Há mercados de homens e mulheres em Portugal. Pagos ao dia. Mal pagos. Contas que não entram nas contas. Mais homens do que mulheres. Imigrantes, sobretudo. Arregimentados, para a construção civil e para outros trabalhos precários. O desemprego motivado pela pandemia ameaça agora trazer às ruas uma realidade do século passado.
São 7.30 horas em Lisboa. António desmonta o telemóvel na esperança de que isso lhe resolva o problema. “Não está a funcionar. Pede o pin”, diz a sorrir. Parece sereno, mas não está. Tinha marcado um encontro para as 8 horas, algures ali, em Sete Rios, com um homem que conheceu no dia anterior. É sexta-feira e ainda é cedo. “Só que sem telemóvel não vamos conseguir falar.” O aparelho, que entretanto já estava montado, volta a ter a bateria desencaixada, o cartão fora da ranhura. O cabo-verdiano, de 48 anos, levanta a boina e coça a cabeça, enquanto decide o que fazer. “Vou esperar.” Um olho na conversa, outro nas carrinhas que passam. Agarrado à promessa que lhe fizeram. “Ele disse que vinha.”
Sentado nas escadas, junto à saída da estação ferroviária, volta a desmontar o telemóvel. O gentil gigante, cuja arte é ser pedreiro, está em Portugal há sete anos, mas só há um mês conseguiu regularizar a documentação. “São coisas que demoram muito.” Com duas filhas em Cabo Verde e três a viver com ele, há que lutar. “Tenho de pôr comida na mesa.” A doença, como lhe chama, desassossega-o, causa-lhe medo, até consultou uma médica para saber se estava tudo bem. E estava. “Tem morrido gente”, mas os filhos estão primeiro. Falou com um amigo, que lhe apresentou o dito homem. “Ontem mesmo trabalhei para ele. No final do dia, viu o meu serviço e disse que gostou. Pagou-me 60 euros e combinou aqui comigo para hoje.”
A vida tem sido assim. “Trabalhar ao dia é complicado.” Nem sempre tem patrão. “Se não arranjo obra, fico parado.” A empreitada daquele dia era no Lumiar. O preço não ficou combinado. “Se correr bem pode ser que tenha contrato.” Nunca se sabe. António não vê dinheiro há semanas por conta da pandemia. “Está mais difícil agora.” Decidido a não deixar escapar a oportunidade, apanhou cedo o comboio na Amadora, onde mora. Pagou 1,65 euros pelo bilhete. “Tem de ser. Sou eu quem está a precisar.” Na terra natal era segurança, ganhava pouco. Saiu do país para ajudar a família. “Aqui compensa, quando o trabalho não falta.” Já ficou três anos numa empresa, depois um ano noutra. “Pagavam pouco. 5,50 euros à hora. Chegavam a ser nove horas seguidas. Era uma exploração. Eu faço muito: rebocar paredes, pôr tijolo, etc. E outros como eu recebiam sempre mais.” Ameaçou que vinha embora e, como não o aumentaram, cumpriu. Desde então que só recebe à jorna. “Há muitos gajos assim como eu. Vêm cedo, ficam ali junto ao Jardim Zoológico parados, à espera que alguém os leve.”
São muitos. Maioritariamente homens. Naquele dia, também andava por ali uma mulher, mas logo desapareceu. O local serve dois propósitos. É ponto de encontro para quem tem contrato e é centelha de esperança para quem não tem. Quem conduz as carrinhas de transporte diário, que estacionam às dezenas em segunda fila, confirma o esquema. “Se faltar alguém, sabe-se que aqui será fácil arranjar quem desenrasque.” Só que nenhum dos motoristas revela que já o tenha feito.
Sentados no muro ou de pé no passeio, não falta gente a partir das sete da manhã. Às vezes, mais cedo. Mochilas às costas, bonés, roupa prática. Alguns portugueses, muitos imigrantes. Uns legais outros ilegais. Os segundos são fáceis de distinguir. “Não, não estou à espera de trabalho, só espero um amigo”, dizem já a levantar-se, a parecer fugir. Muitos mal compreendem ou falam português.
