Esqueça-se a lupa de Sherlock Holmes, o fino bigode de Poirot, as séries rocambolescas, o humor naïf de “Duarte e Companhia”. O mundo dos detetives em Portugal é outra coisa, mais séria e menos romântica. Os profissionais da arte de investigar por conta própria são poucos e fazem da discrição princípio de honra. Recusam rótulos. E lutam há décadas pelo reconhecimento legal da profissão.
Era caso de vida ou morte de um casamento. Senhora rica graças a herança recebida havia pouco mais do que um ano entra em escritório e procura detetive que resolva o mistério que lhe atazana a vida desde que a conta bancária passou a ser farta. Que o marido lhe chega a horas tardias a casa, que o marido anda estranho, que o marido tem comportamentos que nunca tivera quando o dinheiro não abundava, que o marido tem uma amante (se calhar várias, quem sabe), que a suposta amante do marido é brasileira (ou ucraniana, ou africana; portuguesa é que não é, de certeza absoluta, garantia ela na sua imensa desconfiança), que o marido tinha torrado quase meio milhão de euros num esfregar de mãos. “Só pode ter sido em mulheres”, dizia, quase histérica de tão nervosa, ao paciente investigador que a escutava atentamente e ia apontando detalhes que poderiam vir a ser preciosos na investigação que se seguiria.
Pés postos ao caminho com pista provável de que ali haveria infidelidade certa – como há quase sempre (já lá vamos, que há estudos sobre o assunto), foi fácil encontrar forma de seguir os passos do homem em suspeita e, pensava o detetive, seria tranquilo desmascará-lo a caminho de um motel ou de outro poiso de cama alheia. Mas não, nada disso, dessa vez a lógica não imperou. Ele, o marido alegadamente infiel que pagaria tudo e mais alguma coisa a mulheres que não a sua, afinal era um viciado que esbanjava milhares de euros em horas e horas em casinos. “Levei a esposa até ao local onde o cônjuge jogava e ali ela comprovou com os próprios olhos o que se passava. Nem queria acreditar.”
Quem assim fala é detetive com centenas de casos no portefólio, chama-se Paulo Perdigão, vai nos 48 anos, tem escritório em Lisboa e é, também, presidente da Associação Nacional dos Investigadores e Detetives Privados Profissionais (ANIDEP), uma das três que em Portugal representa uma classe que se considera esquecida. “Não há legislação que nos enquadre. E como a regulamentação não existe, o triste é que começa a abundar como cogumelos quem se faça passar por detetive e mais não é do que autêntico burlão, sem ética e sem escrúpulos. Indivíduos sem atividade registada, sem sala montada, nada. Não é de agora, basta ver o que aconteceu no caso Maddie [em 2007], quando tipos sem qualificação enganaram toda a gente”, queixa-se o detetive dirigente associativo.
As regras legais que faltam aos detetives, diz Paulo Perdigão, são as mesmas que outros países conhecem há décadas. “Espanha, por exemplo, já as tem há mais de 40 anos. A França desde o fim da Segunda Guerra Mundial. E dos Estados Unidos nem sem fala”, aponta. Mas que por cá ainda não foram elaboradas, sabe-se lá porquê. “Talvez falta de vontade política, não sei. Já houve reuniões com vários governos, com vários ministros, com imensos deputados. E nada. Falou-se muito em criar uma lei específica para nós, zero se fez até ao momento”, desabafa Paulo Perdigão.
O Brasil, só se para se ter uma ideia, contempla, desde 2018, uma ordem profissional de detetives. O objetivo é, segundo os estatutos, “a normatização, representação, defesa e orientação da profissão de detetive particular em todo o território brasileiro, no âmbito exclusivo de seus associados e dos interesses profissionais destes, sejam eles pessoas físicas ou jurídicas”. Todos os profissionais trabalham debaixo de uma carteira profissional e é reconhecido o papel do detetive junto das autoridades policiais e judiciais. Uma miragem em relação ao panorama português.
