 5 500 euros, na Nova é a partir dos 3 500. Para quem deixa o seu país, vale a pena o esforço financeiro na esperança de um futuro melhor com um diploma na mão.

Milhares de candidatos para dezenas de lugares

Há empresas a tratar do processo de candidatura de alunos estrangeiros em politécnicos e universidades privadas. A GEDS, com sede no Porto e escritório em Paris, é uma delas, especializada em programas dedicados à educação privada sem fins lucrativos na área da Saúde. Os seus serviços contemplam projeção internacional.

O processo de recrutamento cumpre as regras estabelecidas pela tutela. A GEDS prepara as candidaturas com antecedência, de janeiro a junho. Recebe a documentação de cada candidato para que possa ser processada pelas universidades nos formulários exigidos, promove estágios para aprender a língua portuguesa. Este ano, recebeu mais de seis mil candidaturas e colocou 500 alunos estrangeiros.

“A procura de francófonos para estudar Saúde em Portugal é muito elevada, mas infelizmente bloqueada pelos regulamentos”, salienta Gilles Belissa, fundador e diretor da GEDS, que já pediu uma reunião ao ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. As candidaturas são milhares para dezenas de lugares. “As universidades portuguesas estão prontas a investir milhões de euros para formar mais estudantes, em equipamento, laboratórios, para recrutar mais professores, mais funcionários públicos e até para construir mais habitações, mas o número de vagas não se coaduna com os investimentos que as universidades ou politécnicos estão prontos a fazer.”

O argumento de que o sistema não aguenta tantos licenciados é frágil. Gilles Belissa garante que todos regressam aos países de origem depois dos estudos. E fez contas. “Estes estudantes e as suas famílias pagam pelos estudos, alimentam-se, saem (obviamente não neste momento), consomem, viajam. Estimamos a despesa média de um estudante estrangeiro europeu em 120 mil euros durante a formação ao longo de cinco anos.” E se não houver mais vagas, há outros países.