Ronaldo Silva está tranquilo. O jovem brasileiro de 32 anos, natural do Mato Grosso, vive em Portugal há uma década. Durante oito anos esteve numa empresa de limpeza, que na verdade operava todo o tipo de trabalho. A experiência foi boa, quanto mais não fosse para perceber para o que realmente tinha jeito e o que gostava de fazer. “Foi aí que resolvi trabalhar por conta própria.” Antes fez contas, se se mexesse conseguiria ganhar mais. A opção revelou-se , de facto, melhor. “Hoje, faço mais coisas na área do alpinismo, limpeza de vidros, obras gerais, pintura. Todos os dias são diferentes, nunca sei quem vai ligar.” E nunca sabe no final do mês quanto vai ganhar. Se vê que o sustento do filho de quatro anos está ameaçado, liga aos contactos que acumulou com o tempo. Combinam o sítio e já está. “Hoje, foi aqui em Sete Rios, mas o que eu faço mais é para a Margem Sul e um pouco para os lados de Sintra.”
Quando presta serviço a gente que já conhece, o valor diário não se discute. “Se não conheço, o preço é combinado antes do trabalho.” Os valores oscilam. “Trabalho de alpinismo é, mais ou menos, 75 euros ao dia. Pintura interior, dependendo das pessoas, ronda os 50 euros.” Se o valor for muito baixo, já se sabe, “não há recibos”. O olhar reguila, por detrás dos óculos sarapintados de tinta, foge-lhe por instantes para a dura realidade dos dias. “É uma vida incerta. É preciso ter jogo de cintura.” A estaleca de nada lhe valeu quando a pandemia chegou. “Ficou complicado. A procura diminuiu muito. Num mês cheguei a trabalhar só dez dias.”
Com o desemprego a aumentar, todos suspeitam que estas feiras de homens voltem a encher-se. O conceito é antigo. Em 1946, o escritor e militante do Partido Comunista, Soeiro Pereira Gomes, clarificou o dia a dia de muitos dos seus camaradas ao escrever num folheto o que eram as praças e jorna. “Um mercado de mão-de-obra, a que vão assalariados e proprietários rurais (ou os seus delegados: os capatazes), e em que os primeiros, como vendedores, oferecem a força de trabalho, e os segundos, como compradores, oferecem o salário ou a jorna, que é a paga de um dia de trabalho.” Havia muitas no Alentejo latifundiário, na época em que Salazar sonhava fazer dele o “celeiro de Portugal”. A Reforma Agrária, em 1975, veio mudar as regras do jogo. O salário mensal permitiu sonhar com outro tipo de vida, onde entrava o planeamento e, especialmente, a dignidade dos trabalhadores, que passaram a ter mais direitos. A conquista de Abril esfumou as praças de jorna, mas não as erradicou. Mantêm-se bem vivas, principalmente em períodos de maior crise.
“Praças de quê?”
Augusto mete as mãos nos bolsos do fato de treino e torce o nariz ao ouvir falar, pela primeira vez, numa expressão onde foi buscar o sustento dos últimos anos. “Praças de quê?” Tem 69 anos, está reformado. É frequente esperar junto ao Jardim Zoológico de Lisboa que o apanhem para fazer uns biscates. “Toda a vida trabalhei na construção civil.” Agora, além disso, aventura-se em serviços de jardinagem. Há mais ou menos 12 anos que o sistema é este, trabalhar ao dia. O encontro também foi combinado na véspera. “É um conhecido meu.”
Como Augusto não tem telemóvel ligam-lhe para casa, na freguesia de São Brás, Amadora, onde vive com a mulher, dois filhos e um neto. O valor da reforma não diz, mas garante que mesmo que aperte muito “não chega para as despesas”. Motivo pelo qual ainda não deixou os biscates. “Ganho para a casa, foi sempre assim.” Naquele dia ia rebocar paredes por 40 euros. “Antigamente era mais.” À falta de melhor, aceita. Contudo, as propostas têm de vir de quem já conhece. “A gente às vezes vai para um serviço que ficou combinado ser 50 euros, chega o dia de receber e não nos pagam o valor. ‘Ah não deu’, dizem. E temos de aceitar, não adianta arranjar problemas por coisas pequenas.” Contudo, o pior nem é isso. “Agora, anda a acontecer muito, passam-se 15 dias, um mês, e nunca mais vemos o dinheiro.” É esse o motivo que o levou a decidir não variar muito de patrão. Uma vez que o trabalho “nem sempre é declarado”, não tem a quem se queixar. “Prefiro trabalhar para gente que sei que tem palavra. Até posso ter de esperar uns dias para ver o meu dinheiro, mas sei que vem”, declara o cabo-verdiano a quem “nunca faltou trabalho, mesmo com este vírus”.