Cá, ordem profissional não existe, oficial e obrigatório é, somente, o registo nas associações do setor. Na ANIDEP, fundada em 2014, há 24 sócios. A Associação de Detetives Privados Profissionais de Portugal (ADPPP), sedeada no Algarve – e de quem a NM não obteve qualquer resposta a algumas questões levantadas – conta com 23 elementos, nem todos portugueses. E a LIDEPPE – Liga dos Detetives Privados Portugueses e Europeus, fica-se pelos 12. No total, são 59 os detetives em ação em Portugal.
“Estamos a falar apenas dos registados. O pior são os que atuam por conta própria sem qualquer respeito pela ética e pela atividade, esses não estão contabilizados nem querem estar para poderem continuar a atuar em roda livre. Já para não falar dos estrangeiros, que, pelas regras de livre circulação da União Europeia, podem trabalhar à vontade em Portugal sem que saibamos”, observa Paulo Perdigão. “O que realmente pretendemos é que nos reconheçam oficialmente. Pagamos impostos com um código que nos identifica como detetives, mas não somos reconhecidos”, reclama.
Na Classificação Portuguesa das Profissões, disponibilizada pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), os detetives estão incluídos na categoria de “Técnico Intermédio dos Serviços Jurídicos e Relacionados”, equiparados a oficiais de justiça e de registo, escriturários de apoio jurídico e escrivães de serviços jurídicos. Podem investigar factos, consultar documentos legais, aconselhar clientes em matérias legais, investigar empresas ou particulares se solicitados por clientes, por exemplo. Estão impedidos de “analisar provas a fim de solucionar crimes, identificar atividades criminais e obter informação para processos em tribunal”. Também de proceder a detenções e a testemunhar em tribunal, faculdades apenas permitidas a meios policiais.
Traições, o pão nosso dos dias deles
Um estudo realizado este ano pela plataforma online “Fixando” deu conta que assuntos relacionados com possíveis traições são os que mais levam à procura de detetives em Portugal, com 62% do total. “Os homens desconfiam mais do que as mulheres, 71% contra 29%”, indicaram os autores da pesquisa.
Além de alegadas infidelidades, os detetives são consultados para vigilância (13%) e verificação de antecedentes, pessoas desaparecidas, custódia de crianças e procura de ativos ocultos (todos com 4% dos resultados).
“Cinquenta e oito por cento das pessoas que recorrem aos profissionais de investigação são mulheres”, conclui o relatório, que dá ainda conta das zonas geográficas onde a procura é maior: Lisboa (17%), seguida por Aveiro (13%), Braga (10%), Faro e Porto (ambas com 9%).
Por falar em mulheres, na pouco extensa lista de detetives registados em Portugal, também as há. Poucas, não chegam para preencher os dedos de uma mão. Uma delas trabalha no Porto e com companhia especial, o próprio marido. Paula Almeida, 30 anos, partilha escritório com Nuno Pinto, 34, presidente da LIDEPPE, num prédio discreto, disfarçado entre tantos outros, numa vasta, mas discreta, zona residencial. “Nunca imaginei seguir esta atividade”, confessa Paula, olhos vivos enquanto descreve a paixão que lhe foi crescendo à medida que a profissão tomou conta dos seus dias, já lá vai quase uma década. “Era vendedora e, sinceramente, antes pensava que isto dos detetives era coisa de filme, de séries policiais. À medida que o Nuno me foi convencendo, comecei a não querer outra coisa”, admite.
O que mais a atrai é “a busca para saber a verdade”, afinal o grande dever desta arte de investigar. “Quando se parte do zero e se alcança o que se procura é uma grande vitória, um sentimento de dever cumprido”, conta com orgulho. Nem sempre é fácil, porque ser mulher ainda é motivo para olhares de soslaio por parte de clientes mais céticos. “Já aconteceu mais do que uma vez as pessoas perceberem que lhes vou tratar do caso e ficarem um pouco desconfiadas. Acredito que cause algum receio inicial”, revela. “A verdade é que, depois dessa desconfiança inicial, acabam sempre por acreditar no meu trabalho e isso é o mais importante.”