A guineense Juelma Silva Cá não pode dizer o mesmo. Tem 29 anos e está em Portugal há seis. Tem uma filha de dois anos e um marido que ganha os dias na construção civil. “Graças a Deus ele tem contrato.” Era o que Juelma mais queria. “Não está fácil arranjar alguma coisa que dê trocado. Procuro em todo o lado.” Por estes dias, foi chamada pela Talenter, uma empresa de trabalho temporário. “Ganho quatro euros à hora a fazer limpezas. Não é o ideal, mas estou a precisar.” Tem uma amiga que nem isso consegue. “Está apertado. Ela, de vez em quando, vai para Sete Rios à espera que passe uma carrinha que precise de alguém para fazer limpeza em obras ou assim. Vai como muita gente.” A amiga não quis falar. Falou Nádia Silva, que esperava dentro da carrinha da Aralbo Portugal, a empresa de limpeza. “Quando as obras são grandes, subcontratam o serviço das ‘talenters’. A maioria é africana, de São Tomé, de Cabo Verde, da Guiné. É chato. Enquanto nós temos isto fixo, elas nunca sabem quando vão ter trabalho.” Se arranjarem, é provável que o ponto de encontro seja ali no Campo Grande, debaixo do viaduto da Segunda Circular, onde em tempos se concentravam centenas de pessoas, como agora acontece em Sete Rios.
Todos confirmam que aquele era de facto um local de angariação de mão de obra anónima. Em setembro de 2008, houve uma grande operação realizada pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF)no Campo Grande. Foram fiscalizadas 38 carrinhas de transporte de trabalhadores de construção civil e instaurados processos de contraordenação a sete empresas. Já de acordo com os dados disponíveis no Relatório de Imigração, Fronteiras e Asilo de 2019, as direções regionais do SEF empreenderam “5 036 ações de inspeção e fiscalização, das quais 3 702 foram realizadas de forma autónoma e 1 334 em colaboração com outras entidades” (ACT, ASAE, AT, GNR, PJ, PM, PSP, Segurança Social, Cuerpo Nacional de Polícia e Guardia Civil). À “Notícias Magazine”, o SEF destacou ainda que, no ano passado, “foram realizadas 94 ações de inspeção e fiscalização em estaleiros, tendo sido identificados 1 687 cidadãos, 138 dos quais nacionais de países terceiros em situação irregular; 451 ações em terminais de transporte, onde foram identificados 11 001 cidadãos, dos quais 67 nacionais de países terceiros em situação irregular e 148 fiscalizações na via pública, onde foram identificados 1 559 cidadãos, dos quais 149 nacionais de países terceiros em situação irregular”.
O SEF atua mais nas empresas de construção civil do que sobre os angariadores de ilegais. Os alvos não são por isso os imigrantes, legais ou ilegais, que procuram sustento, ou quem os angaria, mas os patrões e as estruturas que suportam a imigração ilegal e que a exploram.
A “Notícias Magazine” tentou, sem sucesso, obter esclarecimentos da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) e do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social.
O fenómeno das atuais praças de jorna não é propriamente exclusivo da capital. Registam-se também noutros locais do país. Eduardo Florindo, dirigente do Sindicato da Indústria fala “dos Estaleiros da Lisnave, em Setúbal, e da Petrogal, em Sines”, onde, garante, “todos sabem que, pelo menos antes da pandemia, havia gente contratada ao dia.” No primeiro caso, conta, “por vezes chegam em carrinhas, de diferentes pontos do país”. Para prestarem serviços “por algumas horas, por um ou vários dias”. Recebem “à hora, sem fazer descontos”. Nesses dois estaleiros, nos picos de produção, “podem ser precisos mais de um milhar de trabalhadores, e muitos são contratados em condições clandestinas”.
Já Daniel Bernardo, dirigente da União dos Sindicatos do Norte Alentejano, conta que há quase um mês a ACT foi alertada para a situação de um grupo de 35 senegaleses, legais, que não tinham os seus direitos respeitados. “Os patrões iam buscá-los ao ponto de encontro quando precisavam deles. Nos outros dias não iam. Era conforme a necessidade.” A juntar a isto, “há mais de 20 dias que estavam sem receber e como se queixavam eram ameaçados por telefone”.