Nuno Pinto escuta-a e é o primeiro a reconhecer as vantagens de um trabalho em dupla tão especial. “Em trabalhos de observação, por exemplo, pelo facto de sermos um casal, não levantamos suspeitas e passamos totalmente discretos, o que é excelente”, destaca, com a anuência de Paula. Ao escritório de ambos chegam casos da mais variada ordem, com a primazia a calhar “às mais comuns” infidelidades. “Mas não só, também nos pedem localizações de pessoas com créditos por cobrar ou ativos adormecidos, situações comerciais por suspeita de desvio de segredos e documentação, por exemplo.”
Casos amorosos indevidos, esses, é que não escapam à rotina diária e vão caindo em catadupa. Cenas e cenas que, geralmente, acabam por confirmar as suspeitas iniciais dos clientes. Como aquela mulher que começou a estranhar o comportamento próximo em demasia entre nora e sogro (a mulher do filho e o seu marido, explicando com as letras todas) e pediu ajuda a Nuno Pinto. “Bastou seguir os passos das pessoas em causa e não foi complicado chegar à conclusão que tinham mesmo um caso amoroso”, recorda. Estragaram-se dois casamentos, dividiu-se família que se queria una. No final, triunfou a verdade inconveniente, essa mesmo que os detetives tantas vezes ajudam a trazer à tona quando os trunfos começam a esgotar-se para quem vive com a dúvida do engano.
“Somos uma profissão esquecida”, lamenta Nuno Pinto, enquanto vai desabafando os esforços feitos, em nome da LIDEPPE, para tentar regulamentar o que carece de regulamentação. E é o próprio Governo a confirmar isso mesmo. Segundo uma nota da Secretaria de Estado do Ministério da Administração Interna, a que a NM teve acesso, “a atividade de detetive privado não se encontra regulamentada”.
Afinal, o que ganharia a profissão se as medidas que os seus tanto pedem fossem mesmo tornadas legais? Fácil, arruma Nuno Pinto em duas penadas. “Além de os detetives ficarem devidamente consagrados como uma classe própria, não ficariam tão limitados como sempre estiveram no exercício da sua atividade.” Por exemplo? “Na via pública podemos realizar registo fotográfico, tal como qualquer outro cidadão. Apenas e só na via pública. Mesmo assim é-nos facilmente imputada a acusação de devassa de vida privada. Também não podemos depor em tribunal porque o nosso testemunho não se enquadra em modo de prova”, detalha. São estes e outros escolhos que a LIDEPPE procura combater. “Pela dignificação de uma profissão muitas vezes injustamente olhada de lado”, resume.
Veterano dos veteranos
Confidencialidade, sigilo, discrição. São regras de ouro de que os detetives não abdicam e que eram palavras assíduas nos inúmeros anúncios de jornal que sugeriam os seus serviços em tempos passados. Hoje, a realidade é diferente e a internet veio substituir a publicidade convencional na imprensa. São raros os anúncios no papel, quadrados tão pequenos que quase passam despercebidos. Há, porém, quem deles não abdique e mantenha o ritual de dar a conhecer os serviços num diário de referência, como o “Jornal de Notícias”. O detetive mais antigo do país não falha. Ferreira, assim mesmo, abdicando do nome próprio, como prefere ser identificado, mantém chamada diária no JN desde que se lembra. Ele que aos 68 anos não desiste da profissão que abraça desde 1983, após largar sete anos de serviço na Polícia Judiciária. “O emblema era muito bonito, mas o dinheiro faz falta”, diz a partir da pequena sala que lhe serve de escritório num edifício antigo, todo ele escadas de madeira rangentes, não muito longe da portuense Praça do Marquês.
“Naquela altura, já lá vão quase 40 anos, era lucrativo ser detetive. Ganhava-se bem porque trabalho havia bastante. Com o tempo, os pedidos foram caindo e o abalo maior veio durante a crise financeira de 2009, que fez cair a nossa atividade como nunca”, rebobina o detetive Ferreira. Então, nos idos da década de 1980, os adultérios eram fartos, “mais de 90% dos pedidos.” Agora que o século XXI já vai nos 20 anos, “a tendência vai caindo”. O que vai surgindo mais na agenda são tarefas “ligadas à área comercial, como burlas ou patrões que pedem para vigiar quem suspeitam estar de baixa fraudulenta, além de pais que querem tirar a limpo se os filhos andam por maus caminhos”.
À porta do detetive Ferreira bateram centenas e centenas de clientes anónimos e, também, várias figuras públicas, de que ele recusa revelar nomes porque o segredo profissional está acima de tudo. “Deputados, juízes, médicos, polícias, um fartar deles. Quase todos em busca do mesmo, saber se as mulheres ou os maridos tinham casos extraconjugais”, recorda. Até dirigentes de clubes de futebol o procuraram para saber se as estrelas da bola andavam a fazer o que não deviam em horas que deveriam ser de descanso. “Vigiei muitas saídas à noite de futebolistas.”
Foram tantas as situações que lhe passaram pelas mãos, “de norte a sul do país e até pelo estrangeiro”, que davam argumentos para vários filmes. Não chegaram ao cinema, é verdade, resultaram foi em livro: “Detetive Ferreira – O Espião Português”, assim foi dado à estampa.
Agora, 37 anos volvidos desde o primeiro dia, o Detetive Ferreira é um homem desalentado. “Estou cansado”, solta. “A figura de um detetive é útil à sociedade, às polícias e à Justiça. A questão é que não está regularizada, o que ajuda a que se forme uma ideia errada sobre o que somos e o que fazemos”, queixa-se, como que em coro afinado com os restantes colegas. Porque isto “não é como nos filmes, a realidade é bem mais dura”.
Segredos de honra
É noutro canto discreto do Porto que a NM encontra P. – inicial de um apelido profissional que este detetive prefere que não seja tornado público. Tem 53 anos, exerce atividade desde 1989, é um dos mais antigos em funções. “É só fazer as contas, como dizia o outro.” Apesar da veterania, curiosidade permanente é o que não falta a P., mesmo com tantos anos em cima de um trabalho que parece tardar em desmotivá-lo. “Tive várias formações ligadas à criminologia, só não possuo estudos superiores nesta área porque são recentes. Dantes, quando comecei, não os havia”, assinala. Começou por trabalhar com outros colegas, foi ganhando casos atrás de casos, andou por terrenos mais simples, outros mais delicados, para apanhar o fio à meada. Quase dez anos depois de enveredar pelo ramo, “divergências que não vêm ao caso” fizeram-no separar caminhos daqueles com quem se iniciou e aventurar-se em escritório próprio, que ainda mantém e alimenta de casos um atrás do outro.
“Trabalho pelo país todo, onde me chamem.” E chamam-no para quê? O mesmo de quase sempre, como a maioria dos colegas. “São infidelidades, patrões que desconfiam de funcionários, enfim, muita coisa. O que cresceu mais foram os pais que pedem para vigiar filhos suspeitos de se terem metido na droga.” As máximas são duas: “Discrição absoluta e nunca transgredir as regras”.
Com tantos anos de experiência, P. foi ganhando calo que lhe permite sair de alhadas que poderiam ser graves não fosse golpe de asa sagaz o salvar. Como daquela vez em que seguia um investigado havia dias e acabou por ser apanhado. Ou quase. “Ele veio ter comigo, perguntou por que razão andava atrás dele. Só lhe respondi que estava enganado, que não andava atrás de ninguém, se calhar ele é que andava atrás de mim. E foi à vida dele.”, puxa da memória.
“Nunca se admite o que se está a fazer, nem nunca se revela a identidade. São os grandes segredos dos detetives”, garante P., anos e anos de tato acumulado em terrenos de segredo.
Pena tem, como a maioria dos camaradas detetives, que a profissão não seja reconhecida. “É uma reclamação de sempre”, protesta, voz da experiência colocada em favor de uma classe que se diz abandonada. E que, apesar de discreta, não quer ser esquecida.