Mas é Fátima Messias, coordenadora da Federação Portuguesa dos Sindicatos da Construção, Cerâmica e Vidro (Feviccom/CGTP-IN), quem melhor traça o cenário a nível nacional. “A contratação ao dia tem sem dúvida mais relevo no setor da construção civil. Sobretudo no início e no final das obras.” A dirigente sindical garante que o fenómeno “tem anos e é do conhecimento de todos”. As novas praças de jorna “tanto servem de ponto de encontro para as carrinhas apanharem trabalhadores contratados, como são pontos de concentração para os que estão na expectativa de arranjar trabalho, cujas precárias condições se revelam muitas vezes a única saída para quem está desempregado”. Ao sindicato chegam queixas com frequência, principalmente quando os valores acordados previamente não são pagos. “É um trabalho absolutamente precário. Mal pago. Sem recibos. Nem sempre as empresas que contratam têm mail para onde possamos escrever. É comum os angariadores ou patrões atenderem uma vez o telefone e depois não atenderem mais. Já para não falar no recurso a trabalho de imigrantes, clandestino, não declarado. É um setor que continua a ser muito marcado pela informalidade, que ganha força em alturas de elevado desemprego.”
Cultura do tempo das cavernas
Em Portugal, à semelhança de outras economias afetadas pela crise da covid-19, a população empregada está a diminuir e a taxa de desemprego, segundo o Instituto Nacional de Estatística, sinaliza um agravamento. Em junho, o número de desempregados em Portugal subiu 21% (mais 61 300 pessoas) em relação a maio, atingindo 350 900 pessoas. No que toca ao emprego temporário, Portugal sobressai com uma das percentagens mais elevadas de trabalhadores com vínculos precários da União Europeia: 17,9%. Sendo superado apenas por Espanha (22,3%).
“É natural que a pandemia faça disparar a contratação de pessoas neste sistema diário, à margem das leis laborais”, prevê Fátima Messias, que responsabiliza os chamados donos da obra “por estas situações que mais parecem do século XIX do que do século XXI, em que acontecem, sistematicamente, violações da dignidade dos trabalhadores e dos seus direitos básicos de trabalho e de saúde”. Algo que merece a atenção e a atuação antecipada da ACT e dos sindicatos, alerta.
“Não podemos considerar isto normal. Muitas destas pessoas são expostas. Sujeitas a deslocações que não garantem o mínimo de segurança. Andam todos aos montes em carrinhas que prejudicam, por exemplo, a prevenção da covid-19, que devia ser feita.”
A situação epidemiológica na região de Lisboa e Vale do Tejo, onde o aumento do número de novos casos inspirou preocupação nos últimos tempos, continua superior em relação ao resto do país. O setor da construção civil, com 600 mil trabalhadores, foi um dos que nunca pararam durante o confinamento. À NM, a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo esclareceu não ser “possível relacionar diretamente os surtos da covid-19 com praças de jorna, uma vez que a percentagem de surtos na área da construção civil é residual. À data de hoje [12 de agosto], do total de 82 surtos ativos na área da Região de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, apenas existem dois surtos ativos na construção civil”.
As praças de jorna destes tempos podem não ser fisicamente como as de antigamente. Porém, continuam a assentar na troca de braços fortes de trabalho por fracas e magras compensações monetárias. E o cenário, visível a olho nu, mostra que vivem muito dos estrangeiros. Timóteo Macedo, presidente da Solidariedade Imigrante – Associação de Defesa dos Direitos dos Imigrantes, vai mais longe. “A ditadura desta pandemia faz com que efetivamente as condições de vida destas pessoas se degradem devido à impunidade dos patrões sem escrúpulos que se aproveitam dos imigrantes que estão em situação de grande fragilidade.” Alegando que “são demasiados os que se aproveitam da cultura empresarial do tempo das cavernas, escravizando e explorando as pessoas que estão à procura de pão para a boca” e a quem não resta outra saída a não ser “a procura do trabalho informal”. No entender de Timóteo Macedo, “Campo Grande e Sete Rios são histórias de passado que se repetem sempre que há grandes crises”. Pede, por isso, mão pesada e fiscalização apertada. “É preciso combater quem prevarica, quem se aproveita dos necessitados.”
Naquela sexta-feira, eram 8.30 horas e António já tinha montado e desmontado o telemóvel muitas vezes. A dada altura, levantou-se das escadas, tornou a tirar a boina e a coçar a cabeça. Atravessou a rua e voltou a sentar-se, à saída do terminal ferroviário. Numa hora, muitos como ele já chegaram e já foram. Sobraram meia dúzia de resistentes. No caso dele, nada. Nem se lembrou do pin, nem o homem que prometeu contratá-lo apareceu. “Vou embora”, disse, resignado. Amanhã é outro dia. “Pode ser que tenha mais sorte.”